quinta-feira, setembro 17, 2015

Um tigre na biblioteca


Quem não goste de bibliotecas, solitudes ou conversas perdidas fica desde já avisado que pode saltar daqui para o lirismo-maior que é o programa do PCP ou para a epístola do láparo ao Sócrates ou, vá lá, para a Catarina Martins ainda melhor comediante que o RAP (e é como um elogio sincero que o digo).

É que aqui, agora, a conversa é quase barroca e circula por entre os encantamentos da Klementinum.







Um dia pensei: se eu não visse, como poderia encontrar um livro na minha estante? Ou, se eu não visse, e entrasse numa biblioteca infinita, como poderia descobrir os caminhos até aos livros que as minhas mãos procurassem? Ou, se eu não visse, como poderia ver o olhar daquele cujos braços me abraçassem?

E, então, imaginei: de olhos fechados, eu sentiria a minha respiração, esperaria que o meu coração reconhecesse os sinais vitais do que eu procurava e, assim, me guiasse. Talvez ouvisse os sons que se evolam das páginas dos livros; talvez, não vendo, eu percebesse os murmúrios transparentes, silenciosos, que as palavras guardaram de quem as escreveu. Talvez aquele que me teria nos braços, quando me olhasse, respirasse de uma maneira que eu percebesse a ternura do seu olhar.




E depois pensei: talvez, então, eu não tivesse que andar, às cegas, perdida entre corredores infinitos, talvez aquele que me conhece como se navegasse dentro de mim me levasse pela mão e, amorosamente, fosse dizendo escuta, aqui está Rimbaud que um dia disse que, por delicadeza, morreu, e olha, agora aqui está aquele que um dia falou das flores do mal e de um pássaro com asas grandes demais para andar em terra e que me fez pensar que era de mim que falava, e, escuta, aqui está aquele que um dia me fez oferecer-te uma rosa inventada.

E eu, a alma acariciada pela cumplicidade daquela voz, sorriria e perguntaria, Por onde me levais, senhor? Andais por labirintos, galerias infinitas?

E ele responderia que Sim, senhora, que infinitas são as palavras que se guardam nos labirintos das nossas memórias. E eu sentiria no cabelo o afago que as suas mãos sempre guardam para mim e depois sentiria, nas minhas mãos, o calor das suas e, no coração, a ternura do seu olhar.

E assim andaríamos, ele falando-me de livros, de quem os escreveu, recordando-me frases, versos e eu feliz como uma menina descobrindo o mundo.

Até que qualquer coisa me faria parar. Inquieta, eu.

E, com a voz trémula, diria: Falas-me de labirintos, galerias infinitas, rosas de paracelso e escondes-me os perigos que se escondem junto a nós?

E ele diria: Tu não vês mas eu vejo. E não vejo perigos. Descansa.

E eu pararia, ouviria com atenção. E diria: Escuta. Sinto o calor de uma respiração, sinto o hálito doce de uma fera.

E ele tentaria serenar-me: Não. Aqui só estamos nós. Nós e vinte mil livros. E os espíritos de quem os escreveu. 

E eu diria: Vê como a minha pele se arrepiou. Sente, toca a minha pele. E vê como os meus olhos têm lágrimas. Põe a tua mão no meu coração, sente como bate descompassadamente. Acredita. Sinto que um olhar me trespassa, sinto que há um cheiro a sangue, um cheiro quente, sinto que um outro coração se apressa. Abraça-me, oh, abraça-me, protege-me.

E ele diria, alarmado: Tu não vês mas eu vejo e agora vejo que os livros tremem. O que é isto? O que se passa?

E eu diria: Disse-te. É que há medo no ar.

E, então, eu abraçada por ele, tremendo, diria: Fecha os olhos e ouve. Escuta como um grande animal corre por entre os corredores infinitos, escuta, escuta como o bafo quente dele se aproxima.

E ele diria: Vamos sair daqui. Vamos. Depressa.

Mas eu não me mexeria. Paralisada. Depois sentiria os passos a aproximar-se, a respiração ofegante de um grande bicho. E ele estremeceria, eu sentiria que também tremia e, quase em surdina, dir-me-ia: Vamos, dá-me a mão, corre.

E eu sem me mexer. Mas agora serena. E diria: Já não é preciso. Ele já se foi. 

E ele perguntaria: Quem?

E eu mostraria o meu braço molhado, coberto de uma baba quente e diria: O tigre azul já se foi. Parou aqui, olhou em volta como se procurasse qualquer coisa, como se tentasse localizar um livro, depois olhou-me e eu olhei para ele. Antes de se ir embora, lambeu-me o braço. Não duvides: vi-o distintamente.

E ele, surpreendido, olharia o meu braço e veria, com espanto, que estava molhado, que um líquido cor de sangue escorria, a minha mão escorrendo aquele líquido morno e espesso, pingando sobre uma rosa que estava tombada a meus pés - uma rosa azul, de um azul escuro, tão escuro como o tigre, um azul profundo, macio.

E ele veria, incrédulo, que os meus olhos abertos, cobertos de lágrimas, já o viam - frágil e humano, desconhecedor dos mistérios que o meu coração guarda e que, por vezes, de lá se soltam como pássaros loucos ou como tigres perigosos como eu.



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As fotografias mostram aquela que foi considerada pelos leitores do Bored Panda como a mais bela biblioteca do mundo: Klementinum (em checo) ou Clementinum em Praga.

Esta biblioteca figura n' O Milagre Secreto de Jorge Luis Borges:
(...) Hacia el alba, soñó que se había ocultado en una de las naves de la biblioteca del Clementinum. Un bibliotecario de gafas negras le preguntó: ¿Qué busca? Hladík le replicó: Busco a Dios. El bibliotecario le dijo: Dios está en una de las letras de una de las páginas de uno de los cuatrocientos mil tomos del Clementinum. Mis padres y los padres de mis padres han buscado esa letra; yo me he quedado ciego, buscándola. (...)

Solitude é interpretado por Ryuichi Sakamoto

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Caso vos apeteça ler a minha opinião sobre a forma como Ana Lourenço tentou hipnotizar o Jerónimo de Sousa e o António Costa e, por consequência, também a nós, e sobre mais umas quantas minudências, queiram, por favor, descer até ao post já a seguir.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quinta-feira.
Felicidades a todos.


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