quinta-feira, março 24, 2016

Lá no cabo do mundo onde morávamos durante um momento
- O que é a arte? O que é boa arte?




Os comentários sobre o que ontem escrevi sobre Rui Chafes suscitam questões interessantes e que se prendem com a dúvida de fundo: o que é a arte?

Eu, de facto, não sei explicar porque é que algumas obras me tocam e outras não. Se aprecio arte 'antiga' seja sob a forma de pintura, escultura ou música, a verdade é que o que age mais directamente sobre o meu gerador emocional é a arte mais abstracta. E se, durante algum período, me deixo agradar pelas obras mais clássicas, seja a nível de poesia ou música ou do que for, a verdade é que logo de seguida, como se sentisse necessidade de me libertar, corto as amarras da perfeição e procuro o imperfeito, o rasgão, a fractura, o inexplicável, o que é novo, o que não se parece com nada.

Custa-me trazer-me a mim para o meio da conversa porque não faz sentido invocar-me como 'artista' mas, enfim, falo do que me é mais próximo e que sou eu. Quando fotografo -- e sabem que sou fotógrafa quase compulsiva -- fico em silêncio religioso perante uma paisagem divina e fotografo, claro que fotografo, mas, logo a seguir, só me apetece fotografar pedras, sombras, nuvens, folhas soltas, apontar o zoom para procurar a abstracção contida naquilo que os meus olhos vêem.

No domingo, como vos mostrei, fotografei a Casa da Cerca, os jardins, a vista sobre Lisboa. E foi o que vos mostrei. Mas saí de lá e só me apetecia fotografar o que me parecia insignificante, o pedaço de alma, o imaginado sorriso de alguém ao fazer um graffiti, os ramos nus e vermelhos de uma planta. E o prazer que me dá procurar os pequenos nadas é quase idêntico à contemplação da beleza perfeita.


Mas não sei explicar isto.

É como, por exemplo, com a poesia. Há a grega perante a qual muitos se ajoelham ficando cristalizados no tempo dentro da própria baba. Eu reconheço que há beleza na poesia grega, claro que sim. Mas longe de mim ficar encadeada, cega para a beleza de outras poesias. Mas, claro, é tudo do mais subjectivo que há.

Comprei hoje o livro 'Letra Aberta' de Herberto Helder, poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. 


Ainda apenas folheei. Uns sim, outros ainda não, talvez depois de os sentir melhor. Mas, quando viu o livro, o meu marido encolheu os ombros. Não aprecia Herbero Helder. Vínhamos os dois a andar à noite e a falar nisto e eu comentava que ele nunca tinha saído do período dos clássicos e ele, para me provocar, começou a fazer a gracinha de dizer os Lusíadas e disse e disse. Pasmo com aquela memória. Mas ele gosta mesmo de Camões. Tudo bem. Camões é Camões e é inequívoco, claro que também gosto. Mas, nisto da arte, acho eu que não é para se andar a comparar se este é melhor que aquele nem é, lá porque se gosta de um, já achar que, depois dele, nada mais vale a pena.

Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruto,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuto,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas

(Camões)
bom é ser odiado simetricamente por gregos e troianos
que se matem entre eles
a ver quem me odeia mais extenso e fundo:
e eu fora, citando os astros mudos: 
os clássicos!

(Herberto Helder)

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Um dos vídeos que consta de um dos comentários e que eu já tinha recebido por mail contém conteúdo com o qual não concordo completamente pois, como já observei nos comentários, há ali a argumentação levada à caricatura, naquilo a que se pode chamar 'demonstração por absurdo'. 

Contudo, porque é da contradição que nasce o estímulo ao pensamento, aqui o deixo -- e cada um que julgue por si.

Por que a arte moderna é tão ruim? - Robert Florczak


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E, agora, por mim, junto um vídeo sobre um dos pintores que, a mim, muito me impressiona e que é visto, por quem não aprecia o género, como um 'tangas' que pintou manchas iguais umas às outras ao longo de anos: Mark Rothko. Já estive junto a obras originais, em museus, e fico sempre 'agarrada', imersa naquelas manchas de cor, como se delas viesse um silêncio que me envolvesse de forma íntima, sem explicação. Não sou capaz de justificar usando argumentos racionais, apenas sei que é assim.

The Case For Mark Rothko | The Art Assignment



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A parte em itálico do título desta mensagem foi extraído de um poema de Letra Aberta de Herberto Helder


Lá em cima, Catrin Finch, uma artista que eu gostaria de ter sempre junto a mim, interpreta Tides

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quinta-feira.

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2 comentários:

  1. Pois lá está UJM eu não gosto, nada, de Mark Rothko. Quanto ao Video, gostei. O problema é que ele toca na tal diferença. E há quem não goste de ouvir isso. Não quer dizer que seja o seu caso. Tenha uma boa noite. Já comentei no Post anterior a sua opinião.
    Boa Páscoa!
    P.Rufino

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  2. Sobre o Grande Épico Homero, que muito admiro, permita-me uma pequena transcrição, a título de curiosidade, retirada de um texto de Sarah B. Pomeroy (nascida em 1938), numa das suas obras, de um livro que tenho por cá (ela é, já que o livro é em inglês, “Professor of Classics at Hunter College anda Graduate School of the CitY of New York” – esta Universidade tem a sua História, interessante):
    “Tradition tells us that a blind bard of exceptional talent, Homer, who was familiar with the legends surrounding the capture of Troy and the return of the victorious Greek heroes, shaped the tales into the monumental epics known as the Iliad and the Odyssey. Homer himself was illiterate. According to the most plausible theory, he worked in the eighth century B.C.; his poems continued to be transmitted orally by bards from generation to generation until sometime in the sixth century B.C. when they were set down in written form. Although the vagaries of the transmission of these epics need not concern us here, it should be remembered that, because they were oral documents, the Iliad and the Odyssey cannot profitably be regarded as accurate histories of the late Bronze Age. They are ultimately poetics legends derived from the actual historical event of the capture of Troy, but also poetic reflections of the evolving societies and cultures of Greece”.
    (Tenho ambas as obras de Homero, a par da Eneida, de Virgílio, quer em inglês, ou português, cá em casa).
    Mas, estou de acordo consigo. Não possuindo, embora, a mesma sensibilidade da UJM perante a Poesia, leio-a por vezes e concordo que há autores/as actuais que merecem ser lidos com particular atenção. Por exemplo, gosto bastante de Sophia, só para dar este exemplo.
    P.Rufino

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