Os gatos devem ter passado o sábado abrigados. Eu também passei.
À noite teria a casa cheia, tinha que me preparar, mal chegam a confusão está instalada e, o que não estiver feito antes, já não terá hipótese de ser recuperado. Mal se vêem, desatam a correr atrás uns dos outros, os rapazes jogam às lutas, ela mete-se pelo meio, riem muito alto, gritam, já ninguém consegue um minuto de sossego. Por isso, tenho que me abastecer de silêncios e tranquilidades antes que a casa vire um arraial e que a festa comece. Uma alegria. E, de resto, na rua, estava um vendaval e uma chuva capitosa. Convidava ao aconchego caseiro, às leituras atrasadas, ao suave calor da paz que reina dentro das casas quando se vê e ouve a chuva e o vento a bater nas janelas e as ruas transformadas em rios de água.
Mas este domingo amanheceu apaziguador e os gatos, tal como eu, logo procuraram o sol da beira do rio.
Serão mesmo deuses? Disseram-me uma vez isso, mas não sei se acredite. Não é tanto pela fonte não ser muito credível, é mais porque não sei se a alma que habita os gatos tem poderes sobre os elementos ou sobre os outros seres.
Olho-os intrigada. Olho os seus olhos. E eles deixam-se olhar. Baixo-me, aproximo-me. Seduz-me o olhar superior dos gatos. Agora aqui são dois, quase iguais, igualmente tranquilos.
Não esboçam uma emoção. Olham-me apenas. De vez em quando desviam o olhar. Não tenho coragem de lhes fazer uma festa. Nem sei se devo. Também não gostaria que um desconhecido me viesse passar a mão pelas costas.
Gostava de saber o que pensam, se apenas me acham bizarra ao olhar assim o seu olhar ou se sentem compaixão por eu não perceber o que não deve ser percebido. Talvez saibam melhor que eu que o fascínio não se explica.
Mais à frente um sinuoso gato preto de focinho branco, patas brancas. Gato ou gata. Ondula, meneia-se, rabo ao alto, provocador. Olha-me de soslaio. Ar de bandido. Atrevido.
Por una Cabeza
(Carlos Gardel)
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E queiram, por favor, fazer-me companhia nos restantes capítulos do meu diário deste domingo, a começar pelo próximo
Gato
ResponderEliminarQue fazes por aqui, ó gato?
Que ambiguidade vens explorar?
Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,
ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pêlo, frio no olhar!
De que obscura força és a morada?
Qual o crime de que foste testemunha?
Que deus te deu a repentina unha
que rubrica esta mão, aquela cara?
Gato, cúmplice de um medo
ainda sem palavras, sem enredos,
quem somos nós, teus donos ou teus servos?
Alexandre O'Neill
Olá Rosa,
ResponderEliminarTão bonito, tão tal e qual o que a gente vê nos gatos. Vou lá pôr o poema, no texto.
Obrigada, Rosa!