Na sequência de alguns textos sobre os riscos da inteligência artificial (IA) num contexto desregulado e no seio de uma sociedade globalmente alheada destes temas (por exemplo, este post), dois Leitores contribuíram com o seu testemunho em comentários tão interessantes que, na altura, tomei a liberdade de puxar para o corpo principal do Um Jeito Manso (aqui e aqui).
Duas visões distintas: de um lado, o João L. que advoga o primado da inteligência da natureza e a certeza da impossibilidade de copiar ou ultrapassar a infinitude que habita o cérebro humano e, do outro, o Fernando Ribeiro, que nos traz a visão da engenharia que se abisma perante a capacidade quase imparável da tecnologia.
Porque a troca de argumentos continuou nos comentários e porque me parece impossível não dar o máximo relevo a esta troca de ideias, de novo puxo para um post autónomo a opinião de ambos. É um prazer quando les beaux esprits se rencontrent.
Ilustro com fotografias feitas este sábado in heaven.
[Não sei se a beleza, a fragilidade, a (im)perfeição da natureza pode algum dia ser suplantada por criações by IA. Mas talvez isso, um dia, também deixe de ser relevante.]
Também acho UJM: " os robots estão aí num mundo desregulado e o que não vai faltar é quem os use contra o interesse da humanidade". E o que acho mais preocupante é que os robots, ao contrário dos humanos (da maioria deles!!!), não têm dúvidas. Ou, para para dizer isto de outra maneira, de uma maneira que, em minha opinião, mostra o que separa a inteligência artificial de um cérebro: os robots não se baldam e em vez de ir trabalhar vão dar uma volta, ou às compras, ou andar de bicicleta com um sorriso nos lábios a pensar: "ai que prazer não cumprir um dever". Nós somos "imperfeitos", os robots não.
Fernando Ribeiro disse...
Relativamente à valiosa contribuição do seu leitor João L, tenho algumas considerações a fazer, do ponto de vista de um simples curioso, que é o que eu sou.
Ao longo dos anos, tem-se chamado "inteligência artificial" ao que não é, de maneira nenhuma, verdadeira inteligência artificial, mas sim um simulacro ou, chamando os bois pelos nomes, uma fraude. Uma fraude! O facto de um computador ser capaz de ganhar uma partida de xadrez ao Kasparov não faz do computador uma entidade minimamente inteligente. Quando muito, poderemos chamar inteligentes às pessoas que conceberam o programa de xadrez que o computador executou. Também é verdade que nenhum cérebro (humano) consegue perceber o que o próprio cérebro (humano) faz, mas têm-se feito significativos avanços nesse sentido, com a ajuda, inclusive, das redes neuronais artificiais (computacionais).
O leitor João L tem razão quanto ao facto de o número de neurónios e de sinapses existente num cérebro humano ser verdadeiramente astronómico. É verdadeiramente ASTRONÓMICO, sim, senhor. Contudo, a inteligência artificial tem uma vantagem sobre a verdadeira inteligência (orgânica), e esta vantagem chama-se velocidade de processamento.
Um neurónio é uma célula de um tipo especial, que tem por finalidade transmitir e processar informação, desde as terminações nervosas existentes nos órgãos sensoriais até ao sistema nervoso central, dentro deste mesmo sistema nervoso central e deste até às terminações neuromusculares. Um neurónio é composto por três partes, a saber: corpo celular, axónio e dendrites. O corpo celular ou soma tem sobretudo por finalidade manter o neurónio vivo e saudável; é onde se encontra o núcleo da célula, isto é, do neurónio. O axónio é uma fibra muito comprida que tem em vista transmitir a informação de um extremo do neurónio para o outro, fazendo-a avançar no espaço; um feixe de axónios é o que constitui um nervo. As dendrites contêm as sinapses, que são os pontos em que um neurónio comunica com os neurónios vizinhos, passando para estes ou recebendo destes a informação a tratar; existem dendrites em volta do corpo celular de um neurónio e no extremo oposto do seu axónio.
A informação entre neurónios faz-se, como já disse, através das sinapses, que quase sempre comunicam entre si pela libertação de compostos químicos, chamados mediadores. Esta comunicação não é elétrica, mas sim química. Nos axónios, a informação consiste em impulsos do campo elétrico que se vão propagando de um extremo ao outro dos mesmos; esta propagação do campo elétrico obriga a uma polarização elétrica das paredes do axónio e obriga a uma subsequente despolarização, depois de um impulso passar; enquanto uma despolarização não se completar, um axónio fica incapaz de transmitir nova informação.
Dadas as limitações apontadas, a velocidade de transmissão e de processamento de informação num sistema nervoso como o humano (incluindo dentro do próprio cérebro) é lentíssima. Ela é inferior a 1 m/s (360 km/h), quando os axónios não estão envolvidos por uma bainha de mielina, e da ordem de 2 m/s (720 km/h), quando os axónios estão envolvidos por mielina.
Bom, vamos abreviar, que isto está a ficar um relambório que nunca mais acaba e eu tenho mais que fazer. Dada a sua enorme vantagem em termos de velocidade (e ainda não usamos a fotónica em vez da eletrónica, mas pouco falta) uma rede neuronal artificial poderá não precisar de ter um número tão grande de "neurónios" e de "sinapses" como um cérebro humano, para poder ter uma capacidade de processamento equivalente, bastando usar uma e outra vez os mesmos "neurónios" e as mesmas "sinapses" (mas com "pesos" diferentes de cada vez, claro). Tudo dependerá do uso que se lhes der, isto é, do software. É claro que existe ainda um longuíssimo caminho a percorrer e muitíssimos anos a decorrer até que se consiga (espero que não) uma inteligência artificial que se possa comparar à inteligência real. Seja como for, têm sido feitos avanços muito significativos nesse sentido. Há alguns anos fiquei assustadíssimo quando alguém disse que tinha construído uma rede neuronal tão inteligente como um caracol. Sinceramente, não acredito que a tenha construído, mas se continuarmos assim, ela vai ser construída com certeza. E a seguir à inteligência do caracol, virá o quê?
João L. disse...
(com as devidas desculpas a UJM pelo abuso)
Caro Fernando Ribeiro, já vi que tenho aqui companheiro para umas belas discussões mas, sem querer abusar da hospitalidade da UJM, deixo-lhe esta provocação: a complexidade num ninho de (lentas) formigas é bem maior que numa corrida de (rápidos) carros de fórmula 1. São as interacções e a regulação que alavancam (para usar uma palavra da moda) a complexidade.
Fernando Ribeiro disse...
Caro João L., não me deixa provocação nenhuma, porque estou totalmente de acordo. São precisamente as interações e a regulação existentes nas redes neuronais computacionais que lhes dão o seu poder, incluindo o poder de aprenderem, a partir, está claro, de um certo "conhecimento" inicial que lhes é dado. Os exemplos fornecidos dos carros que já circulam sozinhos (experimentalmente, por enquanto) em algumas cidades dos Estados Unidos, ou do reconhecimento de padrões em imagens que a Google e o Facebook estão a desenvolver com resultados que já são extraordinários, são uma demonstração do que pode vir aí. A velocidade dos circuitos eletrónicos (e dos circuitos fotónicos num futuro próximo) pode permitir ultrapassar as limitações que tais redes não podem deixar de ter, através da reafetação dos seus recursos uma e outra vez, para uma e outra tarefa, a uma velocidade alucinante. Note-se que estamos a falar de redes neuronais, que já têm milhares e milhares de núcleos e um número incomparavelmente maior de interligações, mas que mesmo assim são infinitamente menos poderosas do que o cérebro. Já não são para aqui chamados os computadores que têm uma arquitetura tradicional, dita de von Neumann, com um processador central, bancos de memória e periféricos à volta. O computador que estou a usar neste momento já é pré-histórico.
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E, uma vez mais, agradeço ao João e ao Fernando o seu precioso contributo para uma reflexão que acho indispensável e urgente.
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Nem de propósito o artigo de destaque da Vanity Fair de hoje:
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