Há muitos, muitos anos, eu era uma jovem adolescente apaixonada. Desde menina que tinha outros meninos apaixonados por mim. Se me lembro de mim na infantil, lembro-me dos meninos por quem eu estava enamorada e de outros a quem eu não retribuía. Gostava de não retribuir. Gostava de sentir o meu poder de fazer sofrer. Coisa de crianças. Eu era alegre e brincalhona e já alguma dose de malícia e os meninos achavam-me graça. Mas aos doze anos as coisas mudaram. Já falei muitas vezes desse meu grande amor. Éramos bons alunos mas pouco estudiosos, ele muito truculento, sarrafeiro a jogar futebol, aguerrido, irreverente a ponto de ser ameaçado de suspensão ou de passar a noite na esquadra -- nada de mais, apenas rebeldia, gosto pelo desafio, tentação por pisar o risco. Tudo coisas que sempre me atraíram. O pai muito austero, a mãe muito convencional, tias-avós ultra conservadoras e ele assim, um enfant terrible. E, ao mesmo tempo, meigo, sensual, perdido de amor por mim. Com ele, o meu corpo aprendeu a ser um corpo de mulher. Foram anos de grande amor. Muitas vezes, quando o via sem esperar, o meu coração disparava a ponto de me doer, e, quando me zangava com ele, e muitas vezes me zangava, sofria com medo de, por orgulho, o perder. Nunca sofri por amar quem me não amasse. Mas lembro o que sofria, o corpo todo numa ansiedade, quando não sabia dele, quando sabia que se tinha metido em sarilhos, quando o via a desafiar os professores, quando o via a falar com alguma rapariga que eu sabia que ele achava interessante. Sim, nessas alturas eu sofria de tanto amor.
Ele tinha ciúmes e eu gostava de lhe fazer ciúmes porque também gostava de seduzir e de ver o efeito que a minha sedução provocava. E ele zangava-se e eu ficava com medo que ele se vingasse. E passámos anos nisto. E, de cada vez que nos zangávamos, logo a seguir fazíamos as pazes ainda mais apaixonados que antes.
Nesses anos da minha entrada na adolescência, entre os doze e os dezasseis anos, eram frequentes as festas de anos ou outros encontros ou convívios que giravam em torno da dança. Ele e outros montavam aparelhagens, amplificadores, luzes. E tinham discos e creio que cassetes e era até ser noite. Claro que havia também lanchinhos, conversas sentados num canto, encostadinhos, as mãos dadas, ele com o braço nos meus ombros ou a pôr o meu longo e pesado cabelo para um lado para me beijar a nuca, o pescoço, o ombro.
E dançávamos freneticamente, a música a tirar-nos de dentro do corpo e, depois, quando os corpos pediam recolhimento, passavamos para o slow. Um deles não gostava de dançar mas gostava de se ocupar da escolha das músicas, de aumentar e baixar o som e a intensidade da luz. Sabia o que fazia e sabia sentir o ambiente.
Havia uma música de que eu gostava especialmente. Podíamos estar a conversar ou a descansar que, mal ela começava, logo eu o puxava pela mão ou logo ele me agarrava e me levava para a pista. E logo eu me deixava abraçar e abraçada dançava, o meu corpo e o dele a uma nota só. Joan of Arc.
E, nos momentos em que a música requebrava, o abraço era mais profundo e a minha entrega mais total. Total como pode ser total a entrega de uma menina que aprendia a percorrer o caminho dos afectos. Outras vezes, ele dizia a letra baixinho, o rosto encostado ao meu e a voz dele era veludo, brasa, carícia e eu ouvia arrepiada e, logo que eles cantavam o lalala lalala lalala, rodopiávamos porque era uma forma do abraço ganhar asas.
Havia outras músicas. A Janis Japlin ou Gainsbourg com a sua amada Birkin também nos traziam calientes momentos de cumplicidade. Mas a Joan of Arc era aventura, era bravura e era romance e aquelas palavras sentidas com o coração do meu amor a bater em uníssono com o meu era o momento pelo qual eu esperava naquelas doces tardes da minha adolescência.
A esta distância surpreendo-me: porque é que gostávamos tanto, tanto, desta canção? Porque é que, nessas tardes, não conseguíamos ouvi-la sem que caíssemos imediatamente nos braços um do outro? Não sei.
Hoje de manhã, quando soube da notícia, foi logo da Joan of Arc, eu nos braços desse distante amor, que me lembrei.
Ao longo do dia, sem querer, enquanto falava ao telefone, fazia reuniões ou conduzia, sentia que os meus neurónios andavam enleados, dançando ao som de Joan of Arc, a voz do meu amor de então sussurrando-me
I'm fire, he replied,
And I love your solitude,
I love your pride.
Ao longo da vida fui somando outras suas canções marcantes. Disse-o já antes aqui: homem que é homem deveria saber dizer de frente para trás e de trás para a frente o I'm your man. De joelho em terra. E tantas, tantas outras canções suas. Muitas vezes aqui o tenho tido e outras tantas ou mais terei. Há seres intemporais e Leonard Cohen é um deles. Não me despeço dele, não faz sentido.
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Esse meu primeiro grande amor é uma memória dentro de mim. Vive dentro de mim. Longínquo e suavizado, talvez até ficcionado.
A vida dá voltas. Se tivesse ficado com ele não me teria sentido disponível para o amor de verdade que viria anos depois, Este meu amor, o de agora e de sempre, não dança. Mas é ele que pode dizer-me (sem que eu o desminta) I'm your man.
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E, enquanto escrevo, vou ouvindo Cohen. Sempre o ouvirei.
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E, enquanto escrevo, vou ouvindo Cohen. Sempre o ouvirei.
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Sim senhor, a JM foi vivaça (a minha avó diria rebiteza) desde o início. Leio a sua vida sentimental e sinto-me freira ou bicho de conta, ainda não decidi, mas pode até ser que os dois. Talvez mesmo uma Joana d'Arc que era uma santa pessoa muito da minha admiração, sobretudo por ganhar guerras e empunhar armas.
ResponderEliminarE um sim veemente a Cohen que ele merece e aqui deixo a minha vela a arder. Esperando que uma rabanada de vento a não apague. Apagando, fica a intenção.
Intemporal é a palavra que melhor o pode definir.
ResponderEliminarOuvi-lo-emos sempre!
P.Rufino