A praia em dias assim, sem ninguém, fica mais bonita. É só natureza e toda para o nosso olhar. Nada nos distrai daquilo que queremos ver. As nuvens, o sol querendo romper por entre elas -- e claro que o sol não tem desses quereres, que o vento é que joga ao gato e ao rato com as nuvens. De vez em quanto um ribombar surdo. Trovões ao longe.
E o cheiro da maresia.
E a descoberta do homem, pequeno e insignificante, quase igual às pedras junto às quais se move. E, ainda assim, mais relevante que eu porque se fez ver enquanto eu passo invisível, como se não existisse, sem que alguém saiba que ali vou (tirando o meu marido, tão invisível e insignificante quanto eu).
Depois as ervas douradas, ondulando freneticamente ao vento. E os desenhos dos veios da madeira dos troncos que protegem as arribas, e a maré vaza. E eu vou descobrindo ângulos novos para fotografar o mar, tornando a sua vastidão apenas numa estreita nesga azul, menos relevante que os desenhos da madeira macia do tronco.
Até que percebo que, ao fundo, na linha de horizonte, há um pequeno risquinho que se move. Vejo agora nas fotografias que o risquinho já lá estava, e eu, uma vez mais, sem o ver. É um navio grande, transporta certamente mercadorias, tem lá dentro várias pessoas, vale certamente muito dinheiro, é, não tenho dúvidas, muito importante para muita gente. E, no entanto, diluído na paisagem, é nada, um insignificante ponto que se move sobre as águas.
Começo, então, a esperá-lo. Vem vindo, belo, azul junto à linha de água, branco em cima. Elegantes estes navios de grande porte.
Já entrei algumas vezes em navios de grande dimensão. Penso que já falei nisso aqui mas há muito tempo. Isto passou-se numa minha outra vida.
Uma das vezes, sabia que ia estar à descarga um produto que se temia ser poluente e que a autarquia estava alerta. Era um cargueiro que traria umas seis ou sete mil toneladas desse material, já nem me lembro bem, talvez até mais.
Pedi para assistir à descarga e pedi que me deixassem ir a bordo. Não foi fácil. Teve que haver permissões de vários intervenientes. Informaram-me que talvez fosse melhor usar máscara. Avisaram-me, sobretudo, que não era sítio para uma mulher. E não era, de facto. Nem para uma mulher, nem para um homem.
Lamento não ter fotografado; mas talvez não fosse autorizada a isso.
Andei por escadas e pontes periclitantes. Mas vi. Homens minúsculos, lá em baixo: pareciam formigas no meio do pó. Uma imagem terrível de que jamais me esquecerei.
Acho que, quando se assiste a uma coisa assim, fica-se inevitavelmente mais próxima dos outros. Estando eu distante do que se passava lá em baixo, protegida, mera observadora, senti-me próxima e devedora daquelas pessoas que trabalhavam num trabalho tão duro, tão atentatório da dignidade humana.
Numa outra vez, sabia que estava a chegar um navio que trazia um produto que, pelas suas características, era transportado em condições tais que o navio era uma autêntica fábrica. Tratava-se de um navio tanque que, se não estou em erro, trazia cerca de dez mil toneladas. Tinha ouvido várias vezes falar deste tipo de navios e tinha curiosidade em conhecer.
Uma vez mais, autorizações a serem tratadas com antecedência. Mas concedidas e, uma vez mais, surpresa por uma mulher querer ir a bordo conhecer aquele tipo de navio. Se há mundo verdadeiramente masculino, este é um deles. Desde os estivadores, aos tripulantes, a toda essa gente que se move neste mundo, este é um lugar onde as mulheres não entram. Pelo menos, na altura, era assim. Agora não sei mas presumo que pouco se tenha alterado.
O pior para mim, que tenho vertigens, são sempre as escadas. Um esforço de superação que tento ultrapassar sem dar parte de fraca, tanto mais que ninguém me obrigava, eu é que queria meter-me nestas aventuras. Várias pessoas me acompanhavam na visita. Pensei que pediriam a algum marinheiro-engenheiro que satisfizesse a curiosidade à madame de gostos excêntricos e que a coisa ficasse por aí. Não. Para meu espanto, disseram-me que o comandante estava à minha espera e me acompanharia na visita.
Nunca imaginei: uma coisa deveras impressionante, aquele navio. Uma complexidade enorme, tanto mais que tem que haver auto-suficiência, especialmente quando em mar alto. Engenharia pura e dura e de diversas especialidades. Mostrou-me o navio de ponta a ponta e, por onde eu passava, parecia haver alguém escalado para me dar todas as explicações.
O comandante era um cavalheiro russo, simpátivo e muito bem parecido. No fim, disse que gostava de me convidar a tomar um chá e que gostava de me apresentar a uma pessoa que estava muito curiosa em conhecer-me. Fiquei muito admirada. Disse-me, então, que era a sua mulher e explicou-me que ela por vezes o acompanhava nas viagens e que, para ela, era uma vida solitária. E, ao saber que uma outra mulher tinha querido visitar o navio, tinha ficado numa excitação. Respondi-lhe que gostaria muito de conhecê-la. Ele foi lá dentro e, passado um bocado, voltou com uma das mulheres mais surpreendentes que eu alguma vez vi ao vivo.
Alta, louríssima, olhos azuis brilhantes de boneca, vestida como num filme dos anos cinquenta. Tinha o cabelo apanhado em cima, numa espécie de rolo artístico, vendo-se uma fitinha cor de rosa. Poderia ser uma aparição em kitsch. Mas era mais do que isso. Toda ela se tinha produzido com esmero mas parecia que se tinha enganado na era em que se situava. E, ao mesmo tempo, parecia de uma inocência inesperada numa mulher daquela idade. Não sei explicar bem. Tinha um vestido de tecido florido, tenho ideia que bordado, justo em cima, de cintura fina e totalmente rodado até ao joelho. De pele branca, aqueles olhos azuis, penteado surreal e cabelo muito louro, os lábios pintados de cor de rosa, as rosetas da cara ou com pó de arroz cor de rosa ou ela própria muito corada, uns brincos de princesa -- todo o conjunto era surreal, parecia uma boneca antiga, de porcelana, muito perfeita. E toda ela sorria. E o comandante, homem distinto, de repente parecia um menino grande todo orgulhoso por ter ali escondido um tesouro tão precioso.
Lembro-me que fiquei cerca de uma hora à conversa com eles, em especial com a senhora que era uma doçura, uma graça, um personagem de filme da Disney, uma princesa de um país inventado -- como se se tivessem encontrado pessoas de mundos distintos, ela e eu, de eras desfasadas no tempo.
E eu agora, quase sempre que vejo um destes grandes navios, que vem de longe, pequenino, um barquinho, e que depois, vindo, vindo, se mostra grande e imponente, lembro-me disto e penso que talvez lá dentro venha um comandante com a sua princesa encantada.
E depois, agora que o navio, grande, passou rumo ao porto, deixei-me ficar, de novo, a olhar as pedras da baixa-mar. Um pequeno ponto branco chamou a minha atenção. Se repararem na primeira fotografia, lá em cima, não apenas lá está, na linha de horizonte, o pequeno barquinho como, nas pedras, à esquerda, mais ou menos a meio, um minúsculo ponto branco. Com muita dificuldade consegui apanhá-lo com o zoom. Mas consegui. A imagem está desfocada. A ventania, a distância e a pequenez do alvo dificultaram, e muito, a operação. Mas aqui está, belo e alvo, o pequeo ponto de luz: uma ave de uma elegância impressionante. Não sei como se chama. Garça dos mares?
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E queiram, por favor, descer para verem se conseguem descobrir o homem.
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Tem pressa a ave; segue de galocha amarela, meiinha azul e em passada ampla.
ResponderEliminarEstá um texto bem escorreito e é prazenteiro lê-lo. Conte coisas dessa sua viagem, sempre em nós se move o pensamento:).
Um óptimo fds para a JM