Fez ontem 5 anos que comecei esta aventura do Um Jeito Manso. Era para ser uma experiência e acabou por se tornar um hábito, um prazer, uma ocupação nocturna e clandestina.
Mas a verdade é que, ao escrever todos os dias, uma pessoa acaba por, volta e meia, repetir-se. Neste caso, tenho ideia de que já uma vez falei no que agora vou falar. Se assim foi, que me desculpem os que já o leram.
Mas a verdade é que, ao escrever todos os dias, uma pessoa acaba por, volta e meia, repetir-se. Neste caso, tenho ideia de que já uma vez falei no que agora vou falar. Se assim foi, que me desculpem os que já o leram.
Éramos um grupo de estudantes de todo o país que tinha ido conhecer Angola. Um dos estudantes era mais velho que eu cerca de três anos. Usava cabelo pelos ombros e era um provocador. Antes de o conhecer pessoalmente já eu tinha ouvido falar nele, um gabiru que tinha alguns anos de chumbos por vadiagem e maus costumes mas que, estranhamente, era invulgarmente culto e, sobretudo, muito inteligente. Estava avisada. Claro que, instantaneamente, foi esse que despertou a minha curiosidade. Logo na primeira noite no hotel, estava eu no elevador com umas que tinha acabado de conhecer e o elevador, em vez de arrancar, abriu a porta. Era ele que o tinha chamado. Ao ver o elevador cheio de mulheres, abriu os braços como se se quisesse oferecer ou abraçar a todas e, convencidão, sorridente, olhou-nos com ar ostensivamente apreciador e, num sotaque brasileiro, disse: 'Mulheres... cheguei...!'. E, dizendo isto, eu a pensar 'Grande parvo' e já com vontade de o punir e ele, especado, de olhos postos em mim.
Nessa noite, quando saímos para jantar, veio ter comigo e, durante o mês que durou a viagem, tornámo-nos inseparáveis. Era um homem feito perto de mim, que era ainda cheia de inexperiências. No continente tinha deixado um namorado que se despedira de mim no aeroporto, comovido. E eu, vendo-o assim, cheio de medos, antevendo riscos e insuportáveis saudades, quase lamentei a minha maneira de ser. O cheiro a aventura era, para mim, um apelo fortíssimo que se sobrepunha a qualquer expectativa de saudades. Soube depois que, no continente, tinha ficado também a namorada do J., o irreverente galã que, nos primeiros dias, se portava como se estivesse ali para seduzir todas as raparigas.
O clima de Luanda era para mim estranho: muito calor, muita humidade. Ao princípio sentia necessidade de tomar banho várias vezes por dia. Encalorada como sou, mal suportava o longo e espesso cabelo nas costas ou vestuário fechado ou, sequer, com mangas. Usava, pois, blusas ou vestidos de tipo cai-cai ou atados atrás do pescoço. E geralmente fazia um entrançado no cabelo, que prendia para que nem a trança me caísse nas costas.
Entre mim e o J., juntos todos os dias, de manhã até de madrugada, ao longo de viagens pelo país, idas à praia, a restaurantes, em esplanadas ou longas conversas junto ao mar, foi-se desenvolvido uma forte estima. Digo estima porque não sei que outra palavra usar. Mas ou porque sabíamos que não tardava nos separaríamos ou porque as nossas hormonas andavam à solta, a atracção era também bastante razoável -- e o tempo, que ia sendo cada vez mais escasso, parecia querer aproximar-nos cada vez mais um do outro.
Eu gostava de o ouvir conversar, do tanto que ele sabia, da sua forma rebelde de pensar, gostava dos seus belos olhos verdes e da forma líquida como me olhava, gostava da forma como ele andava, gostava do seu perfume. E ele dizia que gostava também de algumas coisas em mim mas, em especial, eram os meus ombros que, dizia ele, o deixavam maluco.
Uma noite fomos a um cinema ao ar livre. Não me lembro do nome do cinema mas sei que era num sítio alto da cidade, creio que num bairro chamado Alvalade. A baía de Luanda estava ao fundo, escura, certamente carregada de uma atraente maresia. O cinema era inclinado e lembro-me que, creio que num dos lados, tinha umas grandes bananeiras.
Lá em baixo, no grande ecrã, paisagens geladas, neve, um frio que se colava aos rostos apaixonados dos intervenientes, um frio que atravessava o coração terno do belo Dr. Jivago.
A música do filme atravessava o calor da noite e envolvia-nos.
A história era marcante mas, naquela noite, mais do que a história, o que eu sentia era que o amor do filme parecia impelir-nos um para o outro. Ele aproximava-se perigosamente de mim, queria beijar-me o ombro que quase tocava, eu sentia o seu perfume, a sua respiração, o calor do seu corpo, ele dizia-me ao ouvido que eu era parecida com a Lara e eu dizia-lhe que estivesse calado, que não dissesse parvoíces, e ele dizia que eu era mais bonita que ela e eu mandava-o parar com palermices, que se calasse, que queria ver o filme. E ele que queria beijar-me no ombro, 'deixa... deixa...'.
A música do filme atravessava o calor da noite e envolvia-nos.
A história era marcante mas, naquela noite, mais do que a história, o que eu sentia era que o amor do filme parecia impelir-nos um para o outro. Ele aproximava-se perigosamente de mim, queria beijar-me o ombro que quase tocava, eu sentia o seu perfume, a sua respiração, o calor do seu corpo, ele dizia-me ao ouvido que eu era parecida com a Lara e eu dizia-lhe que estivesse calado, que não dissesse parvoíces, e ele dizia que eu era mais bonita que ela e eu mandava-o parar com palermices, que se calasse, que queria ver o filme. E ele que queria beijar-me no ombro, 'deixa... deixa...'.
Não deixei, embora tanto me apetecesse. Acho que sabia que, se deixasse, dificilmente conseguiria travar a situação que estava ali, carregada de electricidade. Por esses dias, o meu namorado era uma realidade distante -- e era sobretudo na namorada dele que eu pensava.
Quando, no fim do filme, descíamos a rua do bairro em direcção ao hotel, íamos os dois muito tristes. Queríamos cair nos braços um do outro e eu não o deixava e bem me custava essa minha absurda recusa. Para ele, abraçar-me e beijar-me era uma necessidade imperiosa e não compreendia o meu impedimento. E eu também não.
Depois dessa noite voltei a ver o Dr. Jivago.
Mas, o tempo todo, enquanto revia o filme, eu recordava essa noite tão quente, tão languidamente africana. Para mim, o Dr. Jivago não vive, pois, nas paisagens geladas da Rússia, num passado longínquo, numa história partilhada mas, sim, nessa noite ardente de Luanda, ainda tão próxima e tão pessoal, em que, talvez pela primeira vez, me senti mulher feita, desejada, e com o poder de decidir o que conceder ou não conceder ao meu corpo.
Ao meu lado não estava o J. nem tão pouco o meu namorado da altura. Ambos vivem na minha memória mas, estranhamente, apesar de ter namorado um durante cerca de três anos e de ter estado com o outro apenas durante um mês (embora quase 24 horas por dia), guardo recordações mais marcantes do J. do que daquele meu namorado.
Mas, o tempo todo, enquanto revia o filme, eu recordava essa noite tão quente, tão languidamente africana. Para mim, o Dr. Jivago não vive, pois, nas paisagens geladas da Rússia, num passado longínquo, numa história partilhada mas, sim, nessa noite ardente de Luanda, ainda tão próxima e tão pessoal, em que, talvez pela primeira vez, me senti mulher feita, desejada, e com o poder de decidir o que conceder ou não conceder ao meu corpo.
Omar Sharif, o egipcío que, para mim, será o eterno Dr. Jivago, foi-se embora este dia 10 de julho. Tinha 83 anos. Amou uma mulher com quem se casou e de quem teve um filho. Depois de se divorciar não voltou a apaixonar-se. Sofria agora de Alzheimer e já não sabia bem em que filmes tinha participado.
Doctor Zhivago com Omar Sharif, Julie Christie. Realizado por David Lean
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E sigam, por favor, para o post abaixo onde tenho um papagaio elitista e permitam que vos recomende a leitura do comentário da Leitora Rosa Pinto onde continua a falar sobre as aventuras do dito papagaio.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um feliz dia de domingo.
O tempo passa e nós com ele -- e que o caminho se faça sempre em harmonia e felicidade.
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Que o amor continue na sua vida por muitos anos mais como nessa noite e que possa vivê-los com muita saúde junto de todos os seus mais queridos.
ResponderEliminarParabéns! Um dia muiiiiiito feliz!
Teresa
A culpa é do Fado.
ResponderEliminarQuer o destino que eu não creia no destino
E o meu fado é nem ter fado nenhum
Cantá-lo bem sem sequer o ter sentido
Senti-lo como ninguém, mas não ter sentido algum
Ai que tristeza, esta minha alegria
Ai que alegria, esta tão grande tristeza
Esperar que um dia eu não espere mais um dia
Por aquele que nunca vem e que aqui esteve presente
Ai que saudade
Que eu tenho de ter saudade
Saudades de ter alguém
Que aqui está e não existe
Sentir-me triste
Só por me sentir tão bem
E alegre sentir-me bem
Só por eu andar tão triste
Ai se eu pudesse não cantar "ai se eu pudesse"
E lamentasse não ter mais nenhum lamento
Talvez ouvisse no silêncio que fizesse
Uma voz que fosse minha cantar alguém cá dentro
Ai que desgraça esta sorte que me assiste
Ai mas que sorte eu viver tão desgraçada
Na incerteza que nada mais certo existe
Além da grande certeza de não estar certa de nada
Ai que saudade
Que eu tenho de ter saudade
Saudades de ter alguém
Que aqui está e não existe
Sentir-me triste
Só por me sentir tão bem
E alegre sentir-me bem
Só por eu andar tão triste
Ai que saudade
Que eu tenho de ter saudade
Saudades de ter alguém
Que aqui está e não existe
Sentir-me triste
Só por me sentir tão bem
E alegre sentir-me bem
Só por eu andar tão triste
Ana Moura - Desfado
Olá Teresa-teté,
ResponderEliminarComo se lembrou? Sempre senti admiração por quem tem uma cabeça e uma organização assim... Eu esqueço-me sempre de todas as datas. Só sei as dos meus. Sou uma despistada. Agradeço-lhe muito. Foi um dia muito bom, muito feliz, a casa cheia e risos e alegria e rodeada pelos meus que tanto me acarinham.
Um beijinho agradecido.
Tudo de bom também para si e para os seus!
Olá Rosa Pinto,
ResponderEliminarMas é que é mesmo isso. Há saudades boas, melancolias doces, que sabem bem.
Obrigada pela oportunidade dos seus comentários, sempre certeiros.
Um abraço, Rosa Pinto! E desejo-lhe uma bela semana.