sexta-feira, maio 05, 2017

Os invisíveis





Estava numa reunião, ligou-me um antigo colega meu. Como não costumo atender chamadas quando estou em reunião, deixei estar. Passado um bocado um número que eu desconhecia. Deixei tocar. Estava sem som, não incomodava. Logo de seguida, aviso de mensagem de voz. Acto contínuo, o mesmo número. E outra vez. Pedi desculpa, disse que algum fogo estava a acontecer, que tinha que sair para atender.

Uma voz desconhecida, de homem, muito entaramelada. Não percebi nada, apenas, e vagamente, o que me pareceu ser o meu nome. Pedi que repetisse. De novo a voz enrolada, incompreensível e, no meio, o meu nome. Afastei-me da porta da sala de reunião, fui para um local onde pudesse falar mais alto como se o problema fosse meu. Depois, pensei que talvez fosse problema de rede quando, obviamente, não era. Perguntei quem falava. A pessoa disse qualquer coisa que não entendi. Depois de várias tentativas, percebi o nome de um ex-colega, não aquele que me tinha feito a primeira chamada mas outro. Um colega com quem tinha trabalhado há muitos anos, boa pessoa, bom amigo. Tinha saído da empresa onde eu estava na altura, num processo de rescisão amigável. Não tinha querido mudar de local de trabalho, recebeu indemnização, saíu ainda longe da idade da reforma.

Lembro-me muito bem dele. Muito moreno, muito bem disposto, encorpado, sempre com uma forma engraçada de dizer as coisas. Onde ele estivesse as pessoas andavam bem dispostas. 

Tinha uma mulher vistosa de quem ele se orgulhava muito. Era bonita mas de uma beleza talvez um pouco vulgar. Usava sempre uns cortes de cabelo modernos, maquilhava-se e vestia-se de uma forma produzida. Era simpática mas eu achava-a ligeiramente afectada. Ela às vezes ia lá ter com ele e ele olhava-a embevecido. Levava-a sempre até mim pois ela gostava de me cumprimentar e trocar dois dedos de conversa comigo. Tinham um filho uns quatro ou cinco anos mais velho que a minha filha e muitas vezes a conversa começava por aí. 

Há cerca de um ano aquele meu colega que ontem me fez o primeiro telefonema contou-me que tinha almoçado com ele e que ficou um bocado impressionado. Que lhe tinha sido diagnosticada há uns anos, pouco depois de ter saído da empresa, uma doença neurológica degenerativa, que estava com algumas limitações. E que, para ajudar à festa, a mulher o tinha deixado e o filho tinha ido trabalhar fora do país, nunca cá vinha. Vivia, pois, sozinho. 

E o que era, então, o telefonema? Apenas percebi, e muito vagamente, ao fim de árduos minutos de tentativa de compreensão: sabendo que algumas pessoas que me são próximas estão ligadas ao sector da saúde, tinha ligado ao outro colega para ele lhe dar o meu telemóvel pois tinha-o perdido e queria pedir-me se eu lhe conseguiria, através desses meus contactos, arranjar determinada consulta. O outro colega deu-lho dado mas, por isso, me tinha ligado, de seguida, para me avisar. 

Explicou-me a doença, o mal estar, as dificuldades e eu apenas percebia uma pequena parte do que ele, com esforço, me dizia. Disse-lhe que ia fazer as minhas melhores diligências e que, quando tivesse notícias, ficasse ele descansado que logo lhe ligaria a informar. 

Nesse mesmo dia, ligou-me mais quatro vezes, uma das quais depois das dez da noite, uma chamada longa, difícil de perceber mas, ainda assim, dolorosa. No dia seguinte, logo de manhã, nova chamada. Que agradecia mas que já não era preciso porque o médico habitual lhe tinha ligado, já tinha alterado a medicação, ia vê-lo nesse dia e ele afinal preferia assim, era mais fácil para ele, tinha um rapaz amigo que tinha um táxi que o levava lá, e que o levava ao colo, que eu não o via há algum tempo, não imaginava como ele estava. Mas isto ao longo de uma conversa demorada, eu sempre uma dificuldade terrível para o perceber, a fazer um esforço para não dar a entender que não estava a compreender mas, mesmo não percebendo mais de metade das palavras, a tentar manter a conversação. Deus meu, uma angústia. Ele igual na graça, na forma bem disposta de se exprimir, mas dizendo as coisas mais tristes que se podem imaginar. A solidão, as enormes limitações, o esforço brutal para não ser totalmente dependente, as agruras horríveis pelas quais tem passado, a falta de apoios para situações destas, o muitas vezes não saber a quem recorrer, o não querer dar trabalho aos outros, o não suportar quando, em lugares públicos, o olham de lado, o ar desmazelado que tem porque não consegue fazer a barba, só a senhora que lá vai a casa, percebi que talvez apenas uma vez por semana, é que lha faz, e que trava uma luta penosa para não ficar imobilizado e que tenta mover-se mas cada vez menos, cada vez pior.

Falava ininterruptamente naquela voz embrulhada, parecia ter uma necessidade incontrolável de falar.

Não falo habitualmente de situações destas pois temo sempre entristecer quem me lê e, para tristezas, já chegam as de cada um, não é preciso estar a ler sobre tristezas alheias. Se falo disto agora é porque tantas vezes nos esquecemos que existe vida para além da que é visível e, esquecendo-nos, não cuidamos de acautelar que, todos quantos precisam de apoio mas não têm como pedi-lo, o consigam obter.

Marcelo está empenhado, e o Governo e as autarquias também, em encontrar soluções para quem vive na rua -- e eu acho isso inquestionavelmente meritório. Mas não deveremos esquecer os que têm um tecto mas não têm companhia, apoio, meios de locomoção.

Não haverá nunca soluções únicas pois admito que mesmo quem quase não consiga mexer-se mas conserve ainda a integridade da sua lucidez não queira abandonar a sua casa e passar a ser tratado como um pobre animal inválido, em fim de linha. Mas seria bom que houvesse uma malha social mais humanizada e disponível para acorrer e garantir a dignidade da vida de todos quantos estão carentes de tudo, em especial de solidariedade.

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E, agora, quem estiver mais numa de espantar tristezas, poderá descer até ao post seguinte, onde se pode ver a primeira fotografia conhecida do casal Macron na praia. Delicioso, malgré tout.


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5 comentários:

  1. Parece perseguição, mas os temas que aborda são interessantes e dignos de comentários.
    Não me parece que a solução esteja só nas instituições e no apoio ao domicílio.
    Há dias fui visitar uma idosa, que vivia aqui na rua. Está agora no lar da nossa freguesia,. Estava bem tratada, rodeada de gente, mas chorava muito. As filhas não vão lá vê-la e moram perto.
    O problema está na nossa falta de amor, de sensibilidade, de solidariedade. A indiferença é que mata. Actualmente ligamos muito a coisas que não valem grande coisa e esquecemos o essencial.
    Uma boa noite para si cara UJM.

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  2. Pois; a solução começa em cada um de nós .Temos que sair da nossas rotinhinhas de conforto e bem estar com a família e pensar nos outros . As famílias devem ser felizes, mas não devem ser felizes sozinhas... há que pensar e dar aos outros ... cada um de nós. no nosso cantinho...è por aí que tido começa . não podemos estar sempre à espera que seja o Estado a fazer ( para nós continuarmos no bem bom da nossa lutazinha diária para nós e para os nossos ) . somos egoístas... acho que é isso...e quem tem mais tem obrigação de dar mais...

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  3. Situações dessas são lamentáveis. E concordo, há muita coisa que nos escapa, a solidão faz isso mesmo, esconde. Penso que o Estado tem obrigação, sim. E que a obrigação do Estado não é do mesmo teor da das famílias - que também têm o dever de não esquecer quem lhes pertence. E julgo que as ajudas (do Estado ou da solidariedade social) minoram o encargo familiar que pode mesmo tornar-se um fardo e não tem necessariamente a ver com falta de amor ou de interesse por quem precisa de cuidados constantes ou pelo menos muito frequentes. E também me parece que quem precisa de cuidadores prefere não os tornar seus mártires particulares.
    Mas é claro que posso estar enganada.

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  4. A Todos,

    Se penso que todos deveríamos ter dentro de nós a disponibilidade para ouvir os outros, para estar atento às necessidades de quem mais precisa e para, com pequenos gestos, mostrarmos o nosso interesse e atenção, por outro lado acho que a parte da assistência regular e profissional deve estar a cargo do Estado ou de insituições a isso dedicadas.

    Sei por experiência muito próxima os cuidados de que uma pessoa com doenças ou limitações severas necessita. Ajuda na higene pessoal, por vezes pôr e mudar fralda, levantar, deitar (e a força física que é necessária para isso?), fisioterapia, exames regulares, etc, implicando obter (e pagar) transporte dedicado ou idas de pessoal médico ou de enfermagem lá a casa. Etc, etc, etc.

    Não é coisa que funcione na base da boa vontade, de quando temos disponibilidade. Não. É coisa praticamente a tempo inteiro e que requer uso de técnicas específicas.

    O que podemos fazer por uma pessoa que se encontra num processo degenerativo e que vive sozinha ou com alguém também com algumas limitações é perceber, quando alguém está 'desaparecida', se precisa que se lhe arranje apoio ou que tipo de suporte e assistência é necessária. E, claro, oferecer uma palavra de conforto, estar disponível para ouvir e fazer saber que a pessoa não vai ficar abandonada.

    Quanto ao verdadeiro apoio todos os dias da semana, todas as semanas do ano, os nossos impostos e taxas devem servir justamente para acudir a quem precisa de cuidados continuados, a quem não tem meios, a quem precisa de amparo e não tem forma alternativa de o obter.

    É o que eu penso.

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  5. Eu disse "não me parece que a solução esteja só...". Isto quer dizer que, para além das instituições e de outros tipos de apoio, também falta amor, etc....
    Depois, optei por falar só desse lado afetivo, que considero importantíssimo.
    Estou de acordo com as senhoras, no que respeita aos apoios do Estado, não poderia deixar de estar, claro.
    Agora a realidade é muito complexa. Por experiência própria,posso dizer que algumas instituições do Estado deixam muito a desejar. Uma pessoa da minha família, totalmente dependente, numa Unidade de Cuidados Continuados, em duas semanas, apanhou feridas. Claro que a família (no nosso caso, felizmente,as circunstâncias permitiram-no, mesmo se foi à custa de muito sacrifício), se não queria que a pessoa morresse, teve de o trazer para casa.
    Infelizmente é isto que acontece, e sabe-se lá com que dimensões.
    Um bom dia para todos (tive dúvidas se seria todos ou todas, mas é todos, pois há um anónimo)

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