segunda-feira, janeiro 25, 2016

Um mundo efémero onde estamos de passagem






Antes que comece o tempo das contagens no final desta amorfa campanha eleitoral, e antes de me ir estender a ler e, quiçá deixar que o sono chegue e me tome nos seus doces braços, venho aqui para vos dizer que não sei como é aí, onde me estão a ler, mas, por aqui, esteve uma temperatura amena, o céu quase limpo e as poucas nuvens apenas serviram de véu, como que querendo atenuar o excesso de luz.

Parece que se adivinha a primavera. A beira do rio tinha muita gente, o parque agora de tarde também. Parece que as pessoas, sentindo o cheiro a bom tempo, procuram o sol.

Ontem, quando cheguei a casa da minha mãe, não apenas as persianas estavam todas levantadas como alguns vidros também abertos. Disse-me que era para deixar entrar o bom tempo. Também eu, aqui em casa, abro as janelas, ponho-me à janela a ver as cores limpas e suaves deste dia luminoso.


Antes, andei rente ao rio, fotografando. As pessoas recortam-se contra um pano de boca de cena sem igual: do outro lado, sobre um chão azul, Lisboa, a bela. Não resisto e capto as suas imagens, actores perfeitos num tableau ímpar, magnífico.

Fotografo as pessoas, a paisagem, e o meu coração expande-se de ternura pela visão de beleza que me proporcionam. Parece-me quase impossível tanta harmonia, tanta tranquilidade.

Ocorrem-me muitas vezes pensamentos terríveis: os que tentam alcançar um mundo em paz e se afogam, não chegando a ver de perto como é também difícil o seu sonho (mas que, sendo difícil, oferece a serenidade que um céu não atravessado por disparos e morte sempre tem para oferecer). Por aqui, em paz e liberdade, os namorados podem brincar, os pais podem passear com os filhos, os donos passear com os seus cães e eu posso deliciar-me, sempre e sempre, contemplando este cenário maravilhoso. 


Nos dias de vendaval e invernia os pescadores escasseiam: o fraco pescado não compensa as inclemências do frio e da chuva. Mas, mal o sol desponta, logo os cais se enchem de pessoas pacientes ou necessitadas que, por ali, tentam que um peixe pique o engodo. Não precisam de patranhas, de pentear cabeleireiras, de andar de feira em feira, de dizer balelas e distribuir beijinhos a granel: basta que fiquem imóveis que algum (peixe) palerma há-de morder o anzol.


É um mundo maioritariamente masculino, este dos pacientes. (Pacientes no sentido de terem paciência e não de estarem doentes). Mas há também mulheres pacientes. Gosto de ver as pescadoras. Um dia hei-de ir conversar com uma delas. Não sei se, para elas, haverá o lado lúdico que vejo nos homens ou se há apenas persistência.


Sabe muito bem estar à beira de água, ouvir o som das águas, sentir o calor do sol ameno, ouvir o voo livre das gaivotas, o deslizar dos barcos. Também eu tenho sempre vontade de me deitar ao sol, sentir o prazer de existir junto a um lugar de tanta beleza. Nem sempre o consigo mas é uma sensação de felicidade mesmo boa. Mesmo apenas passar e ver quem sabe descansar o corpo ao sol, já me sabe bem.


Outras vezes, penso que haveria eu de pegar num livro e sentar-me ali, em sossego e pôr-me a ler, com vagar. Mas não me dá para ler livros em lugares assim. Acho que qualquer veleiro que passasse me haveria de distrair, haveria de me dar vontade de voar e ir pousar nele. Tenho como que uma urgência em não deixar de ver aquilo que considero bonito e fugaz: um barco que passa, uma gaivota que dança nos céus, um traço de luz que ilumina uma rua ou o rio, uns cabelos esvoaçando, uma ponte quase invisível ao fundo.


E depois há os gatos. Estão gordos. Uma senhora, vá lá perceber-se porquê, em vez de os deixar andar na vadiagem, comendo peixes que tenham dado à costa ou que tenham sido desprezado pelos pescadores ou rapinando o que lhes apetecer, parece ter feito de razão de viver a engorda dos gatos. Leva-lhes comida enlatada e esparguete. Chama pelos gatos pelo nome: a Milu, a Estrela, a Maria, sei lá. Em tom de reprimenda, chama-lhes a atenção caso não respondam logo à chamada. Até às gaivotas já eu a vi a deixar esparguete cozido com qualquer coisa. Um dia eu estava a fotografar uma gaivota que vinha pousar e ela disse-me, à laia de ralhete: 'assim ela não vem comer'. Fiquei estupefacta.

Não sei se não se devia proibir isto. Os gatos estão a ficar obesos, já andam ronceiramente, pesados. Antes via-os esgueirando-se paredes acima, alcançando num ápice os telhados, saltando de pedra em pedra à beira de água. Agora não, agora deitam-se ao sol, arrastam-se entediados.

Tenho sempre vontade de dizer à senhora que não devia fazer isto. Mas não tenho coragem. Ela vem carregada com caixas, sacos, tem uma mala grande com rodas, por ali vem, chamando por eles, orgulhosa da sua boa acção.

No outro dia, quando me viu a fotografar um gato, disse-me com ar vaidoso: 'Têm uma página no facebook'. Eu talvez tenha dito 'Ai é?' porque não me ocorreu dizer mais nada pois o que tinha vontade de dizer era que só faltava mesmo mais essa.

Mas, enfim, fazer o quê? Se eu dissesse alguma coisa a senhora talvez me achasse insensível por não compreender a sua obra caridosa. Chova ou faça sol, lá vai ela naquela sua missão.


Seja como for, os gatos apesar de anafados, são lindos. Têm um ar inteligente. Gosto de os olhar, gosto de ver como me olham com indiferença. Não sei o que pensam eles da sua benfeitora ou o que pensam de mim que por ali ando, sempre encantada com eles. Talvez não pensem nada, talvez nos achem seres inferiores e, na volta, se calhar até têm razão. Não estou a ver os gatos a irem votar para escolher alguém em que, verdadeiramente, não se revêem. Enfim.

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Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem

Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos,
e de longe nos observa

Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos


['Os gatos', Manuel António Pina]

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A quem chegou só agora aqui e ainda não viu a Little Blue Girl, Pearl de seu nickname, sugiro que desçam até ao post já aqui abaixo.
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Até já.

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