sexta-feira, fevereiro 03, 2017

Lucia, Maria e José





Tenho para mim, crystal clear, que, claro, são histórias. Lendas. Parábolas. É como a história de Romeu e Julieta. De Ulisses e Penélope. Do Adão e Eva. Contamo-las, passam de geração em geração, mas toda a gente sabe que são histórias. Contos infantis ou contos para adultos -- mas contos.


Haverá alguém com dois dedos de testa que acredite que a mãe de Jesus engravidou por obra e graça? Diria que não.


Há bocado, o mais pequeno que anda a desenvolver na escola infantil o projecto 'bebé' dizia que as sementinhas passam do senhor para a senhora encostando a pilinha ao pipi. Depois desatou a rir-se. A seguir perguntou-nos: vocês também fizeram isso? Eu e a mãe sorrimos (tentando não rir) e dissemos que sim. Estava sentado na cama a vestir o pijama. Atirou-se para trás a rir à gargalhada. Perguntou à mãe: 'o pai e o tu fizeram isso?' A mãe disse que sim, claro. O que ele se riu. Eu disse que era o normal.


Agora imagine-se que lhe íamos dizer que uma senhora tinha ficado para ter bebé apenas porque uma pombinha a visitou. Desatava também a rir-se. Haveria de fazer mil perguntas e a gente sem saber responder a uma única.

Uma vez um colega meu, pessoa completamente racional no seu dia a dia mas muito crente, dizia-me que, para um crente, a ressurreição é o momento crucial. Pasmei. A ressurreição?! Mas o quê? Acreditam mesmo que uma pessoa morre, fica morta três dias e depois levanta-se, fresca, pronta para outra? Ele abanou a cabeça, desconsolado. Disse-lhe: Mas se acredita nessa história da carochinha diga-me porque é que a história de Jesus acabou ali, porque é que nunca mais ninguém ouviu falar dele. Voltou a abanar a cabeça. Que eu não compreendia. Disse: mas então explique. Abanou a cabeça, não disse nada, achou que não valia a pena. Concordei: não valia a pena.


Fico sempre um bocado ignorante, sem conseguir saber se as pessoas crentes acreditam mesmo naquelas histórias. Se acreditam que o pai natal deixa presentes no sapatinho. Que a fada dos dentinhos vai buscar o dentinho de leite e deixa lá um brinquedo. Se calhar acreditam que é tudo verdade.

Fico a pensar que deve haver uma twilight zone onde uns conseguem mover-se e eu não.

Eu cá sou mais básica. Não consigo sequer conceber que alguém acredite nessas cenas. Não consigo frequentar missas, não consigo encaixar-me nos rituais de ajoelhar, dizer fins de frases, sentar, levantar, dar beijinho para um lado, beijinho para outro, ouvir cantar, ajelhar, dizer umas coisas.


Mas, caguinchas que sou, quando me vejo aflita ou a desejar muito alguma coisa de muito especial, mentalmente peço protecção ou apoio. Não sei a quem é que peço. Peço a alguma entidade abstracta que queira dedicar-me alguma atenção. Para dizer a verdade, não sei se peço ou se desejo com todas as minhas forças. Depois agradeço. Mas também não sei se agradeço ou se me sinto agradecida. 

Sou agnóstica. Já o disse aqui muitas vezes. Não consigo teorizar sobre o tema. Sinto-me pouco mais do que uma partícula elementar no meio de um infinito universo. O que rege esse universo eu não sei se é o caos ou o acaso ou outra coisa qualquer. 

Mas isto para dizer que, no meio disto, evidentemente que não me passa pela cabeça que uma freira diga que acha que Maria não era virgem e que acha que seria normal que Maria e José, como qualquer casal, tivessem relações sexuais -- e que, perante afirmação tão banal e razoável, meio mundo lhe caia em cima.

La Apostata Dominica Lucía Caram en una escandalosa entrevista aseguró que la Virgen María y San José tuvieron relaciones sexuales, en el programa del 29 de enero de Chester in love, conducido por el periodista Risto Mejide.



As declarações da irmã Lucía Caram num programa de televisão geraram polémica em Espanha: a freira recebeu ameaças, foi repreendida pela hierarquia da Igreja e teve de pedir desculpa e esclarecer o que quis dizer. No fundo, a religiosa teve noção de que o seu ponto de vista poderia ser mal entendido, pelo que evitou dizer diretamente que Maria, mãe de Jesus, não era virgem.


"Acredito que Maria estava apaixonada por José. Acredito que eram um casal normal", começa quando questionada acerca da questão da virgindade de Maria, "um conto infantil que não é atualizado" nas palavras do apresentador do programa Chester in Love, do canal Cuatro, Risto Mejide. "Tinham sexo?", pergunta o anfitrião. "Bem, se digo que sim, caem-me todos em cima. Acho que é uma coisa normal num casal", defendeu, salientando que sabe que é uma questão "difícil de entender, de acreditar".


Na sequência destas afirmações, a freira foi repreendida publicamente pelo bispo de Vic e recebeu ameaças. Simultaneamente, houve uma petição para que fosse suspensa da ordem religiosa. Lucía Caram viu-se obrigada a pedir desculpa a quem se sentiu ofendido. (...)

Acho isto de loucos. Penso que vivo numa era em que toda a gente é esclarecida e, afinal, ainda me saem destas. Pasmo. Juro. Pasmo. Como é isto possível?

Depois penso que são pessoas assim, mal informadas, pouco esclarecidas, que tomam uma parábola por um relato histórico, que facilemente se deixam manipular e acabam a tomar as decisões mais anacrónicas e aberrantes possíveis.

Os crentes que me desculpem. Eu até admito que as pessoas acreditem num deus que dita leis, distribui favores, traça punições. Coisas assim. Mas, bolas, para se ser crente é preciso fazer uma leitura literal da história da carochinha...?

Algum iluminado que me explique.


3 comentários:

  1. Texto muito revelador da importância em falar sem rodeios destes temas religiosos.Nao posso estar mais de acordo.
    Bem haja

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  2. Coitada da freira! Tinham de fazer a pergunta era ao Papa Francisco...Rita

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  3. Subscrevo o que escreveu e o que o Leitor anónimo disse. Na verdade…
    O que mais me espanta, é haver pessoas com instrução e cultura geral a acreditarem nestas fantasias. É algo psicopático. O seu texto, para além de constituir um contributo de reflexão, com carácter totalmente informal, é divertido. Gosto bastante de a ler. Bom fim-de-semana!
    P.Rufino

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