Explicação
No outro dia, o meu filho enviou-me o link para um artigo do The Guardian, dizendo que, se eu tivesse tempo para o ler, seria um bom material para o Um Jeito Manso.
Dei uma espreitadela e pareceu-me do mais interessante que tenho lido nos últimos tempos. Contudo, acontece que o artigo é extenso e eu, nesta fase da minha vida, conto os minutos a ver se lá consigo encaixar as horas de que necessitava, não me sobrando tempo para trabalhos extra que requeiram alguma disponibilidae. Apesar de o saber igualmente atarefado (para além de que três crianças pequenas em casa é obra...), quase a medo, perguntei-lhe, então, se não quereria ele digeri-lo e escrever um texto para que eu aqui o divulgasse.
Não me respondeu mas hoje enviou-me o texto que abaixo divulgo, pedindo a vossa atenção para o tema que merece reflexão já que tem tanto de preocupante como de pouco conhecido.
Introdução
O artigo a que se refere o texto abaixo tem um carácter factual e é apresentado no The Guardian. Intitula-se Robert Mercer: the big data billionaire waging war on mainstream media.
Considerar o seu teor como verídico ou não fica a cargo do leitor. Tendo em conta o que o próprio texto diz, essa opção pode ser perigosa…
Um dos principais financiadores da campanha do Trump é um tal Robert Mercer, com um contributo superior a 10mn$. Trata-se de mais um “génio” que fez uma fortuna de biliões com um misto de capacidades informáticas e investimentos bem sucedidos.
Um dos investimentos mais recentes é a empresa Cambridge Analytics (CA). A CA é, para todos os efeitos, uma muito bem-sucedida empresa de marketing que processa os perfis de milhões de utilizadores do facebook e outras redes sociais com o objectivo de ajustar campanhas ao público alvo e obter um feedback imediato (à velocidade de um like).
De acordo com o próprio site, a CA processa mais de 5,000 informações relativas a 220 milhões de eleitores americanos. De acordo com o artigo, existe uma forte relação desta empresa com aquilo que foi uma eleição com um resultado no mínimo inesperado. Isto é a ponta do iceberg.
Vamos então ver a enormidade que se esconde debaixo de água.
Alexander Nix, CEO da CA |
A CA agrega a capacidade de processar quantidades massivas de dados (big data, a chave do marketing do futuro) com algoritmos de inteligência artificial, IA, (machine learning, a próxima revolução industrial / económica).
O facebook é, aparentemente, o principal fornecedor de matéria prima, a big data, que agrega dados relativos aos perfis e preferências dos seus utilizadores. Os algoritmos de IA extraem conclusões de forma adaptativa, ou seja, adaptam-se às características de cada indivíduo, de forma a aprender com o seu comportamento, o que motiva, o que chateia, o que agrada, etc. Esta dicotomia – grandes quantidades de informação, capacidade para aprender com cada peça individual de informação – dá origem a uma arma poderosa de marketing.
Tudo isto parece muito “futurístico” mas tudo isto está muito presente e os riscos são reais -- e essa será a parte interessante, a que devemos estar atentos.
Um especialista na matéria, citado no artigo, refere que, recolhendo a informação relativa a 150 likes, o modelo (baseado em IA) consegue prever o comportamento do indivíduo melhor que o parceiro, com 300 likes prevê melhor que a própria pessoa.
Como?
Obtendo feedback imediato das palavras e acções dos candidatos. Como se, para cada parágrafo, houvesse uma taxa de aceitação. Como se, para cada proposta, uma eleição imediata. O modelo vai extraindo conclusões e informando o staffing da campanha sobre o caminho a seguir. O candidato adapta-se às vontades dos eleitores, cavalgando os seus medos, os seus ódios, os seus traumas, pois esses são os sentimentos mais fortes, mais fáceis de despertar numa massa eleitoral, que cada vez mais se foca no imediato.
Compreendendo as reacções dos eleitores e prevendo tão perfeitamente as suas reacções, sendo certo que o que se pretende é uma aceitação generalizada que, no fim, conduza ao voto na urna que permita a eleição do candidato ou a vitória no referendo, ou já agora a subscrição deste serviço ou a compra deste produto (it’s all business, right?), a manipulação torna-se facilmente acessível. As noticias falsas, ainda que sem conteúdo, podem ser rapidamente propagadas no facebook e outras redes sociais. Com a repetição suficiente, o tema torna-se potencialmente relevante, especialmente se o seu conteúdo estiver “adaptado” ao que as pessoas pretendem ouvir, se mexer com as suas emoções, se for “hot” nas redes sociais.
Há um outro artigo interessante que refere que uma parte relevante das notícias falsas relativas a Hillary, que circularam durante a campanha, foram criadas a partir de Veles, uma cidade na Macedónia.
Adolescentes que se conheciam e com conhecimentos básicos de internet concluíram que se criassem muitos sites com noticiais falsas, mas que potencialmente aparecessem no Google, ganhariam imenso dinheiro com anúncios (gerados automaticamente pelo Google) colocados na própria página. O conteúdo pouco interessava, bastava o título.
Alguns destes miúdos ganharam dezenas de milhares de dólares. Porquê? Porque à velocidade da partilha nas redes sociais, milhares ou milhões de pessoas clicavam para ver a notícia – fake news, sem hackers do KGB, apenas miúdos a ganhar uma pipa de massa.
Porque anti Hillary e pró Trump? Aparentemente porque funcionava melhor.
Atenção: estes sites não se relacionam (aparentemente) de forma alguma com a CA.
Mas podemos especular que foi o ímpeto propagandístico que a campanha tão bem criou, sem dúvida com o apoio da CA, que levou a que a massa eleitoral estivesse especialmente desperta para os assuntos relacionados com a campanha baseada em factos falsos contra a Hillary.
Mas podemos especular que foi o ímpeto propagandístico que a campanha tão bem criou, sem dúvida com o apoio da CA, que levou a que a massa eleitoral estivesse especialmente desperta para os assuntos relacionados com a campanha baseada em factos falsos contra a Hillary.
Agora podíamos ir por aí a fora e discutir a questão da regulamentação (ou ausência dela) que permite que o facebook transacione dados de milhões de utilizadores. Ou discutir sobre os partidos que se perfilam como combatentes vanguardistas desta guerra de informação. Ou sobre a matriz capitalista por trás deste enorme esquema. Mas…
Para mim, é mais interessante debater a raiz do problema.
Este processo é profundamente democrático ou profundamente antidemocrático?
Democrático: a campanha adapta-se à personalidade da maioria dos eleitores e reflecte as suas preocupações. Diz o que querem ouvir. Propõe as soluções para os problemas mais prementes. Da mesma forma que procuramos o resultado do benfica no Google, entramos no site do bet.com, e como anúncio no sidebar temos o booking.com com casas no algarve, porque foi o que procurámos ontem.
Manipulação ou adaptação?
Antidemocrático: tema complicado -- não deveriam ser as elites a governar? Com pessoas dedicadas a temas específicos? Com curriculum? As elites não têm de dizer o que o eleitores querem ouvir, têm de apresentar um programa, que de acordo com a sua matriz ideológica se comprometa com opções e estratégias que se afigurem como soluções adequadas para os problemas e desafios que se colocam. Governar não pelo que está correcto, mas pelo que as pessoas querem ouvir, especialmente, se tiverem sido incendiadas com temas fracturantes e inflamatórios pode ser perigoso. Temas como racismo, xenofobia, homofobia, a fábrica da cidade que fechou, a mina de carvão que já não funciona, tornam-se os temas relevantes, em detrimento da integração e igualdade, de receber refugiados sem pátria que fogem com filhos ao colo de guerras sem nexo, da adaptação a uma globalização inevitável num mundo conectado, do aquecimento global.
Se é para por o povo a escrever o guião, então, temos de ter um homem novo, capaz, culto e educado. Não os broncos americanos dos estados centrais, que nunca viram o oceano e não sabem o que é a Europa.
Dito isto, e porque o tema não é fácil e as conclusões não são óbvias, se é para ter uma opinião então olhe-se para os resultados. Seja o processo democrático ou não, temos o Brexit e o TrumpIn.
Good or Bad News? Depende se estivermos do lado dos 50% vencedores ou dos 50% derrotados. Outra forma de dizer: dos 50% manipulados ou dos 50% que ainda não se deixaram vencer…
Pelo menos uma coisa sei, não tenho e não terei conta no facebook…
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Agradeço ao meu filho o trabalho que teve a escrever o texto que acabaram de ler
(... embora, do que lhe conheço, anteveja que o escreveu de bom gosto)
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A escolha das imagens é da minha responsabilidade.
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Para ilustrar o pouco admirável mundo novo de que o meu filho fala acima e no qual já vivemos, dois vídeos:
O Futuro das Campanhas Políticas segundo a Cambridge Analytica
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E aqui abaixo se explica como se cria um vencedor numas eleições
Quando o vídeo foi gravado ainda o senhor que aqui abaixa fala, Alexander Nix, andava a trabalhar para colocar Trump na Presidência dos EUA.
Agora já sabemos que foi bem sucedido. Onde se metem é para ganhar.
Os partidos democráticos, habitados por gente séria, idealista e pura, que se cuidem
The Power of Big Data and Psychographics
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Há uma reflexão a fazer, disso não tenhamos dúvidas.
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Gostei muito do texto do seu filho, Ujm. Foi muito generoso da parte dele fazer esta síntese do artigo do Guardian, como lhe pediu. Dá que pensar.
ResponderEliminarDa leitura, concluo que a democracia está, de facto, em causa. Creio que a responsabilidade desse facto não é do Facebook ou de qualquer outra rede social, nem da comunicação digital em linha. Parece-me, antes, que é um problema de literacia da população. Parece óbvio que muita gente não tem meios suficientes para reconhecer a manipulação e neutralizá-la, para preservar a sua privacidade, para ter e/ou exigir ética mediática, para exigir legislação reguladora dos novos meios de comunicação de massas disponibilizados pela internet.
A este propósito, parece-me interessante ler este livro de Timothy Garton Ash. Liberdade de expressão (Aqui https://www.wook.pt/livro/liberdade-de-expressao-timothy-garton-ash/18777052)
Bom fim de semana!
“Food for thought”, muito interessante! Ou seja, a pior forma de “reinventar” a Democracia. Ou de a transformar. De a esvaziar. Sinceramente, não me admiraria que, um dia, o processo eleitoral seguisse por esse caminho. Deixando os Partidos políticos de apresentar um programa, assente num conjunto de propostas. O problema é que há cada vez mais gente que é facilmente manipulável (e não é só nos EUA), que, ou não tem instrução suficiente, ou tendo, o seu grau cultural e de conhecimentos (neste último caso, políticos, económicos e sociais) é reduzido. Ao mesmo tempo que as livrarias (supermercados e estações dos CTT) transbordam de livros, a sua qualidade, numa boa parte, deixa muito a desejar e continua a haver muita gente que simplesmente não lê ou não compra um livro. Mas que, não deixa de estar ligada ao Facebook, ao Instagram (neste particular exemplo pasmo de ver que uma pessoa coloca ali uma fotografia sua para depois aparecer numa revista, ou para receber os tais “likes” de gente que nunca viu e alguma vez virá a conhecer!)e outras redes sociais. Sobretudo, choca-me a dependência de muitas pessoas, embora talvez se verifique com mais frequência nos mais novos (numa faixa etária dos 15 aos 30 e picos, por exemplo), dos telemóveis modernos de todo o tipo, ou para lerem msg, mail, fotografias, etc e isto em todo o lado – nos transportes públicos, na rua, nos automóveis a conduzir, nos restaurantes, entre (ou mesmo durante) reuniões, nos velórios (sim, já assisti!), nos supermercados, etc! Quanto a este tipo de procedimentos que aqui nos revela através do seu filho (fez um excelente trabalho), nesse artigo do Guardian, uma Democracia “a la carte” é algo de assustador, de muito perigoso e que subverte e altera o conceito de Democracia. Vencerá quem conseguir fazer a melhor campanha indo ao encontro dos desejos mais imediatistas e primários de quem vota, sem qualquer preocupação de carácter social, político e económico para a sociedade. Vender-se-á um candidato como quem venderá uma qualquer mercadoria. A campanha de Trump foi um bom mau exemplo disso. Será aquele processo exportável? Não me admiraria. Deste modo, aquela frase de que as ideias, ou ideais, são à prova de bala, talvez um dia deixe de fazer sentido. Porque as ideias deixarão de existir. Terão sido substituídas pelo marketing eleitoral. Serão tão obsoletas como o telefone fixo preto. Quem sabe se o tal Admirável Mundo Novo já não estará a germinar, devagarinho?
ResponderEliminarP.Rufino
PS: só um pequeno e último ponto – a eleição de Trump é uma questão totalmente diferente do Brexit, em minha opinião. Não pode, nem deve, ser feita qualquer comparação, mesmo sabendo que Nigel Farage a defendeu. E depois, o Guardian, tanto quanto me recordo, foi contra o Brexit.
Olá UJM, gostei muito do texto do seu filho, mas não sei se estarei tão alarmista com os novos métodos de sondagem, como com a dessensibilização das pessoas quanto à sorte alheia.
ResponderEliminarPorque é disto que se trata, não é? Um novo e sofisticado método de sondagem, que permitirá que as promessas dos políticos retratem o que as pessoas querem ouvir e não o que os políticos na verdade farão. Bom, isto também não é novo! O que provavelmente irá acontecer, como está a acontecer no sector industrial, é que as tradicionais empresas de sondagens terão se adaptar ou fechar, porque a curto prazo, não fará sentido telefonar às pessoas para saber em quem votam.
A questão mais grave que por aqui vejo espreitar é se a maioria das pessoas tem ou não o direito de eleger alguém que diga o que querem ouvir. E se as pessoas têm ou não o direito de ter alguém a governar com exactamente esse programa. E por mais que queiramos chamar burros aos americanos foi isso que aconteceu. O que tramou a Hillary foram as duas faces. Porque a facção ultra-conservadora ou burra sempre existiu e sempre existirá. E muita gente, farta do seu voto ser efectivamente manipulado por lobbies e anúncios publicitários que nada dizem, votou contra, paradoxalmente confiando que o Trump presidente também tivesse duas faces!
O problema mais preocupante da sociedade, é que os países ricos importam-se mais em deixar de ter o novo modelo de telemóvel a cada dois anos, do que em matar a fome de gente que vive na miséria, e tirar da pobreza e da escravidão laboral milhões de pessoas. Mas, embora nos últimos anos tenha havido um ligeiro retrocesso, temos tidos, enquanto espécie, uma tremenda evolução nas últimas centenas de anos (pelo menos na parte ocidental do mundo), porque é preciso não esquecer que ainda somos os mesmos seres humanos que escravizavam outros seres humanos e os davam de comida para os leões!
Bom fim-de-semana para si e para o seu filho. Rita
PS: Acho muito bem que ponha o seu filho a trabalhar! Não nos faria mal enquanto leitores do seu blog, ter perspectivas masculinas sobre os mesmos temas que a UJM aborda, além de lhe permitir descansar um pouco mais.
Aqui vai um outro link bem esclarecedor das atividades subterrâneas de CA
ResponderEliminarhttps://youtu.be/mpbeOCKZFfQ
Olá Carlos,
ResponderEliminarMuito obrigada. Ia dizer 'interessante' mas talvez seja melhor dizer 'preocupante'.
Estive a ver o seu retrovisor. Escreva mais. Gostava de ler.
Um abraço!