quarta-feira, maio 03, 2017

Sobre a questão religiosa no ano do Centenário das Visões imaginativas (vulgo aparições) de Fátima





Sobre religião ou práticas religiosas já aqui falei algumas vezes mas, com vossa licença, aflorarei de novo o tema. Tendo frequentado a catequese, desde logo não me sent cativada por nada do que tentaram ensinar-me. Tudo era muito focado na noção do pecado e da confissão e, desde que me lembro, tudo aquilo me parecia forçado, artificial ou incompreensível. E ter que ir confessar coisas que não me pareciam pecados era uma violência que me custava suportar. Depois a história contada era toda ela focada em episódios que não me pareciam credíveis. Portanto, ao fazer a comunhão solene, mal me vi liberta da obrigação que, na prática, me era imposta e à qual os meus pais não se opunham, soltei amarras e distanciei-me.

Não me casei pela igreja, não baptizei os meus filhos. Estar numa missa do princípio ao fim --o que acontece muito esporadicamente e porque a situação o impõe -- é, para mim, um tempo que dou por mal empregue e no qual não vejo sinais daquilo que, para mim, é a religiosidade. Tudo aquilo é ritualizado e, não estando eu por dentro, não consigo acompanhar as 'falas' ou a 'coreografia' do ajoelha, senta, levanta. Mais: acho de mau gosto aqueles cantares meio amodernados, com jovens tocando alegremente viola. 

Dito isto.

Em Évora, no outro dia

Não há vez nenhuma que vá de passeio que não entre nas igrejas, em especial quando não há missa (que é, quase sempre, o caso), não me deixe por lá ficar uns momentos, não me sinta bem naqueles espaços de silêncio e paz. Mais: como também já o contei, na minha casa in heaven, não descansei enquanto não arranjei maneira de lá ter uma capela. 

Não me revejo em doutrinas, dogmas, práticas, preceitos, preconceitos. Pelo contrário, tenho em mim um sentimento difuso de religiosidade. Sendo profundamente humanista, quase venero a natureza. Penso que é no maravilhamento pelo milagre da existência de tudo e no respeito pela sua preservação e dignificação que residirá, talvez, o verdadeiro sentimento de religiosidade. Penso eu, claro.

Em Vila Viçosa, no outro dia

E se percebo a necessidade de encontrar um rosto humano ou um nome a quem dirigir os nossos apelos ou preces, não me revejo numa história que, ao longo dos tempos, foi construída sobre preconceitos, sobre exclusões, sobre regras que, se não cumpridas, levam ao castigo. Para mim uma igreja deve ser um lugar de inclusão, de generosidade e tolerância. Sempre me incomodou, mas incomodou visceralmente, que a igreja repudie os divorciados, os homossexuais (ou as adolescentes com calções e tshirt de alças como aconteceu comigo e já aqui o contei). Só esse facto me levaria a não poder colocar-me ao lado desta igreja. Sempre me incomodou que a igreja mostrasse tanto repúdio em defender o uso de preservativo mesmo em situações de risco, ou os contraceptivos em geral. É um pormenor, eu sei. Mas ilustra o que quero dizer. Uma igreja que se agarra a ideias desfasadas da realidade e em nome da qual se condena, se marginaliza, não é lugar que eu ache recomendável.

Mais: não gosto de ver aquelas organizações de jovens que parece que sofreram lavagem ao cérebro e se emocionam perante fenómenos que a pscicologia de grupo explica. Não gosto de ver jovens a falarem como velhos moderninhos. Não gosto de ver jovens que se mobilizam entusiasticamente para actividades sem qualquer utilidade social como, por exemplo, irem em peregrinação a Fátima ou irem a Roma ver o Papa. 

Haverá -- certamente que há -- actividades organizadas pela Igreja e que são de grande utilidade social. Não digo que não. Tal como se encontram actividades meritórias e solidárias em sociedades desportivas e recreativas.

A Igreja Católica vem perdendo crentes enquanto outas igrejas e credos vão conquistando aderentes e isso tem uma explicação muito óbvia.

O persistir na defesa de 'milagres' ou numa doutrina que apoia a crendice e defende a exclusão não é inteligente.


Li hoje que, nas primeiras descrições das aparições, os pastorinhos falavam que a Senhora vinha de vestido azul pouco abaixo do joelho. Depois, com os anos, a descrição do que a Senhora tinha dito foi sofrendo alterações enquanto o vestido ia descendo e lhe aparecia uma capa pelos ombros. Na altura, os párocos referiam-se ao que se passava como coisa de crianças. Contudo, em cima de uma história destas, sem pés nem cabeça, a igreja arquitectou um edifício de crendices que alimentou um negócio próspero -- e que, em minha opinião, desvirtua o verdadeiro sentido religioso da Fé.

Já no outro dia aqui o disse. Que se escolha um lugar como espaço de meditação ou como espaço de partilha de fé, eu compreeendo. Que, para além disso, se tire partido disso para fomentar o turismo, eu também percebo. O que não percebo é que se fomente a crendice e se deixe que pessoas se arrastem, pés em ferida, joelhos em sangue. O que não percebo é que, ao mesmo tempo que se louvam ídolos religiosos, se fomentem práticas que mais parecem pagãs ou que se fomente que é pelo sacrifício que se conseguem as boas graças de santos, santinhos, beatos e beatinhos.


Que se ensinasse que, em tempos, houve um homem bom, justo, um lutador corajoso que deu a vida pelas suas convicções, um homem que sabia perdoar, que não julgava com sete pedras na mão, que se preocupava com os doentes e com os pobres, isso parecer-me-ia suficiente como aglutinador de uma crença, de uma prática de vida.

Li um texto no Kyrie Eleison intitulado A questão religiosa no qual fiquei a pensar. Terá razão o JCM naquilo que escreve mas não se pode abraçar uma religião e seguir os seus preceitos pelo medo do que por aí pode vir se não o fizermos. Tem que ser porque com ela nos identificamos.

Recomendo a leitura desse texto que começa assim:
O Iluminismo assentou a sua avaliação – claramente, negativa – da religião revelada em três pilares críticos: a crítica do preconceito, da superstição e da autoridade que não advenha da razão. Segundo os iluministas, a religião revelada manteria uma atitude anti-racional fundada em preconceitos e superstições, na ordem do conhecimento, e na autoridade, no que diz respeito a matérias morais e à própria crença dogmática. Esta crítica racionalista tornou-se no Ocidente culto o padrão com que se julga ainda hoje a religião. O que levanta, pelo menos, dois problemas. (...)
Percebo a preocupação expressa na formulação dos problemas e, embora não partilhe o mesmo ponto de vista, acho que o tema merece reflexão.

E não me alongo mais. Não é tema que se aflore num sítio destes pois não é matéria para três pinceladas mal amanhadas. São temas complexos. E compreendo que, se as pessoas não reconhecem em si uma matriz cultural que seja esteio e propósito para a vida, ficarão, talvez, vulneráveis a quem as saiba convencer a arrimarem-se a outros amparos, quiçá destruidores da civilização a que chamamos nossa. Resta saber é se a igreja católica, tal como ela é, tal como chegou aos dias de hoje, é ainda essa matriz, a matriz que nos defenderá de uma eventual destruição.

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A primeira fotografia mostra 'Suspensão', obra de Joana de Vasconcelos que representa um terço. Foi inaugurado esta terça-feira no Santuário de Fátima, tem 26 metros de altura e dá luz.


A música lá em cima é o Hino Fátima 2017 feito para a visita do Papa, com letra de José Tolentino Mendonça e música de João Gil.


Ambos os trabalhos, o terço e o hino, ilustram o que eu acabei de dizer: não consigo rever-me nisto. Em nenhum dos dois reconheço sinais daquilo que para mim tem a ver com um sentimento de religiosidade. Contudo, admito que o problema seja meu.

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E, a quem não é dado a temas religiosos, permito-me sugerir a visão do monólogo de Colbert contra Trump. É de antologia.

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7 comentários:

  1. Viva UJM!
    Tenho estado ausente desde 10 de Abril passado, juntando o útil (trabalho), ao agradável (férias, por lá e por cá), não tendo tido oportunidade de consultar o seu Blogue. Já de regresso, actualizei-me. E dito isto, deixe-me que a felicite pelos (mais de) 2 milhões de visitantes que entretanto já passaram pelo seu Blogue. Gostei e achei bastante divertido a forma como comemorou esse momento, com as entrevistas que nos disponibilizou. E as fotos que colocou. Gostei de a ouvir e de a “ver”. Uma mulher jovem, bem-disposta, “com os tais mais de 40 anos”. Aquela pose dos braços com o chapéu tem algo de sensual, se me permite a ousadia. Sobre este tema, da ficção de Fátima, vou procurar enviar-lhe um vídeo com uma conversa com o Padre Mário Oliveira, onde ele desmascara de uma forma desapiedada aquela fantasia. Ao que vejo, publicou um livro sobre isso. Ousaria voltar atrás para fazer uma ou outra observação sobre dois temas que postou. 1- relativo a Macron (e Marine) e outro sobre o 25 de Abril. Sobre Macron, convém não esquecer que é um político sem escrúpulos, com ligações ao Morgan Stanley. Bernard Mourad, ex-banqueiro daquele banco, é quem tem gerido o financiamento da sua campanha (!) Macron tem ainda ligações ao grupo Altice (sediada no paraíso fiscal que é o Luxemburgo), que controla uma grande parte da imprensa francesa e que, nesse sentido, gere a propaganda eleitoral dele. Por outro lado, o Instituto de sondagens dirigido por Jean Daniel Levy tem vindo a publicar e a “tratar” sondagens para serem favoráveis a Macron. Como se não bastasse, Macron, convém recordar, é um apoiante dos (lamentáveis) tratados CETA e TTIP, o que seria suficiente para o desqualificar politicamente. E defensor da “flexibilidade” laboral (precaridade), de cortes sociais, embora depois se coloque ao lado do capital financeiro e de outros grande interesses económicos. Macron é um radical neo-liberal, reaccionário, sem qualquer sensibilidade de ordem social e solidariedade para com os seus parceiros europeus sob programas de austeridade, a que a França escapa (por ser a França, no dizer de Juncker), visto hoje ter uma dívida colossal, um défice excessivo, um desemprego brutal e uma economia anémica (a nós e aos gregos por essas razões caiu-nos em cima a Troika). Como “germanófilo” que é (segundo o Le Figaro) e com a economia do país no estado comatoso em que se encontra, Macron colocará a França na órbita de Berlim, de forma ainda mais acentuada. E é este cabotino que será o próximo PR francês. Já quanto ao seu romance, aí discordaria do que então escreveu. Acho reprovável a atitude da professora (ainda por cima uma mulher feita, de 40 anos) que seduz o aluno (de 15). Imaginemos o contrário, UJM, se uma das nossas filhas de 15 anos era seduzida pelo professor de 40? 2- Sobre o 25 de Abril: quando olhamos para hoje, no respeitante ao acesso ao Ensino/Instrução, do Básico até ao Superior, e comparamos com o passado, o avanço é espantoso (apesar de algum abandono escolar), da cidade à província. O mesmo no respeitante à Investigação (científica), que hoje tem uma dimensão que nunca antes teve. Nasceram polos universitários em vários cantos do país, como na Covilhã, Aveiro, Braga, Vila real, Évora, Bragança (aconselho a leitura de um artigo sobre este caso no Expresso-on line de há um mês e picos), para só mencionar estes, mas também em Lisboa, Porto e Coimbra, que alargaram as suas valência universitárias, que antes não possuíam. O acesso ao Ensino socializou-se, é para todos (os que queiram), ao contrário de antes do 25/Abril. E sem distinções sociais. Pena que haja gente que desvalorize este tipo de coisas, com críticas grotescas ao 25 de Abril e loas ao passado salazarista. Renovo-lhe as minhas felicitações pelos 2 Milhões de visitas e deixo-lhe cordiais cumprimentos. Prossiga sempre!
    P.Rufino

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  2. Olá Fernando,

    Temos portanto, uma versão 'suspensa' do pirilampo mágico em versão XXL.

    E não é isso criativo..? Eu acho que é. Podia ser feito em bolas de golf, em bolas de ténis, em berlindes, quiçá até em bolas de berlim, em bolas de futebol da Selecção, sei lá. Mas não. Feito com contas brancas que se alumiam. Parece-me muito bem.

    Até me apetece dizer: Aleluia, Irmã Joana.

    Mas pronto, não digo.

    E ficamos assim. Suspensamente orgulhosos de mais uma big obra de arte.

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  3. Olá P. Rufino!

    Já estava a estranhar a sua ausência! Fico contente por vê-lo de novo e com a sua verve sempre pronta para disparar uns tiros valentes. Não concordo lá muito que, perante a real ameaça de uma ultramontana xenófoba marine le Pen o meu Caro dispare com tanta força sobre o Macron mas, enfim, não posso dizer que ele não tem os seus pontos fracos.

    Quanto ao romance dele com a prof Brigitte também tem razão mas agora parece que são um casal feliz por isso deixe-os lá estar P. Rufino. Acho que antes eles do que a Marine... É a França que temos... Foi isto que o galinha do Hollande conseguiu.

    E de resto só tenho que lhe agradecer a sua presença aí desse lado, um leitor atento e crítico, e a sua permanente simpatia.

    Muito obrigada, P. Rufino!

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  4. UJM,
    Se fosse francês, no Domingo abstinha-me. Nunca voto útil. Voto por convicções. Não as havendo ao dispor, não vou às urnas. Prefiro ir dar um passeio. Quanto ao debate de ontem, achei deselegante aquela das "bêtises". De resto, o debate não trouxe nada de novo. São dois cabotinos. E Macron é um cretino, lacaio da finança. Na 2ªFeira, Merckel passará a dirigir a França por interposta figura, o catraio do Macron.
    O seu Blogue é o máximo!
    P.Rufino

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  5. Viva, UJM!

    Para mim é admirável o sacrifício, as peregrinações que deixam os pés em ferida, os jejuns, etc. Tenho ideia que a UJM é mais hedonista que outra coisa qualquer e também isso para mim é admirável, sinónimo de aceitação das nossas inclinações, do que somos e queremos da vida, creio.
    O sacrifício, vejo-o como forma de autocontrolo e acho que é uma componente, senão fundamental, absolutamente útil para o nosso auto-conhecimento. Não que já tenha peregrinado, ou dado açoites em mim própria. Mas já fiz os meus pequenos votos de abnegação. Não sei se tenho pena ou não de nunca ter tido fé, no sentido religioso do termo. Ter religião, só concebo como ter fé, e nunca a tive. Não me iria mentir a mim própria, seja por medo do que possa vir depois da morte ou por outro motivo qualquer. Acho que ou se tem ou não se tem. Em miúda, instalei um programa no computador de casa e o computador parecia que se tinha estragado. Chorei, aterrorizada. E prometi a Deus que se me salvasse o computador nunca mais deixaria de acreditar nele. O computador salvou-se, depois de horas de reboots. E eu não acreditava e senti-me tão envergonhada pela promessa que tinha feito que agarrei na Bíblia e fui lê-la pelo princípio. Li o Velho Testamento todo e nada senti. Saltei para o Novo. Gostei de ler, mas nada. Abandonei o tema.
    Bom resto de semana!
    JV

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  6. Apesar de tudo, o Velho Testamento é mais interessante de ler do que o Novo. Embora ambos sejam umas fantásticas ficções religiosas.
    P.Rufino

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