quinta-feira, fevereiro 02, 2017

Não quero saber o que pensam ou deixam de pensar sobre a eutanásia





Cá em casa, agora já estão todos a dormir. Os meninos deitaram-se mais tarde. Folguedo pegado. A mãe ainda veio um bocado aqui para a sala mas adormeceu pouco depois e acabou por ir logo deitar-se.

O outro ramo dos pimentinhas também cá esteve. Queridos, queridos, uns abracinhos mais bons, demorados, um consolinho mesmo bom. 

Felizmente hoje ligeiramente mais calmos do que no fim de semana. Como sempre, é a alegria potenciada. E, como sempre, houve cantoria. O mais pequeno é um verdadeiro artista. Não dá para acreditar.

Dia de festa a meio da semana. Nem todos na família são caranguejos. Também os há aquários.

Saí do trabalho um pouco antes das seis para poder ir ao supermercado e vir fazer o jantar a tempo. Um trânsito dos diabos mas deu. Tirei fotografias. Nunca fico nas fotografias e só me lembro disso quando as vejo.

Depois foi arrumar tudo. E preparar a roupa de amanhã. Quando aqui me pousei começou a dar-me o sono. Depois do post abaixo comecei a querer adormecer. Acho que adormeci mesmo.


Quando consegui espertar, a conversa da eutanásia na televisão. Sei que se anda a falar disso mas é tema que não me interessa. Não é tema para dele se falar como quem comenta casos da arbitragem.

Tenho lidado de perto com situações complicadas. Não vi vontade de morrer em quem muito sofria. Vi, sim, vontade de acreditar que as coisas pudessem melhorar.

Penso muito na minha tia. Era uma alegre jovem casadoira quando eu nasci. Desde pequena, gostei dela. Namorava um qualquer e eu achava graça ao casalinho. Divertida, brincalhona. Eu adorava-a. Depois começou a namorar um dos meus tios solteiros. Quando se casaram fui a menina das alianças. Quando a minha prima nasceu, era eu uma miúda, quis ser a madrinha e a minha tia achou muito bem. Quando me casei foi a ela e ao meu tio que escolhi para padrinhos. Toda a minha vida senti um afecto imaculado por ela e ela por mim. Quando lhe foi diagnisticado um cancro, tive um desgosto enorme pois, ao contrário do que, poucos anos depois, teve a minha mãe, o dela era grande e já estava relativamente espalhado. Depois de operada pensou que estava melhor, andava toda bem disposta. Depois voltou a ser operada. Piorou. Entretanto, o meu tio morreu, também um cancro. Um desgosto imenso o dela. Fraca, doente. Por fim com dores, cansada, sem forças. Mas sempre na esperança de melhorar, de que algum medicamento ou tratamento a pusesse melhor. Nunca a ouvi dizer: quero morrer. Nunca.

Quando foi o meu tio, no pulmão, eu andava a ver se conseguia que ele fosse a Cuba, havia lá um tratamento promissor, achava que se devia tentar tudo por tudo. Falei para a Embaixada, informei-me, falaram com o médico assistente. Eu a querer, a querer. A minha tia contava-me: O teu tio diz que tu estás a acreditar mas ele não, não quer, a viagem muito longa. O meu tio dizia que não queria ir e deixar a minha tia, também doente. Eu dizia: Mas vão os dois. Ele não queria, que não valia a pena. A minha tia dizia que achava que o cancro já lhe estava na cabeça, que ele tinha esquecimentos e ausências que não pareciam dele. E ela dizia-me: Sabes? Se calhar já não vale a pena. Mas eu insistia: Ó tia, vale, vale, vamos tentar. Morreu, à entrada do hospital, no dia em que o meu primo ia, com ele, falar com o médico sobre se ainda se ia a tempo. Mas foi isto assim. Não foi querer abreviar a morte.


Ao meu pai sim. Pergunto-lhe: então, pai, como vai isso? Responde: mal, muito mal, quero morrer. Digo: Outra vez essa conversa, pai. Está bom, não tem nenhuma doença, que conversa é essa...? Diz-me: Ó pá, estou farto disto. Mudo de conversa. Agora, no fim do ano, teve uma gripe complicada e depois uma hemorragia gástrica e teve que ir ao hospital para fazer exames. Lá, na maca, eu perguntava-lhe: Então, pai, como se sente? Respondia: Ó pá, mal, mas mal por me terem trazido para o hospital, não quero, não vale a pena tratarem-me, se fosse a mãe que é nova...agora eu...? ó pá, quero é que me deixem ficar em casa, deixem-me morrer, pá...

Mas depois, a caminho de casa, na ambulância, eu lá dentro com ele: Olha lá, então deixas o carro no hospital? Depois como é que vens cá buscá-lo? Expliquei que o meu marido estava comigo, que ia ele no carro. Ficou contente: Ah sim? Ah ele tem estado contigo? Ainda bem. Depois: Olha lá, já é tarde, não vale a pena ires à farmácia, amanhã de manhã logo se trata disso. Ou seja, já outra vez ao comando.

Verdadeira força da natureza, poucos dias depois, estava de novo bem e a rabujar e a dar ordens a torto e a direito, esquecido da vontade de morrer. 

Enérgico, independente e orgulhoso, é para ele, quando está completamente lúcido, um infinito desgosto ver-se dependente e incapaz de gerir a sua própria vida. Nessas alturas, acredito que lhe passe, genuinamente, pela cabeça que, cansado desta situação, preferia morrer. Mas logo muda de ideia e pede leite e bolo porque está é com fome.


Verdadeira prisioneira está a minha mãe. Incapaz de se separar dele, deixou de frequentar o seu círculo de amigas, ex-professsoras, que saíam, iam lanchar juntas, conversar e rir, deixou de ir ao cinema ou de ir fazer férias como antes fazia, quando o meu pai estava bem. Nos dias em que o meu pai, por dormir de dia, não a deixa dormir de noite, está ela desgastada, saturada, exausta. Diz-me então que não sabe se aguenta muito mais tempo isto, que ainda morre antes do meu pai. Digo-lhe que tire um mês de férias, que vão os dois para uma residência assistida, ou que deixe o meu pai em casa que a senhora que trata da higiene dele fica a tomar conta e que eu dou toda a assistência. Põe dificuldades. Não quer. Parece, nessas alturas, envolta numa fatalidade a que não consegue fugir. Acredito que, nesses dias de exaustão, pense que ficaria melhor se o meu pai morresse. Mas, no dia seguinte, o meu pai dorme bem, não a chama de minuto a minuto, ela dorme bem, acorda fresca e nem se lembra de queixumes ou desalentos. Conta-me coisas, ri. Hoje, quando liguei de tarde, vinha eu no carro a caminho de casa, estava o meu pai no cadeirão ortopédico (para onde vai na cadeira de rodas, uma ginástica tramada para o içar da cadeira de rodas e passar para o cadeirão e vice-versa) e ela no sofá ao lado a fazer tricot para os bisnetos. Perguntei se estava tudo bem, tranquilo. Disse que sim: Na boa, tranquilos. Perguntei se o meu pai estava bem já que odeia estar ali, quer é estar na cama, arma fitas, diz que o querem matar. Disse que sim, tranquilo, a conversar. Ou seja, completamente distantes de conversas mórbidas.

Portanto, em que momento é que se sabe, de certeza absoluta que a vontade de morrer é a sério, definitiva, irreversível?

Eu não sei. Mais: não sei se, em relação a mim ou a um dos meus mais próximos, teria eu coragem de dizer que sim, que se avançasse para esse momento sem retorno. Não sei mesmo.

Agora uma coisa eu sei: incomoda-me ver falar disto com se fosse bandeira partidária ou tema mediático.

E só espero que nunca isto seja referendado. O tema é sério e íntimo demais para ser menorizado em debates pouco elevados em que quem não tem saber ou vida se arvora a veleidade de ter certezas absolutas ou o mau gosto de fazer cartazes para enfeitar as estradas.


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Renata Tebaldi interpreta a Casta Diva

As fotografias provêm da National Geographic

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A quem possa interessar: no post abaixo há um homem com uma super-longa gravata e um animal morto na cabeça.


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8 comentários:

  1. Bom dia
    UJM, desculpe que lhe diga. O seu raciocínio não está correto. Esta é uma decisão que só pode ser tomada pelo próprio no pleno uso das suas faculdades mentais o que não é seguramente o dos casos pessoais que relata.
    Só quem já passou pelo sofrimento atroz de ter dores 24h/dia durante meses e meses a fio em que o simples ato de respirar provoca dores em todo o corpo é que sabe dar valor a esta situação. Acredite que sei do que falo pois já passei por uma situação destas. Não, não foi cancro. Viver assim torna-se inútil sobretudo se acrescentarmos a isto a dependência a todos os níveis. Se na altura, embora ainda nova e filhos pequenos, soubesse que não teria qualquer possibilidade de recuperação era o que teria feito. Uma das coisas que me motivava era não só acabar com o meu sofrimento mas sobretudo com o dos que me são mais queridos no mundo pois quem está à nossa volta sofre e não é pouco. Há um programa do 60' em que aparece a falar uma mãe com um cancro terminal que optou por esta opção e um dos argumentos que utilizava era exatamente esse: não quero que o meu filho me recorde decadente, com dores, num sofrimento insuportável, sem autonomia pois sei que é o que me irá acontecer. A senhora tinha relatórios de vários especialistas, independentes entre si, em que todos referiam o mesmo: sem hipótese de remissão com perca de funcionalidades a todos os níveis e extremamente doloroso

    Conheço quem, com 20 anos e devido à mesma patologia que a minha tenha pensado em suicidar-se. Só não o fez porque nos cruzamos e ajudei-a a superar a situação. Coisa que os médicos não conseguiam, tal como comigo, diga-se de passagem. Por isso prefiro que em vez de eutanásia se lhe chame suicídio assistido. Se a pessoa quer morrer e estando no pleno uso das suas faculdades isso poder ser´feito sem ser crime. Há muitas situações que ocorrem e claro, não podem vir a público porque é crime. Acredite no que lhe digo. A questão trata-se, portanto, de descriminalizar. É isso e só isso. Nada mais.
    Beijo
    GG

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  2. Todos os argumentos que senhora apresenta estão profundamente errado. Mas o que tem uma incapacidade resultante de uma doença rara com sofrimento/dores?
    Acontece que a senhora nunca conheceu outra forma de vida por isso ela não tem nem nunca terá termo de comparação e, pelo que sei, o seu corpo não lhe oferece 24/dia dores. Da forma como ela fala parece que estamos a falar de eugenia! Lamentável.
    http://visao.sapo.pt/opiniao/bolsa-de-especialistas/2016-02-25-E-se-ajudassemos-os-outros-a-viver-

    e são estes argumentos e muitos outros do mesmo tipo que estão a ser usados.
    Poderá haver abusos? Claro que sim. Mas isso faz parte da condição humana. Basta ver-se o caso agora da appacdm de Alijó ou dos atropelamentos com fuga ou dos lares de idosos clandestinos.
    No suicídio assistido trata-se de despenalizar quem ajuda a pessoa, a seu pedido, depois de esgotados todos os recursos médicos.
    Aqui, tal como na IVG, todos os argumentos desonestos são usados.
    GG

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  3. Descuple estar aqui a incomodá-la mas olhe
    sei lá
    está aqui o que tenho estado a dizer

    http://visao.sapo.pt/opiniao/em-sincronizacao/2016-02-24-Ha-quem-compre-a-morte-pela-internet.-E-nos-fingimos-que-nao-vemos-

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  4. Também não concordo consigo. As situações não são todas iguais. Nem as pessoas. E há sofrimento intolerável para quem padece e para quem assiste, de coisa que não cura e cuja libertação só a morte traz. Francamente não vejo qualquer problema em que o próprio, no uso das suas faculdades, decida se quer ou não continuar a sofrer. Portanto, aprovo a descriminalização da morte assistida. E julgo que os debates são necessários para se equacionarem as várias vertentes do acto e todos entenderem que não é decisão que se tome de ânimo leve, mas que existe e é opção que pode ser tomada sem que tenha de ser mascarada, escondida, vista ainda como condenáel e punível por lei.

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  5. Nesta matéria, concordo com os comentários que aqui reproduz e nesse sentido tenho de discordar de si. Também prefiro a designação de morte assistida. A questão, em minha opinião, não é, nem deve ser, em circunstância alguma, política (ou politizada) e menos ainda de carácter moral. É uma questão de Direito de um direito que nos deve assistir e não nos deve ser recusado. É uma questão também de ética, o que é diferente de moral. Já concordo consigo quanto à questão do referendo. O referendo, sendo um instrumento constitucional de qualquer Estado de Direito e Democrático, deve ser devidamente acautelado no que respeita a determinadas situações, ou temas, como o aborto e a eutanásia, só para dar estes dois exemplos, isto porque seriam presa fácil de demagogia lamentável (como aquela que a Igreja faria, mais os Partidos de direita, etc). Este tipo de questões, por serem demasiado sensíveis e delicados, deve ser debatido apenas no Parlamento, para assegurar uma maior distância e seriedade ao debate. Já, por exemplo, um referendo sobre a Regionalização é, em minha opinião aceitável, assim como teria sido, se tivesse havido respeito pelos cidadãos eleitores, no respeitante à nossa adesão ao Euro, ou mesmo até (e se calhar sobretudo) à UE (naquela altura), pelas implicações que teria na vida de todos nós (acredito que haveria um Sim à UE, mas um Não ao Euro). Voltando à Eutanásia, nenhum governo, nenhum parlamento, nenhum código, nem mesmo nenhuma constituição deve impedir-nos de querer morrer em dignidade, se assim o decidirmos pensadamente e em face do sofrimento que nos leva a optar por uma decisão desse tipo. Nada mais humilhante do que deixar-se um ser humano perecer aos poucos em decadência física, sob um sofrimento violento. Digo-lhe uma coisa UJM, já me coloquei essa questão, dando a mim próprio e àqueles com quem abordei a questão de que se um dia ficasse paraplégico do pescoço para baixo (porque é bem diferente daquela da cintura para baixo, por razões óbvias), só movendo a cabeça, gostaria que alguém me ajudasse a partir desta vida que deixara de ter sentido para mim. O mesmo no que respeita, por exemplo, ao Alzheimer. Se me apercebesse de tal doença, sabendo como nos deixa - tenho exemplos dolorosos num tio paterno e numa mãe de um amigo e aquilo a que assisti deixou-me devastado. Nesse caso, eu pediria, enquanto ainda tivesse a lucidez suficiente para levar a ideia avante, a alguém que me receitasse um fármaco qualquer que me levasse desta vida, poupando-me à degradação inevitável e ao sofrimento dos que me são próximos. Não aceito que uns tantos me queiram impor os preconceitos morais e religiosos deles e me seja impedido de decidir morrer com dignidade. É um princípio ético. E um direito de cada um de nós. E nenhum deles nos pode ser negado. Ouvi há uns dois dias, na TSF um advogado a defender exactamente esta questão com base também no Direito. Foi uma argumentação bem articulada e cheia de razão. Isto não quer dizer que não compreenda a posição dos médicos. Mas, voltemos ao início da questão: é a nós e a «mais ninguém» que compete decidir, num caso extremo, como nos exemplos que têm sido dados, sobre pôr fim às nossas vidas, nessas circunstâncias e morrer dignamente, poupando igualmente a imagem da nossa degradação e sofrimento aos que nos são próximos. Deixo entretanto uma pergunta: e aqueles, com doenças graves, cancros, etc, que aguardam meses e até anos por consultas, tratamentos e operações, acabando muita das vezes por morrer antes de serem atendidos? Não será isso uma espécie de eutanásia, levada a cabo pela incapacidade do nosso SNS responder a estes casos? Meu sogro foi chamado para ser tratado ao cancro que o vitimaria, já depois de ter falecido. Ainda teve dignidade de vida, mas porque tinha dinheiro para isso e não esperou que o chamassem. Deixo-lhe um abraço amigo e cordial, P.Rufino

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  6. Portanto não posso dizer o que penso sobre o tema e vim só lembrar os livros da Marie Hennezel como o Nós não nos despedimos, que este post me fez recordar.

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  7. Uma questão verdadeiramente fracturante. Bem mais fracturante do que, por exemplo, a do casamento de pessoas do mesmo sexo e mesmo a do aborto O post e os comentários ao post são disso a prova. Temos ainda muito debate pela frente e muita argumentação a ser defendida com unhas e dentes. Nesta questão "trabalho" a partir da ideia de que preconceitos morais e religiosos não se podem sobrepor ao direito de cada um decidir sobre a sua "vida".
    Boa parte das justificações contra - e não é o caso da do post de UJM - andam à volta, sem o dizerem, da antiga ideia transposta para dogma cristão de que o Homem é corpo e alma; logo.... morrendo o corpo "sem autorização de Deus" a alma perder-se-á irremediavelmente nos catacumbas incendiadas do inferno.

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  8. Revejo-me nas suas palavras. Também a mim me incomoda pessoalmente este debate, ainda mais quando os argumentos se revestem de tom de autoridade e de abstrações sobre eventuais livres arbítrios. Incomoda-me que a resposta ao sofrimento seja a morte e a ideia, por vezes implícita, de que não há dignidade e amor na dor de quem está de partida e de quem se despede.
    Todavia, não me parece negativo que se discutam estas matérias, se incluídas numa reflexão mais vasta sobre a condição humana e sobre o que as pessoas e a sociedade têm para ajudar e confortar aqueles que sofrem, que estão no fim do seu caminho.

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