Bom. Catroga para trás das costas. Aliás, melhor: pontapé no rabo pelado da velha ratazana para que fique bem longe de mim.
E parto para outra. Arroz-doce. Quando há, nunca deixo de comer. Mas fazer, lamento, mas não faço.
Il faut savoir, coute que coute
Garder toute sa dignité
Et malgré ce qu'il nous en coute
S'en aller sans se retourner
Há bocado, ao responder ao comentário do Carlos, disse-lhe que eu também gosto de arroz doce e contei que o fiz uma única vez e que correu tão mal e que fui tão gozada que fiquei de tal forma traumatizada que ainda não me recompus. Não é bem aquilo de que é preciso saber quando nos devemos levantar e ir embora, nem, muito menos, é por uma questão de dignidade, não querer que gozem comigo -- é, sobretudo, o reconhecer de que não tenho mão para doces e, portanto, prefiro guardar-me para aquilo que me sinto bem a fazer.
Portanto, nem preciso de o confessar de novo, tantas as vezes já o referi: não gosto de fazer sobremesas, bolos, bolachas - doces em geral. Não dá para improvisar e eu tenho o problema que se sabe: não consigo fazer nada by the book. Como me disse uma amiga que padece do mesmo mal que eu: 'é como que uma driving force, não é?'. É. É mesmo. Mal dou por mim, já estou a fazer de outra maneira.
Mas, então, deixem que vos conte.
Mas, então, deixem que vos conte.
Estava eu lá in heaven, e eu gosto tanto de estar na minha cozinha que tem uma janela onde à tarde bate o sol, e resolvi fazer arroz doce. Mas claro está que não liguei aos pormenores, fiz como me aprouve. Leite, pitadinha de sal, tal e tal, gemas de ovos, e arroz e açúcar e casquinha de limão. E lá fui mexendo, esperando, mexendo, esperando. E o sacana do arroz, em vez de absorver o leite, chapéu. O leite permanecia intacto com os grãos de arroz em suspensão ou a flutuarem. Os miúdos, que já nem eram muito miúdos: então, e o arroz doce? quando é que fica pronto? E eu, ainda esperançosa: não deve tardar, estou há séculos nisto, há-de engrossar.
Mas é o engrossas. Eu, intrigada, lembrava-me da minha mãe que sempre fez um belo arroz-doce com uma perna às costas. E pensava, oh caraças, mas se o arroz absorve sempre a água da cozedura, porque raio de carga de água agora não absorve o caraças do leite?
Pois. Mas não absorveu. O meu filho, gozão até à quinta casa, quase chorava a rir com o fiasco. A minha filha, decepcionada, apetecia-lhe tanto arroz-doce. O meu marido, o gozão do costume, com aquele seu ar compenetrado, devia fazer elogios como se falasse a sério só mesmo para achincalhar.
Até hoje. Nunca mais fiz. Sou do tipo fundamentalista: não dá certo, fechou a porta, acabou, pedra em cima.
Mas um dia estava eu a falar com essa tal amiga e diz-me ela que estava a estudar umas 'cenas' relacionadas com a química na cozinha e que tinha começado a divulgar o que ia aprendendo e que havia muita curiosidade em volta do tema. E começou a contar-me até umas experiências que andava a fazer, a cozinha transformada em laboratório. Coisas impensáveis.
Um dia chegou cá a casa com uma garrafa com um líquido transparente que parecia água. Pediu-me uns copinhos de vidro pequenos e serviu, que era para abrir o almoço. Espantoso. Era gaspacho. Tal e qual. O sabor perfeito do gaspacho. Ela explicou como o tinha feito mas já não me lembro, provavelmente tinha destilado o gaspacho.
Um dia, mais tarde ainda, estava eu num jantar privado em que a refeição estava a cargo de um chef muito conhecido (uma vez até inventei um conto em que usei um desses jantares como inspiração) e são-nos servidas iguarias fantásticas e do mais criativo que há (um bacalhau todo xpto, cozinhado em leite a baixas temperaturas, caviar de tomate e de alface, gelado feito ali à mesa debaixo de fumos de azoto - se não estou em erro). Quando ele veio à sala de jantar para nos cumprimentar e para saber se tinha estado tudo bem e para lhe agradecermos e essas coisas, eu disse que aquilo era muito inovador, verdadeiros exercícios de química aplicada. E perguntei-lhe como conseguia ele fazer coisas daquelas. Respondeu-me, então, aquilo que eu tinha intuído desde a primeira garfada: estava a ter aconselhamento e formação por parte de fulana de tal -- a minha divertida amiga.
Pois bem. Recuo ao dia, in heaven, em que ela me contou dessas suas incursões inventivas em volta do tema da culinária e da química. Perguntei-lhe: 'Mas como é que nasceu essa ideia?'
É certo que ela, tempos antes, tinha ficado desempregada dado que a empresa onde trabalhava tinha fechado e que estava com pouco que fazer, aborrecida até à medula por não ter o que fazer depois de uma vida tão activa e que, portanto, deitava a mão a qualquer ideia para conseguir estar com a cabeça entretida.Então ela explicou-me e, se as palavras não foram estas, não devem ter andado muito longe: 'Fui fazer arroz doce e o estupor não inchou, ficou uma porcaria, os grãos a boiarem no leite. Fiquei a pensar: mas que raio é que aconteceu? Isto deve ter uma explicação química e de química sei eu. E então pensou que o arroz, para não absorver o leite, é porque tinha ficado como que revestido por uma camada a modos que isolante. Ora o que é que pode ter provocado isto? Pensei e vi que só pode ter sido por ter colocado o açúcar no início e não no fim. O açúcar teve esse efeito, selou o grão. Por isso é que se deixa que o grão absorva o leite e, só no fim, é que se deita o açúcar'.
A partir daí ganhou-lhe o gosto. Fez programas de divulgação na televisão, formou uma empresa que faz consultoria a chefs, vende produtos, investiga, faz seminários, etc.
A viragem na vida das pessoas acontece, por vezes, na sequência de episódios de nada, acidentais.
E eu fiquei a perceber que também na culinária há ocasiões em que a ordem dos factores não é arbitrária. Seja como for, por via das dúvidas e sabendo que dificilmente consigo seguir uma receita à risca, não me meto a fazer arroz-doce nem, por regra, doces. Só salgados.
Mas, meus Caros, adoro arroz-doce. A minha avó também o fazia bem. A minha mãe coloca-o num tabuleiro e o arroz fica molhadinho, como que envolto num cremezinho amarelinho, macio, bom e nós servimo-nos daí para um pratinho ou tacinha. A minha avó não, a minha avó punha-o em pratinhos. Eu chegava a casa dela e, em cima do aparador, havia vários pratinhos, e, em cima de cada um, ela, com o pó da canela entre o polegar e o indicador, fazia desenhos diferentes: um coração com o bico inclinado, bolinhas, lacinhos; e, no meu, fazia a inicial do meu nome, num desenho artístico. Aquele cheirinho bom, a ternura dos enfeites, o sabor a docinho caseiro, tudo aquilo era especial.
(E, agora que escrevo isto, estou até com vontade de tentar aventurar-me, de novo. Quem sabe não me ajeitava? E punha-o também em pratinhos. E num deles desenhava um R e um P entrelaçados, e depois oferecia-o à Rosa Pinto).
Birthday de Mozart pelos bailarinos do Nederlands Dans Theater numa coreografia de Jiri Kylian
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(E, agora que escrevo isto, estou até com vontade de tentar aventurar-me, de novo. Quem sabe não me ajeitava? E punha-o também em pratinhos. E num deles desenhava um R e um P entrelaçados, e depois oferecia-o à Rosa Pinto).
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E vamos mas é para a cozinha. Com Mozart, claro.
E vamos mas é para a cozinha. Com Mozart, claro.
Birthday de Mozart pelos bailarinos do Nederlands Dans Theater numa coreografia de Jiri Kylian
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E agora queiram, por favor, não misturar arroz-doce com os gestos untuosos de Catroga.
Ora e eu comia !!
ResponderEliminarTambém não sou mto de fazer doces. ...mas o arroz doce alentejano sai sempre bem.
Arroz carolino cozido bem com um pouco de água casca de limão e uma pitada de sal. Junta-se bastante leite. Depois de bem cozido- provar para ver se o grão não está duro- apaga.se o lume e junta.se açúcar a gosto. Devora.se com canela . Pronto fazia UJM.
Obrigada.
Boa. Comíamos, eu fartava-me de rir com as suas anedotas e contava parvoíces minhas e havia de ser engraçado, uma tarde bem passada.
ResponderEliminarE estou mesmo com vontade de experimentar. Sigo a sua receita e junto-lhe os pinhões como o Carlos disse num comentário no outro post. E fazia um pratinho também para ele, com um C mas um C bem luminoso, que ele, lá pelos nevoeiros, bem saudoso deve estar do alegre sol português. E haveríamos de ter conversa e risota para uma tarde inteira.
Um noite boa e um dia feliz para si, amanhã, Rosa.
Obrigado pela intenção! (refiro-me ao pratinho de arroz doce com um C)
ResponderEliminarQuanto a Londres, tem dias. Ou melhor, tem horas do dia, porque no mesmo dia podemos passar por todas as estações do ano.
então e eu?
ResponderEliminarnada pra mim?
prontus
relações cortadas!!!!
rsrsrs
GG
Olá GG, bom dia!
ResponderEliminarQuais relações cortadas?!?! Eu é que não quero abusar e andar por aí a distribuir arroz doce (ainda por cima feito por mim, coisa cuja qualidade já se sabe que tem dias...).
Mas, se está pronta a arriscar, pois entre aqui para a sala dos gulosos que já estou a pôr a canela no pratinho para si (dois corações entrelaçados, claro).
Um belo dia, com coisas doces!