terça-feira, abril 18, 2017

Ninguém quererá usar o meu carro (sempre sujo) para nele produzir obras de arte?






Sou toda contra a discriminação sexual, a favor das quotas de género para furar o ciclo vicioso de predomínio masculino, aplaudindo o mais possível que se penalizem as empresas que paguem pior a mulheres que a homens em iguais funções, e faz-me muita impressão quando vejo, na província, os cafés ou os passeios cheios de homens e nenhumas mulheres -- e isso tudo e o mais que queiram relacionado com machismos, sejam eles encapotados ou às claras.

Faço tudo o que me dá na gana e nunca me senti tolhida por fazer o que quer que seja por ser mulher.

Lá na aldeia, onde o homem, mais do que ser o chefe de família, é o porta-voz e é entre homens que se trata de tudo o que tenha a ver com obras ou arranjos da terra, eu apareço e falo de pleno direito. E se, ao princípio, eu não passava da mulher do meu marido, agora já tenho personalidade própria e até, no outro dia, vitória das vitórias, depois de o meu marido na semana anterior ter combinado que seria para serrar tudo o que fosse pernada que tivesse avançado para cima do telhado, no caso de uma pernada maior, sabendo que tenho pelas árvores a devoção que outros têm por santos, esperaram que eu lá chegasse para validar se aquela também ia abaixo. Aos poucos, vão-me vendo como alguém com os mesmos direitos que o meu marido -- e eu orgulho-me de fazer parte dessa (lenta) evolução.

E, no trabalho, movo-me entre homens e é de igual para igual, seja em que fórum for, que me bato pelas minhas ideias e rebato as que, nos outros, me parecem erradas ou facciosas.


Mas.

Mas há áreas em que sou mulher-mulherzinha da cabeça aos pés. Coisa boba e sem justificação mas, ainda assim, não ultrapasso a barreira psicológica que se ergue.

Conto.

Tudo o que tenha a ver com carros.

Conduzo, claro. Mas conduzo porque ter motorista caíu em desuso.

Prefiro mil vezes andar à pendura -- e, sobretudo, não sou capaz de tratar dos carros que conduzo.

O meu carro está permanentemente sujo. Apenas quando vai à revisão (porque, para tal, felizmente, há quem o leve por mim), o estado dele inspira tal piedade que, por sua alta recriação, mo lavam. Geralmente depois deixam-no no parque e, palavra, tenho que confirmar pela matrícula que é ele. Lavadinho e reluzente. Outro.

Por dentro a mesma coisa. Se tenho que dar boleia a um dos meus colegas (homens, claro), até tenho vergonha. No banco de trás uma cadeirinha e um banquinho e o que os miúdos por lá tenham deixado. À frente, garrafas de água, dossiers entalados entre o banco e aquele separador do meio. Nessa coisa do meio -- que nem sei bem qual a sua função original -- tenho creme das mãos com cheiro a maçã, uma caixinha de pastilhas elásticas (sobre a qual o meu marido costuma perguntar se acompanha o carro de origem ou se já é deste ano), elásticos e ganchos para o cabelo, uma mini-lanterna da decathlon, moedas, óculos de reserva, pacotes de lenços, um anel que um dia vi que não condizia com o outfit e que por lá se tem deixado ficar... e sei lá que mais.


Em contrapartida, quando vou no carro deles, nem uma palha ou um grão de pó à vista, tablier encerado, uma limpeza atrofiante. 

O carro do meu marido é assim também; mas no carro dele raramente ando pois ao fim de semana evito ser eu a conduzir e não me arrisco a conduzir o dele pois está de tal forma impecável que, com o excesso de precaução, sem querer ainda roçava nalgum pilar e estava bem governada. Em contrapartida, passo o meu para as mãos dele à vontadinha. Gostava era que ele mo levasse à estação de serviço para o lavar e ele diz que está bem, está, que o leve eu. É um domínio em que lhe falta algum sentido de cavalheirismo.

A verdade é que não me imagino a ser capaz de enfiar o carro naquelas máquinas de lavagem automática. Acho que alguma coisa haveria de correr mal e eu lá enfiada dentro com escovas, espumas e jactos de água por todo o lado. Levá-lo à oficina também não me dá jeito: acho que iriam colocar-me questões para as quais eu não teria resposta ou haveria de me esquecer de o ir buscar antes que aquilo fechasse.


E a sensação de maior desamparo que sinto quando se me fura um pneu é algo que não tem explicação...! Vou com o carro a arrastar-se e toda a gente a apitar e a apontar para a roda até chegar a um sítio onde possa parar, largá-lo, chamar o meu marido ou alguém que venha mudar-me o pneu. Nunca consegui perceber como fazê-lo. Não sei se é coisa de género, se é preconceito, se é falta de jeito mas a verdade é que não tenho qualquer intuição, inclinação ou motivação para me ocupar de carros.

Da mesma forma sou desinteressada em relação ao estado em que ele se apresenta a nível de carroçaria. Tenho colegas que, mal põem um risquinho, ficam logo num stress e não descansam enquanto não lhe fazem um lifting. O meu, em contrapartida, é um cristo. O meu marido, quando lhe chega ao pé, põe-se a olhar e, com ar censor, formula uma pergunta retórica: 'Temos mais uma panada...?' e eu fico admirada e, a maior parte das vezes, tenho que ir à procura porque nunca dou por nada. Não sei se me batem ou se sou eu que bato sem dar por nada.

Parques de estacionamento estreitíssimos com curvas apertadíssimas, lugares minúsculos e pilares por todo o lado -- como é que é possível o carro conseguir desviar-se de tudo? Eu tento, juro que sim. Aliás, o carro tem sensores por todo o lado. E, apitando histericamente mal qualquer coisa que passe por perto, não percebo como é possível roçar em qualquer coisa sem dar por isso. Penso que deve ser aquilo de 'no creo en brujas, pero que las hay, las hay'.


Por isso, para me poupar a angústias existenciais, evito passá-lo em revista. Acho que faz parte do estilo: sujo, cheio de marcas de vida.

Agora uma coisa gostava eu: que alguém se inspirasse em Nikita Golubev e o usasse para produzir obras de arte como aquelas que podem ser vistas nas fotografias que aqui se podem ver.


Uma graça.

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De qualquer forma, acho que encontrei uma solução para os meus problemas. Apenas vou esperar mais uns aninhos para que o FEDOR me venha melhor acabado. Por enquanto ainda o acho um bocado espaçoso. Prefiro-os mais maneirinhos, mais discretos. Mas, para além de me servir de motorista, ainda o poderei usar para suprir outra das minhas limitações: usar berbequim. Também não uso. Não me dá jeito.



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Até já!

[E não deixem de ver o vídeo dos Ok Go lá em cima. é qualquer coisa de verdadeiramente louco]

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