quinta-feira, março 24, 2016

A mulher do casaco amarelo


No post abaixo já falei de arte, já trouxe um poema do novo livro de Herberto Helder que, como uma daquelas estrelas de que o João fala,
Como as estrelas nascem e morrem, muitas das que hoje vemos podem já não ser estrelas. Estamos a olhar para o passado quando olhamos o céu.
continua a emitir luz lá dos longes onde agora está, e já mostrei um vídeo enviado pelo Leitor P. Rufino que, nisto da arte, tem gostos muito diferentes dos meus.

Mas agora, antes de me ir, apetece-me escrever mais uma coisa.

Apetece-me dizer que hoje, à hora de almoço, ouvi os Sinais de Fernando Alves e que ele disse que se lhe tinha rompido o dique ao ver a fotografia da mulher do casaco amarelo, essa mulher vítima dos atentados de Bruxelas, essa mulher com um olhar de medo, salpicos de sangue no rosto, que olha para todos nós, que não pára de olhar para todos nós, incrédulos como ela. 


Agora fui ver essa fotografia e aqui está: essa mulher que tinha saído de casa toda bem arranjada e que agora ali está, descomposta, meio despida, sem um sapato, como que abandonada, esquecida da vergonha que, noutras circunstâncias, teria por estar assim, talvez sem perceber se está viva da mesma maneira como estava antes de o mundo parecer cair-lhe em cima. 


A mim não me saltaram as lágrimas, não sou de lágrima fácil. Perante situações assim, tendo a ficar imóvel, como se sentisse que a contenção é a reacção mais inteligente porque, quem sabe, um dia poderá vir em que tenho que as ter de reserva para o tanto que delas talvez venha a precisar. 

Frequento quotidianamente locais que são de risco. Os meus filhos e o meu marido também. No entanto, não penso nisso. Ajo como se o mundo estivesse em vias de deixar de ser perigoso, como se, pela força da minha vontade, o mundo pudesse voltar a ser apenas uma terra fértil e pacífica, um pedaço de universo onde os rios fossem largos, limpos, cheios de luz e depois se estreitassem entre bosques altos e verdes, onde as florestas tivessem sombras perfumadas, pássaros coloridos, clareiras onde os habitantes se reunissem em rituais, danças, amores. Penso isso. Entrego-me a pensamentos bons, ouço músicas que me levam nos braços, imagino palavras bondosas, laços invisíveis entre pessoas generosas e, assim, vou mantendo afastadas de mim as sombras do medo.

Muitas vezes tenho vontade de sair por aí, perder-me no mundo, ir para onde possa ser útil, a resgatar feridos, a tratar crianças, a ensinar adolescentes, a ajudar a construir qualquer coisa. Mas sei que não poderia estar longe dos meus e sei que nada se faz por voluntarismo, que é preciso que as atitudes sejam concertadas, que haja inteligência na condução dos assuntos. Gestos isolados de nada servem. Por isso, não sei se cobarde ou se lucidamente, limito-me a continuar a viver como sempre, olhando o mundo, sendo sincera na forma como vivo, tentando compreender os outros, tentando ser feliz e que os que vivem perto de mim também se sintam felizes. Acomodo-me, pois, nas minhas inúteis e boas intenções e isso faz-me sentir bem comigo mesmo. Sentimento igualmente inútil mas, enfim, inofensivo. Ao menos isso.

Mas é verdade: vê-se a fotografia daquela mulher e pensa-se que isto não está a correr bem, que em algum momento o mundo caiu num precipício perigoso de onde pode ser difícil sair.

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E queiram, por favor, descer até ao post a seguir, caso vos apeteça ir em busca de territórios mais leves.

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