sábado, novembro 19, 2016

Ela


Eu conto.
                                                    Ou melhor, tentarei contar.
(É que não é fácil).




Contextualizo.

Tive uma semana de cão. Mas não de cão de madame. Cão de rua, rafeiro mesmo. Trabalho e mais trabalho, problemas, dureza, rudeza, crueza, confusão, furdunço, uma crise pegada de manhã cedo até tarde na noite. Na quinta à noite, por volta da meia-noite, enviei um mail a dar uma desanda das antigas, bruteza pura e sem revisão para a prosa seguir esquinada mesmo -- se é para ser far west, então contem com o meu poder de fogo. Na sequência, comecei esta sexa-feira em ponto de ebulição, capaz de fuzilar quem se me atravessasse à frente, fosse por que razão fosse. 

No entanto, logo pela manhã apareceu-me um arcanjo alto, sorridente, muito louro, olhos azuis muito claros e a tocar uma daquelas músicas de que os meus ouvidos tão sedentos têm andado. Tudo certo, perfeito. Irrepreensível, os olhos faiscando de energia e simpatia. Começou por dizer que não tinha feito o que eu tinha pedido mas, sim, o que lhe tinha apetecido. Em condições normais, estando eu capaz de estraçalhar qualquer um e, ainda por cima, logo de manhã, tinha ido porta fora na hora ou, se lhe fosse concedida a possibilidade de permanecer, seria para ser trucidado. Mas a um arcanjo descarado e sorridente algumas graças podem ser concedidas -- e em boa hora o fiz. Surpreendeu-me e agradou-me.

Pensei: um bom augúrio.

Contudo, logo depois a coisa complicou-se e os telefonemas choveram. Exaltei-me ao telefone, disse que a coisa só lá ia se rolassem cabeças. Rua. Gente assim é na rua e sem contemplações. Tentaram acalmar-me, que talvez não fosse a melhor solução. E eu com pouca paciência. Disse, farta, farta disto!, e perguntei: que raio de porra é esta? E senti a adrenalina a borbular-me nas veias. Quando saí do meu gabinete, o pessoal que está no open space ali perto fingiu que estava a trabalhar, como se não tivessem ouvido a minha fúria.

Saí de lá a chispar. E só pensava: farta, farta disto. Fui almoçar a um sítio descansado e em boa companhia. Passeei abraçada. E, no fim, já me sentia melhor.


Quando voltei de tarde, já para outro local, ia a pensar: que crise haverá hoje? se está como tem estado, a coisa não vai correr bem. Mas, bem lá no fundo, a minha proverbial condescendência parecia querer estar de volta.

Pois não foi precisa. Parece que o meu mail da meia-noite tinha produzido efeito. Ou que alguma nuvem negra se tinha dissipado. De repende, a normalidade. Uma acalmia até estranha.

Pensei que alguma coisa de muito misteriosa devia estar a acontecer. Passei por um, por outro, por outro. Nem sinais de crise. Tudo sereno e sorridente. Pus-me por ali, gracejei, gracejámos, uma inesperada bonança.

Ocorreu-me: algum milagre aconteceu, quiçá uma pomba branca tenha pousado no inexistente beiral da minha casa. E concluí: estou é a precisar de ir ao cinema, jantar fora, laurear. Pensei também: vou sair cedo.

Eis senão quando, por volta das sete da tarde, estava a começar a desligar o computador, vejo à porta do gabinete um ex-colega que já não via há quase um ano. Disse que tinha sabido que eu andava com muito trabalho, que não estava a ser fácil e tinha resolvido passar por lá para me dizer olá, para me dizer que soubesse eu que muito estava ser feito, que lhe tinham contado e que ele estava contente, que tinha querido ir lá dizer-me isso.

Juro que nem queria acreditar. Por um lado queria sair cedo e aquela visita estava a atrapalhar-me os planos mas, por outro, depois de uma tarde tão pacífica, aquela visita para me apoiar trazia-me um amparo suplementar -- e, ultimamente, tanta falta por vezes tenho sentido dele.

Mas, pronto, apesar das palavras amáveis e amigas, ainda saí a horas de, mal entrada no carro, ligar a desafiar para pegarmos um cineminha. Já depois, os dois no carro, escolhemos: ou era o do soldado corajoso ou o Ela, com Isabelle Huppert. Talvez por me saber exausta: guerra não.


E assim fomos ver o último filme de Paul Verhoeven.



E eu não sei que diga do filme. Talvez que saí perturbada, sem saber que pensar.

A primeira metade, à parte a violência da cena de violação, foi leve, daquelas simpáticas comédias românticas francesas em que os actores são BCBG, e foi mesmo, por vezes, bem divertida.

Mas a segunda vai em crescendo, uma violência, recordações violentas, uma atracção violenta, sexo violento. E a mim custa-me imenso presenciar violência. Mas não é violência a toda a hora nem violência gratuita. Há gentileza e sedução. Psicologicamente há naquelas cenas, que são estranhamente credíveis, alguma perplexidade (pelo menos para mim; perplexidade ou inquietação, não sei bem dizer). Isabelle Huppert magnífica como sempre. Independente, segura, sedutora. Mas não apenas se aproximou da linha vermelha como a pisou.

Nas cenas de violação, encolhi-me na cadeira quase como se fosse eu que estivesse a ser violentamente rasgada.

O violador (que actuava de cara tapada) é o homem que ela, sem saber que é ele, deseja e seduz. Inquietante o que se passa depois. O violador é um homem encantador. E ela é encantadora. Mas, ao mesmo tempo e sem perder o seu encanto, incomoda a namorada do ex-marido e, sem qualquer incómodo por isso, tem sexo com o marido da melhor amiga.

Não vou descrever mais o filme porque acho que deve ser visto. Também não o vou comentar porque há coisas, mesmo em mim, que estão para lá do meu entendimento. Não sei o que diga nem o que pense.


Haverá mesmo, em todos nós, em maior ou menor grau, alguma dose de pscipopatia? - é o que eu gostava de saber.

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Isabelle Huppert, Laurent Lafitte e Anne Consigny


Elle  - Trailer (2016) - Paul Verhoeven 




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E agora vou dormir. Passa das duas da manhã e estou só a deixar-me dormir.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores um belo sábado.
Be happy.


8 comentários:

  1. Perdi o interesse no filme. Detesto violência. Mais ainda se estiver relacionada com sexo. Não sei. Sou contra.
    E hoje acordei com o magnífico concerto do Vitorino. 40 anos de carreira.

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  2. Bom. Também não devo ver esse filme. A não ser, talvez, se mo tragam a casa. Detesto perder tempo com filmes violentos e que nem consigo olhar. Fui ver a rapariga do comboio é é tudo de mau ali. Por que é que não vi antes a Meryl Streep a cantar ópera também não sei, porque foi com esse intuito que saí de casa. Portanto, deve ter sido pura parvoíce.
    Talvez haja um lado nosso um bocadinho psicopatológico. Mas os filmes - alguns - extremam esses lados e torna-se um bocado doloroso para quem assiste.

    Desejo-lhe um óptimo FDS, com semanas dessas ninguém se aguenta se não se salva o fim de semana. Portanto, salve-se que agora tem tempo. Durma, passeie, reúna-se com quem gosta. Coma alguma coisa que aprecie. Sei lá, faça coisas que apeteçam e sem dano a terceiros. De preferência que lhes façam bem (dois em um). Mas se forem inóquas também não vem mal ao mundo.

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  3. Ainda ontem falava com o meu irão sobre um certo «renascimento» do outrora essencial cinema francês. E está algo a acontecer, sem dúvida.

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  4. Vi o filme. Achei excelente. A personagem principal é interessantíssima. Desbocada, elegante, dominadora. E acho que boa pessoa. Será que uma pessoa que não o fosse poderia ter uma relação assim com o ex-marido (um tipo porreiro, apesar de não deixar de ter o seu quê de ridículo, com a sua preocupação egocêntrica de a namorada conhecer os seus livros) ou com a melhor amiga (apesar de tudo!)? O que me dá pena nestas histórias é a dor por que as pessoas têm de passar para terem um pouco de... qualquer coisa: prazer, felicidade, alívio, o que for que procurem ou precisem. Gostaria que não tivesse de ser assim.

    Bom domingo, UJM!
    JV

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  5. Olá Rosa pinto,

    O filme é muito bom. Tem uma violência intrínseca mas tem também muito charme, muita delicadeza, muita graça. Vá ver, Rosa. E, nas cenas de maior violência, feche os olhos.

    Acho que vai gostar.

    Um bom domingo!

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  6. Olá bea,

    Obrigada pelas suas palavras simpátcas. O sábado já foi bem tranquilo e o domingo espero que o seja também.

    E se calhar não usei as palavras certas para falar do filme. Perturba, sim. Mas é um filme muito bom. Se puder vá ver e depois diga-me o que achou.

    Um bom domingo, bea!

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  7. Olá Fernando Lopes,

    Eu sou um pouco suspeita porque gosto muito do cinema francês. Passou por uma fase meio experimentalista mas nos anos vi belíssimos filmes franceses. Este é um filme inusual mas muito bom.

    Gostava de ler opiniões sobre ele. Se for ver, depois escreva, está bem?

    Um bom domingo, Fernando.

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  8. Olá JV!

    Gostei de ler a sua opinião. O filme é excelente, tem razão. Perturba um bocado, não é? A mim, causou-me um bocado de impressão a forma como ela reagiu, não apresentando queixa ou, depois, alinhando naquela 'pancada' dele. Mas o filme é todo ele extraordinário. E tem razão: a personagem da Isabelle Huppert é marcante.

    Um belo domingo JV!

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