sexta-feira, dezembro 30, 2016

Rosa Amador





Em miúda tive umas duas ou três vezes 'anginas'. Aquilo dava-me uns febrões que me faziam delirar. Era uma coisa terrível. Não estava a dormir. Estava acordada, com alucinações. Ficava apavorada. De tal forma apavorada que ainda hoje me lembro. O filme de terror era sempre o mesmo: estava numa casa imensa, muito alta, cheia de coisas, 'muito, muito...', gemia eu, e tinha que encontrar qualquer coisa no meio de milhares ou milhões de coisinhas pequenas. Encontrar agulha em palheiro. Sabia que não conseguia mas, por algum motivo, era como se estivesse obrigada, e era a impotência absoluta, 'tanto, tanto... não consigo...'. Depois os meus pais molhavam-me a testa, os pulsos, e, aos poucos, eu saía desse estado. Ficava então como que em letargia. Lembro-me de ficar de cama. Doía-me muito a garganta, não conseguia engolir. 

Felizmente nunca mais tive tal coisa. Agora acho que não estou com febre e, muito menos, estou aterrorizada. Mas estou como que desligada. Não é preciso ter gripe para me sentir assim. Aliás, não raras vezes, me impaciento ao ter que passar parte do meu tempo entre pessoas que são quase o meu oposto a todos os níveis ou ao me ver cercada, a nível de opinião dominante, por vacuidades ou por sentir que o meu tempo se extingue sendo consumido de uma forma tantas vezes contrária à minha natureza.

No entanto, não estou a vitimizar-me. Não passo os meus dias agrilhoada nem faço nada que belisque a minha consciência. Podia era, num mundo ideal, levar uma vida mais em consonância com a pureza íntegra da terra, conviver mais com a gente que ainda não se deixou conspurcar por uma coisa que não é senão um arremedo de progresso, podia ter mais tempo de qualidade para mim.

Não estou a delirar. Mas o que as minhas mãos procuram hoje não é senão agulha em palheiro. Não quero escrever sobre assuntos que perdem a relevância no dia seguinte a terem surgido. Não quero escrever sobre as futilidades que diariamente me cercam, quase me asfixiam.


Já andei pelo Cézanne, já andei por vários lugares assim e, nesta demanda, agora vim parar a um lugar maravilhoso. 

Estou há um bom bocado, encantada, ouvindo pessoas a falarem. Não falam de nada que seja decisivo para o futuro do mundo nem pensam que têm a chave do conhecimento universal. São pessoas que falam da sua vida, das suas memórias. Pessoas tão pessoas como eu ou como quem aqui me lê ou como quem escreve blogs altamente reflexivos ou artigos em jornais ou livros ou como quem perora nos balcões comentadeiros dos canais de televisão ou como quem discursa na Assembleia da República. E, no entanto, pelo menos para quem vive nas grandes cidades, como é o meu caso, pessoas que é como se já nem existissem.

Para aqui partilhar convosco, escolhi as palavras de Rosa Amador. Mas poderia ter escolhido as de Júlia Emília Esteves Tavares, as de João Alberto Barroqueiro, as de José Rebimbas ou as de José Passarinho e de Angelina, conhecida por Passarinha, ou de outros.


Ouvindo e vendo Rosa Amador lembrei-me de um gosto meu de que já me tinha esquecido.

Na casa onde antes vivia, quando os meus filhos eram pequenos, havia um tanque na varanda. Por causa do tanque, não podíamos lá pôr a máquina de lavar roupa. Tinha que estar na cozinha que não era enorme nem tinha recanto para máquinas, e isso não dava muito jeito. De vez em quando, o 'problema' vinha à baila e os homens da família, reconhecendo a dificuldade em transportarem o tanque (e iam colocá-lo onde? ao lado do contentor do lixo...?), arranjavam soluções. A conversa geralmente acabava na mesma solução radical de sempre: partirem o tanque à marretada e transportarem os pedaços. Nunca aderi à ideia. A verdade é que gosto imenso de lavar roupa à mão. Houve uma altura em que a máquina se avariou e não conhecíamos quem a arranjasse. Durante um ou dois meses lavei a roupa toda à mão. Meter a roupa na água, trazê-la escorrendo para a pedra, ensaboá-la, esfregar, passá-la por água, torcê-la. Tudo coisas que me davam prazer. Volta e meia ainda lavo roupa à mão mas num alguidar ou no lavatório da casa de banho pois nesta casa não há tanque.


Lembro-me, quando era pequena, de as minhas avós terem tanques. Tinham também máquinas que tenho ideia de serem, as primeiras, relativamente elementares, um simples tambor sem qualquer outra função que não a de rodar a roupa, a água e o pó (como elas chamavam ao detergente). Mas lembro-me, também, de, relativamente perto da casa de uma das minhas avós, haver uns tanques colectivos. E lembro-me de gostar de ir ver as mulheres a lavarem roupa que levavam em grandes alguidares de madeira (selhas, seria?). Eram mulheres com braços fortes, com uma energia transbordante. Batiam a roupa com força na pedra, punham a corar ao sol para ficar mais branca, conversavam enquanto lavavam, era um festim. Os tanques estavam debaixo de um telheiro e ao lado havia as cordas que eram levantadas a meio com paus, caso estivessem muito pesadas. Observar aquilo era para mim um fascínio.

Onde ficou esse meu mundo, agora que apenas piso corredores de edifícios energeticamente eficientes, com elevadores equipados com equipamento de imagem e som, com salas onde se faz video-conferência ou se usam flip charts inteligentes? Sinceramente não sei.

Mas ainda existe. Num qualquer recôndito lugar dentro de mim, ainda existe esse lugar. Imaculado.


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As magníficas fotografias e os maravilhosos filmes são do veterinário Jorge Bacelar que também é fotógrafo e, como se vê, muito mais que isso.


Rosa Amador conversa com Jorge Bacelar.
Os lavadouros públicos.



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Mais vídeos neste lugar mágico


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E, a quem ainda não visitou o post mais abaixo, permito-me recomendar uma ida até ao mundo de Cézanne.

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3 comentários:

  1. Gostei do que li. Lembrei de tanta coisa...

    Bom ano. Saúde, trabalho, diversão e amor.

    Beijinho

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  2. voltei..

    estive a ler umas listas que agora fazem sobre tudo e nada...tempos modernos....só espertos...

    Qual a melhor Universidade do mundo?
    A de Évora porque entram Alentejanos e saem Engenheiros.

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  3. D. Rosa é uma senhora despachada que gosta de lavar no tanque se é verão. Que hoje, ela mesma não deve fazê-lo no inverno. E eu que julgo que as máquinas não substituem completamente as mãos, dou graças por existirem. Porque, como ela bem diz, lavar a roupa da semana, numa família numerosa, é coisa demorada. Os lençóis dão um trabalhão, nunca mais acabam. Talvez façam falta locais onde as pessoas se encontrem, mas não precisam ser lavadouros à antiga:). E quem tem saudade de lavar à mão compra um tanque e põe na varanda:). De certeza só lava peças pequenas. Não é agradável ter de partir a película de gelo para lavar, ficar com as mãos vermelhas e engadanhadas até doerem. E mesmo assim debruçar-se horas e horas a puxar uma peça e depois outra e outra até não haver peça por lavar.

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