terça-feira, junho 30, 2015

A Grécia e os Prémio Nobel que a apoiam. E o Obama a perceber que o caso está mal parado e, à falta de melhor interlocutor, a ligar à Merkel, pelos vistos a única que manda alguma coisa numa Europa atarantada e à mercê dos abutres e nas mãos de contabilistas de cabeça à nora. E os europeus desinformados, egoístas, aníbais desatinados, láparos alienados, papagaios estarolas - a assistirem bovinamente a este espectáculo. Uma tristeza.


Será mesmo isto que se quer?



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A. Pode parecer estranho -- especialmente ao próprio, mas eu, que tanto me arreliei com o Luís M. Jorge, autor do blog Vida Breve, quando ele se atirava como um possesso ao Sócrates, apoiando o Passos Coelho e chegando, até, a propor umas linhas mestras para que o PSD as usasse na campanha eleitoral para derrotar o PS -- venha agora aconselhar a leitura de alguns dos seus posts mais recentes. 


Há cerca de quatro anos, achei uma coisa espúria o apoio que ele manifestava em relação a Passos Coelho. Sócrates podia não ser um santo mas, caraças, Passos Coelho era muito pior. Não era, contudo, essa a sua ideia (chegando, uma vez, a dizer-me que pior que o Sócrates só a peste bubónica). A história dirá quem, de facto, mais danos irrecuperáveis causou ao País.

Seja como for, apesar de manter a sua convicção em relação a Sócrates, inteligente e senhor de uma escrita sempre escorreita, Luís M. Jorge produziu uns posts acerca da Grécia que remetem para documentação interessante sobre a actual miséria que assola a Europa (e, em particular, o nosso Portugal que qualquer dia é mesmo de plástico, chinês, uma bagatela).

E, portanto, assim sendo, e porque reconheço o valor a quem o tem mesmo que possa não subscrever todas as opiniões, recomendo a leitura de:

Artemis




2. Textos inúteis num país de gente bruta (que engloba links relevantes para a compreensão do que se está a passar).


Greece Over the Brink, Krugman 

Europe’s Attack on Greek Democracy, Stiglitz. 

Na Forbes, esse bastião do esquerdismo radical, The Day The Euro Died 

« La scandaleuse politique grecque de l’Europe », Habermas






B. E da Estrela Serrana, no seu Vai e Vem, recomendo também:  Os gregos e os algozes


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C. E, já agora, no Expresso, Traduzido e comentado: O que Varoufakis disse na reunião que “não orgulha a Europa”


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Mas, apesar de tudo, há a Grécia. Salve Grécia!







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Que a Europa acorde a tempo de reconhecer aos gregos o direito à dignidade e às pessoas inteligentes o direito a pensarem.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma excelente terça-feira.
E que tenham boas surpresas, e encontrem raras afinidades electivas, e que tenham saúde e sorte e tudo de bom, incluindo sorte no euromilhões.

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segunda-feira, junho 29, 2015

Saudades para Alberto Vaz da Silva - diz José Tolentino de Mendonça e digo eu, também. Houve certos seres através dos quais Deus nos amou. Talvez seja isso. Talvez todo o mistério comece por aí.






Há uns quantos anos, resolvi fazer um curso de grafologia. Já aqui falei disso algumas vezes e, inclusivamente, já fiz análise grafológica a uns dois ou três leitores que me enviaram textos manuscritos. Quando agora alguém escreve à mão ao pé de mim até, sem querer, corro o risco de passar por mal educada, dou por mim só a deitar o olho para o que escreveram, não pelo que está escrito mas, sim, pela forma da escrita em si. Não sei porquê mas tenho constatado que, de facto, a forma como uma pessoa escreve revela a sua natureza e o seu estado de espírito.

Por todos os motivos, guardo do tempo em que fiz esse curso as melhores recordações. Nesses dias, às terças-feiras, salvo erro, saía do trabalho um bocado mais cedo, deixava o carro no parque do Chiado e depois ia para o Centro Nacional de Cultura. Tentava sempre chegar um pouco antes para poder dar uma volta por aquelas ruas que tanto amo, em especial ao fim da tarde. Depois havia o lugar onde decorriam as aulas, aquele edifício tão bonito, aquele soalho, aquelas luzes, todo aquele ambiente. Mas, sobretudo, o professor, o querido e especial Dr. Alberto Vaz da Silva. Aquelas aulas, dadas ao lusco fusco, eram momentos extraordinários. Culto, amoroso, de uma delicadeza extrema, todo ele memórias, referências, gestos de afecto - ouvi-lo e vê-lo era um privilégio. Eu assistia maravilhada, tudo aquilo era bem mais do que eu esperava.



Hoje, ao ler a crónica de José Tolentino de Mendonça falando dele, senti a emoção de ter tido a sorte de ter conhecido, ao longo de meses, aquela pessoa tão especial.

Transcrevo alguns excertos:

(...) não é estranho que [Alberto Vaz Silva), sendo licenciado em Direito, ele se tenha tornado um poliédrico e colossal humanista; que tendo exercido advocacia, por mais de trinta anos, ele se tenha sentido renascer no encontro com Rosaline Crepy, sua iniciadora no saber da grafologia, e a partir daí mudado de vida; que tenha viajado pelo hemisfério sul (e por um sem-número de hemisférios interiores) para ver grupos de constelações, como outros viajam pelo interior de bibliotecas ou de árduos e fascinantes problemas matemáticos. 

Ele vislumbrou uma nova relação com o real, feita não já de oposições e distâncias, como se a vida não fosse um mistério único, mas sublinhando corajosamente os traços de união, os hífens inesperados, as continuidades. E assim nos mostra que não há pequeno ou grande, não há cósmico nem quotidiano, não há interno ou exterior: por todo o lado e em todas as coisas está, pelo contrário, latente a mesma espantosa proposta que a vida em si mesma é.

(...) O contributo dele é aproximar na mesma visão, numa nova sintaxe, aquilo que se avista de galáxias diferentes. O que o apaixona é o que ainda não existe ou o que começa a emergir sem que a maioria se dê conta.


(...) Para homens como Alberto Vaz da Silva, a italiana Cristina Campo reserva um nome: imperdoáveis. Isto é, aqueles que possuem e definem um estilo, os habitados por uma força profunda, por um carácter próprio, por uma sabedoria irremovível, aqueles que desenham com as suas vidas um mapa de tal forma original que se torna necessário à viagem dos outros. 

Há uma frase de Saint-Martin, que Alberto Vaz da Silva recorda muitas vezes: "Houve certos seres através dos quais Deus nos amou". 

Talvez seja isso. Talvez todo o mistério comece por aí.




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As pinturas são de António Palolo

Horowitz interpreta Schubert - Impromptu in G flat major D899 No.3

A referida crónica de José Tolentino de Mendonça veio publicada na revista E do Expresso deste sábado, dia 27 de Junho de 2015.


Para quem queira conhecer melhor Alberto Vaz da Silva, aqui fica o link para a entrevista que concedeu a Anabela Mota Ribeiro em 2012, entrevista essa que é referida na crónica de José Tolentino de Mendonça.

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E, se quiserem saber das ameixas, orégãos e outras coisas in heaven, aceitem o meu convite e desçam, por favor, até ao post já a seguir.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma fantástica semana a começar já por esta segunda-feira. 
Que a vossa vida vire para melhor. 

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As ameixas já eram e as amoras ainda não estão boas mas, vá lá, os orégãos já estão bons para a salada. E o alfazema está perfumado de dar gosto. E um ventinho de leste a erguer a minha saia.


Hoje tinha uns mil assuntos para aqui partilhar convosco, nem sei por onde começar. Tenho estado para aqui a fazer cálculos mentais, a ver para o que é que tenho tempo e que outros posso deixar para outro dia. 

Mas, para começar, o mais importante.

Já no outro dia me tinha aqui lamentado por causa das filhas-da-mãe das ameixas. Saborosas e doces que só visto e raramente lhes consigo ferrar o dente. Os sacanas dos pássaros levam-me sempre a melhor. Se eu estivesse in heaven a tempo inteiro, conseguiria antecipar-me mas, assim, um dia vejo-as ainda mal começando a ganhar cor e, quando lá volto, já as encontro comidas, debicadas, e outras no chão, no meio do mato.




Para ver se compensava -- estava mesmo a apetecer-me a doçura dos frutos vermelhos -- fui-me às silvas. Carregadas, carregadas de amoras mas, ora bolas, ainda não estão no ponto. Já com uma corzinha razoável mas longe de estalarem em sumo rubro na boca. Limitei-me a fotografá-las: não come a boca, deleitam-se os olhos.




Fui então passeando, observando os figos ainda miúdos, as flores, as árvores que dançam ao de leve com a aragem quente, sentindo a caruma seca ou a cama de folhas miúdas e estaladiças das azinheiras sob os pés. Depois atentei nos orégãos. Já bem floridos. Daqui a uma ou duas semanas apanharei umas belas braçadas para que a minha mãe os seque e distribua por frascos para toda a família.

Mas, ainda assim, já apanhei uns quantos pés. Mesmo frescas, as flores dos orégãos são boas, perfumam as saladas, e dão um toque de sabor campestre aos assados no forno.

Quando estava a apanhá-los, o vento estava a dar na minha saia e, ao tentar controlá-la, devo ter disparado sem querer a máquina. Agora ao passar as fotografias para o computador, cá estava a imagem do momento.




Até me fez lembrar um poema a que sempre achei uma graça especial, do Daniel Filipe.

Um amor como este
não pede mar ou praia:
somente o vento leste
erguendo a tua saia.

O resto é o futuro
além, à nossa espreita:
doce fruto maduro
na hora da colheita

E depois apanhei também alecrim, fica-me a cozinha cheirosa e os assados ainda mais saborosos; e também umas pontas de alfazema que dão um perfume fresco e lavado à casa.




Já estava de regresso à frescura da casa (que calorão que estava cá fora, que calorão... Só se estava bem dentro de portas), quando vi as pinhas já prontas para atear a lareira ou a salamandra nos próximos frios. Fotografei-as, acho-as bonitas no seu ton sur ton.




A natureza é uma fonte de beleza, de prazer e de vida. Para mim, é na perfeição que encontro na natureza, em toda ela, que reside o grande milagre da existência e da vida. Não quero saber se, na génese de tudo, houve um grande arquitecto, o génio da lâmpada, um deus único ou mil deuses. Basta-me observar e respeitar o que vejo e o que adivinho sob a superfície das coisas e dos seres.

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De entre as oferendas recebidas hoje por mail, que agradeço, aproveito para divulgar aqui um vídeo com imagens que são também uma beleza. Alguns dos lugares que aqui se vêem já os conheço, outros terei que conhecer. Portugal é um país muito bonito.


Aldeias de Portugal


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domingo, junho 28, 2015

Sailors and Daughters






De um Leitor que sempre me envia coisas que muito me agradam recebi o link para uma exposição online que nos transporta para tempos de pioneirismo e aventura. 




E, no entanto, vendo as fotografias que constam da exposição, penso como, apesar de tudo, são tempos tão mais longínquos em relação aos tempos presentes quanto, nessa altura, se viam sorrisos, vestígios de paz e uma expectativa positiva nos semblantes de quem se deixava fotografar enquanto, agora, nos grandes êxodos por mar a que hoje assistimos, o que vemos é gente aflita, desgraçada, que foge de guerras cruéis, de pobreza, violações, desmandos inumanos, metendo-se em barcos em que a probabilidade de sucesso é praticamente nula.




Mas a exposição é do pioneirismo na arte e no prazer de fotografar que sobretudo trata. Que imagens maravilhosas nos chegam de tempos e locais tão remotos, que maravilha é esta arte da fotografia. Saber que estas foram pessoas que, um dia, há cerca de século e meio se puseram em frente de uma máquina estranha e sorriram ou se mostraram desafiadoras e se deixaram fixar para a posteridade, é qualquer coisa de fantástico.

Diz o Leitor, a quem muito agradeço, que: Saber, bons materiais e bom gosto tornaram esta pequena exposição - online - um "must". De facto. Concordo.




Transcrevo do site:
Sailors and Daughters reveals the expansive maritime societies of Zanzibar, the east African coast, and beyond. From the 1840s, cameras traced the international migrations of traders, sailors, sons, and daughters through Indian Ocean ports, continuing trade that dates back over five millennia. East African cities flourished as hubs of both land and sea trade routes, which extended to the central African interior, Horn of Africa, Persian Gulf, Indian Ocean islands, western India and the Far East. 
The region’s intercultural ethos generated a multitude of encounters between subjects, photographers, and the global audiences who viewed the resulting images. By gathering images from scarce and little-known collections of early photographs, lithographs, postcards, and private albums, this exhibition focuses attention on a diverse cross-section of the region’s people and their cosmopolitan cities by the sea. It serves as a starting point for a larger photographic and creative visual history of the prosperous and diverse communities of the Indian Ocean world.



A exposição tem o nome de Sailors and Daughters - Early photography and indian ocean e vê-la é um prazer.



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A música é Fleurette Africaine do álbum Solo na interpretação de Vijay Iyer (de quem também tive conhecimento através do mesmo Leitor). 

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E hoje fico-me por aqui. Este sábado foi daqueles dias grandes que meteu de tudo: praia, festa de anos à tarde (os caranguejos, por estas bandas, são aos cachos), jantar de família, sarau nocturno, meninos a dormirem cá em casa e o mais que quiserem imaginar. Por isso, a esta hora, estou que nem me tenho. Não sei de nada do que se passou no mundo nem do que se vai passar na próxima semana até porque, como é bom de ver, não tive ocasião de acompanhar a sessão do catraio Mendes, esse tão ladino videntezito. Por isso, sem forças e sem saber de nada, de que me ia eu pôr para aqui a opinar, não é?

Vou ver se leio um pouco o Expresso mas duvido que a coisa vá funcionar bem. Tenho cá para mim que, assim que pousar o corpo em cima da cama, o assunto se resolve na hora: tiro e queda.

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E, assim sendo, desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo dia de domingo. 
Desejo-vos muitas felicidades.

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sábado, junho 27, 2015

O amor ao espelho. Like a painting.








Estava sem saber o que fazer, agora que estás longe. As minhas irmãs vieram fazer-me companhia, tentam sempre animar-me. Animada eu estou, sinto é a tua falta, parece que nada faz muito sentido sem te ter aqui comigo. Durante o dia penso que te devia contar o que pensei, contar-te sobre a música que ouvi, relatar-te as conversas que tive. Mas, depois, ao falar contigo, não ia maçar-te com isso e ficava com tanta coisa dentro de mim, sem as partilhar contigo. Parece que nada vale muito a pena se é para ficar apenas comigo. Há uma dimensão que se acrescenta ao que se vive, que é a que resulta da partilha com quem conhece o nosso coração.

Então elas vieram, buliçosas, e as três escolhemos vestidos de verão, e os vestidos que escolhemos não tinham alças e mal cobriam o peito e então escolhemos blusinhas justas para vestir e despimos os soutiens, e vimos como os nossos seios permanecem iguais, pequenos, mamilos pequenos, peitinhos de adolescente, e rimos, e dissemos graças maliciosas, e depois escolhemos laços para pôr na cintura, cada laço de sua cor, e sapatilhas bordadas com brilhantes, e penteámo-nos umas às outras, e pusemo-nos com ar de noivinhas antigas e, rindo, saímos para o jardim e fizemos uma roda em volta da árvore e cantámos e dançámos. E voltámos a ser meninas, as manas sorridentes, as meninas com uma vida feliz pela frente.

Depois sentámo-nos na varanda, cansadas, e, ao verem-me calada, logo se puseram em minha volta, e desfizeram-me o penteado, e contaram-me histórias, tentaram fazer-me rir. Ri-me para não as preocupar, para que se fossem embora. Sei fazer de conta que estou contente. Mesmo elas, que me conhecem tão bem, não percebem, julgam que desviam o meu pensamento para sítios onde tu não existes. Deixo-as julgar, rio-me com elas.

Vendo-me alegre, foram. Vi-as saírem, conversando, de braço dado, cabelo solto, disponíveis para serem felizes. Viraram-se, fizeram adeus, atiraram-me beijos no ar. Retribuí, rindo.

Mal se afastaram, voltei para dentro. Olhei para o relógio. Vontade de falar contigo. Vontade de saber de ti, vontade de te ouvir a contares-me o que fizeste. Podias dizer coisas simples, assim: atravessei a rua, a árvore ao pé do semáforo está florida, almocei numa esplanada, pensei em ti, depois o sol batia-me na cara, não consegui ler, pensei em ti. Podiam ser coisas assim, simples, que eu ouviria com interesse, como se fossem histórias raras. Mas a esta hora podes estar a trabalhar ou em casa, não posso ligar-te. Tenho que esperar que me ligues, que me escrevas, que te lembres de mim.

Despi o vestido das flores, despi tudo. Fiquei nua. Olhei-me ao espelho, a pele branca, macia, sem préstimo. Senti a falta do teu olhar que acariciava a minha pele, que procurava o meu olhar. Querias perceber se eu te queria tanto como tu me querias. E depois olhavas o meu corpo que dizias que tinha sido feito para ti. Lembras-te de como olhavas o meu corpo? Lembras-te de como querias que eu me despisse devagar para olhares? Lembras-te de como querias aproximar-te e eu te afastava até que não aguentasses mais? Ah, como eu gostava de me despir para ti, de deixar que o sol entrasse para pousar no meu corpo, para que me visses envolta em luz. E tu dizias, afasta-te da janela, ainda te vêem e eu provocava-te, aproximava-me ainda mais, e dizia, pois que me vejam, que vejam como me dispo para ti, para que me vejas nua, tua. E fechava os olhos, e dizia, se eu não vir, também não me vêem a mim, e tu dizias, eu vejo-te, e eu dizia-te, ah, mas eu quero que me vejas, é para ti que danço ao sol, e o sol dançava na minha pele e tu que eu fosse mas é para perto das tuas mãos. E eu dizia, já vou, quando o meu corpo não puder esperar mais, quando as tuas mãos não puderem esperar mais. E tu dizias, já não posso esperar mais. Ainda te lembras?

E, como eu não fosse logo, insistias, vem, traz o teu corpo para os meus braços, vem, vem que não vivo sem o teu corpo junto ao meu, vem que os meus braços ficam vazios sem o teu corpo, vem, vem.

E, então, eu ia, e ia devagar, e ia antecipando o prazer de me ter entre os teus braços que me abraçavam com tanto amor, como se não fossemos separar-nos nunca. Lembras-te?

E assim estive, envolta em lembranças, em silêncio e saudades, em frente do espelho, até que a tarde tombou e trouxe o véu que prenuncia o anoitecer. Sozinha, num quarto quase sem luz, sem a tua voz, sem o teu olhar, olhei o meu corpo inútil. Podia ter tido pena de mim. Mas não tive. Já não te lembras de mim. Não mereces estas minhas tão fundas saudades.

Depois tive uma ideia: vesti o vestido com que um dia me sonhei, e assim, vestida de branco, voltei ao jardim, entrei pelos fetos macios, deitei-me como numa cama feita para o amor, acariciada pelas folhagem macia como os teus dedos. Que saudades tenho dos teus dedos, eu era uma dócil harpa nos teus dedos, lembras-te?

Esperei a noite, que a noite esconde segredos, por vezes traz mistérios que se desvanecem pela aurora. Se me ligares ou escreveres não me encontrarás. Pensei: se um dia voltares a lembrar-te de mim, talvez já eu não me lembre de ti, talvez já me tenha apaixonado pelos mistérios que a noite esconde.

Fechei os olhos e deixei que o sono ou o sonho ou os segredos tomassem o meu corpo. O meu corpo é o corpo de uma mulher livre. Lembras-te disso, não te lembras?



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As fotografias fazem parte da exposição 'Vogue: Like a Painting' que pode ser vista no Museo Thyssen-Bornemisza em Madrid  entre o próximo 30 de Junho e 12 de Outubro.



A primeira fotografia é One enchanted evening, Taormina, Sicilia de Peter Lindbergh, 2012. 
A segunda não sei.

Maria Callas interpreta Madame Butterfly de Puccini

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E, por falar em liberdade, desçam, por favor, até ao post seguinte. 
Ali fala-se da liberdade e da dignidade no berço da democracia e junta-se um link para um magnífico post onde se desvendam alguns mistérios.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um sábado feliz, sereno.

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Tsipras, o referendo, a democracia, a dignidade


Tsipras é dos poucos estadistas que ainda conserva um pingo de dignidade nestes tempos de atoleiro, intimidação, chantagem e vergonha.

Miseráveis são os contabilistas armados em estrategas, os fiscalistas especializados em penhorar gambas panadas, os cobardes disfarçados de gente importante, ministros e ministras que mais não são do que isildas, rastejantes ricamente aperaltados, camaleões bem falantes, lacoisas, cavacos de toda a espécie, incompetentes servis, láparos, aldrabões e alcoólicos que governam esta europa pequenina -- deixando o terreno livre para toda a espécie de abutres e esquecendo a união entre os povos e o mais elementar respeito pela dignidade humana.

Bem podem palrar os camelos camilos, os gomes f., os das neves e outros fala-baratos, ilustres avençados, lacaios, acéfalos, papagaios e míopes, e todos esses campeões da verdade a la minute que acham que isto é uma questão de idade da reforma, de iva, de bugigangas dessas. Bem podem. Coveiros, ignorantes e zombies que não sabem o que é a liberdade, a democracia, a dignidade.

Não sei qual será o resultado do referendo na Grécia, não sei qual será o desfecho de tudo isto. Mas é um acto de afirmação e de dignidade este de convocar um referendo para, em poucos dias, obter a opinião do povo.

Salve Tsipras! E que grande discurso!

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Sobre o que se está a passar na Grécia recomendo vivamente a leitura de Como estourar um país para proveito próprio e mau exemplo


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sexta-feira, junho 26, 2015

Quando será que aquelas abéculas do Eurogrupo, do FMI, da Comissão Europeia e do raio que os parta -- que andam a moer a paciência a toda a gente, em especial, aos pobres gregos que mereciam melhor sina -- atinam? Cambada de gente de vistas curtas, de abutres e de isildas. Só espero que, quando o assunto estiver finalmente resolvido, soltem um rocket circular gigante que se veja de todos os países... [Sobre o assunto Jara e Cavani e sobre os meus votos para as próximas legislativas portuguesas, por pudor, não falo aqui no título, só mesmo no fundilho do texto]


Quando se faz planeamento e controlo de gestão, olham-se para os números de forma abrangente e compreensiva, tentando perceber as tendências, como é que as variáveis externas impactam nas internas, a origem dos problemas, a razão de ser dos desvios face ao expectável, etc, etc. Geralmente olham-se com mais atenção os grandes números, que são os que influem decisivamente na condução das organizações, e não se perde tanto tempo com miudezas já que o esforço de as olhar em detalhe não paga o tempo que com elas se gastaria.

Em contrapartida, os contabilistas devem garantir que as contas estão certas ao cêntimo, que não há verbas transviadas, mal classificadas, etc. Apenas com uma contabilidade certa, correctamente balanceada, as pessoas do planeamento e do controlo de gestão podem focar-se com acuidade nas 'gordas', descansadas por saberem que, se quiserem ir aos peanuts, as verbas lá estarão devidamente arrumadas e conferidas.

Ora bem, vendo o disparate que desde há uns cinco anos se passa na gestão da crise financeira europeia, concluo que a Europa está entregue a gente com espírito de contabilista. Não estou a menosprezar os contabilistas, note-se. Mas os contabilistas devem fazer contabilidade, não gerir a União Europeia.

O assunto deve ser analisado por gente com visão, com uma visão holística, estratégica, humanista, gente que perceba o que correu mal na aplicação do ideal europeu e saiba corrigir a rota da condução desta União, gente que saiba o que é a Política.




Não é possível que se esteja a arrastar tamanha crise, uma crise que envergonha quem tenha dois dedos de testa, por causa de trocos. É que o que está em causa na crise financeira grega são amendoins. Houve lá excessos? Claro. Onde é que não houve? Houve lá, como houve em todo o lado, em especial em países com economias vulneráveis e que, ao longo de anos, serviram para alimentar os negócios alemães (no material de guerra, então, foi uma festa! de tudo os alemães venderam). A correcção dos desequilíbrios deve ser feita de forma inteligente, respeitando a dignidade dos povos, pugnando pelo desenvolvimento e pelo equilíbrio.

O que está a ser feito, a querer impor castigos à viva força, só me faz lembrar aquela senhora e o movimento por si capitaneado, uma tal Isilda Pegado que, em conjunto com os PaFs, querem que as mulheres que abortam não apenas paguem taxa moderadora como vejam antes a ecografia e a assinem. Gentinha mesquinha, má, má, que gosta que os outros ajoelhem vergados sob o peso da culpa. Uma vergonha.


Ora aquilo a que assistimos é que parece que na condução dos destinos da Europa se juntaram os contabilistas, as isildas, os láparos desta vida, os chernes e seus derivados, e, ainda, os agentes escusos que se ocupam dos jogos de poder e falhanço (porque, não nos esqueçamos, há sempre alguém que muito ganha quando alguém muito perde) - e o sarilho é infindável, uma teia cada vez mais ensarilhada, uma cambada de estarolas mentecaptos que não sabe sair do labirinto onde se enfiaram. E, claro, os abutres estão à espreita.




Mas, enfim, pode ser que um dia destes, algum desses palhaços ganhe tenência ou que comecem a aparecer Políticos (com maiúscula), inteligentes, honestos, corajosos, e que este regabofe acabe. 

Nesse dia, só espero que haja festa rija, bailes na rua, alegria, esperança, balões pelo ar.

Ora, nem de propósito recebi, de um Leitor a quem muito agradeço, um vídeo extraordinário. Melhor que o fogo de artifício da Madeira, que os balões de S. João, melhor do que tudo o que já se viu. É na Tailândia e é do além. E é o que deveria haver quando a Europa voltar a ser um espaço de liberdade, democracia, desenvolvimento e respeito pelas pessoas.


Giant Circular Rocket

(Para dias de festa rija)


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As imagens acima usadas para enfeitar o texto, que revelam o sentido de humor de quem as produziu, são da autoria do grego Manos Kaperonis (@manoskaperonis)


Há quem diga que, para compreender os outros, nada como nos calçarmos com os sapatos desses outros (sou uma desmiolada com os ditados, e isto que escrevi não me está a soar nada bem; deve ser outra coisa mas, enfim, agora não me ocorre nada melhor).
Ora, aqui a ideia é mudar de cabelo (ou de cabeça, mantendo o cabelo) a ver se compreendem os assuntos com a cabeça dos outros: a sonsa da Merkel a perceber o entalado do Tsipras e o cabelo da sabuja da Lagarde (Lacoisa)** com a cara do pedaço do Varoufakis**. 
Enfim, mesmo que não produza efeito prático, tem graça. Ao menos isso, que os gregos e os europeus em geral não percam o gosto pela alegria de viver.


[** As palavras Lacoisa e o pedaço do outro (pedaço do outro salvo seja, claro) não é de minha lavra: ver por favor, comentário abaixo da sempre inspirada Leitora Rosa Pinto]

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Recebi também, por mail, um outro vídeo que aqui divulgo, desejando que o povo grego que se vê como que enclausurado numa jaula com um leão, e quase parecendo que de lá não vai conseguir sair com muita saúde, tenha a presença de espírito e a coragem que Charlot teve.

(E quem diz o povo grego diz toda a gente que se vê aflita, metida num sarilho dos grandes, aparentemente sem razão para ter esperança: há sempre razões para acreditar). Por exemplo, eu tenho esperança. Apesar das sondagens, acredito que o povo português, nas eleições, vai fazer aos PaFs o mesmo que Jara fez ao Cavani* -- e, portanto, haja esperança, minha gente).



Charlie Chaplin na jaula do leão




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* Dizia eu que, apesar da aparente falta de assertividade de António Costa, que está a custar a arrancar, (e apesar do ar desbotado e infeliz dos cartazes do PS...), ainda estou convencida que, entre o PS, o PCP, o BE e o Livre, os portugueses vão fazer aos PaFs o que o Jara fez ao Cavani.
Aos que não acompanham estes gestos de salão, explico. E que me desculpem as pessoas finas que frequentam o Um Jeito Manso. Eu também sou fina, ora essa, mas, meus Caros, às vezes tem mesmo que ser.

Com vossa licença, mostro e transcrevo


A jogar em casa, o Chile eliminou os uruguaios, detentores do título, num jogo carregado de polémica e com duas expulsões na seleção do Uruguai. Uma delas, a de Cavani, foi crucial no desfecho da partida e está a correr mundo devido ao gesto do defesa chileno Jara, que provocou o avançado uruguaio ao introduzir um dedo no rabo do avançado.


Nem mais.
(Temos pena.)

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Resumindo e baralhando: Está mais do que na hora de nos vermos livres de pró-chernes, ácaros, pinókias, vice-portas, cães com pulgas, schäubles, lagardes rastejantes, hollandes pastelões, vírus, láparos e bicheza ruim de toda a espécie.


Neste caso, do láparo, (como nos restantes): lixo com ele. 
E a seguir, toca de lavar as mãos com um bactericida dos valentes.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela sexta-feira. 
Aliás, todas as sexta-feiras são de uma beleza estonteante. Belas e boas, boas, boas.

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quinta-feira, junho 25, 2015

Como se eu fosse a árvore e tu fosses um espelho -- [Uma história levezinha entre o poético e o erótico]


Depois de um dia de trabalho, a mulher foi a um debate seguido de concerto. São normais estes convites. O local não podia ser mais agradável. Um edifício apalaçado com um grande jardim mesmo no meio de Lisboa. 

No entanto, tinha estado com uma certa dor de cabeça. Tinha acordado de madrugada, tinha ficado com calor apesar da janela estar aberta. E as muitas reuniões do dia, umas complicadas, tinham ficado a desfilar na sua mente. Isso e outras coisas. Muita vida a decorrer em muito pouco tempo, muitas camadas de vida, umas visíveis, outras ocultas, muita canseira, muito livro para ler, muitas viagens por cumprir, e saudades, e incompreensões e preocupações, e, em cima de tudo, muito sono para pôr em dia; e logo, a meio da noite, o sono haveria de se evaporar.

Finalmente, já de manhã. adormeceu. Passado um bocado tocou o despertador e, obrigada a levantar-se de imediato, não conseguiu ter um despertar progressivo e, logo ali, a cabeça mostrou desconforto.

E foi em crescendo, ao longo do dia. Desabituada de comprimidos, foi esperando que passasse por si. Mas não passou.

Portanto, pouco antes da hora de sair da empresa para atravessar a cidade em direcção ao local do evento, hesitou. Pensou que devia era ir para casa, meter-se debaixo do chuveiro, comer um pêssego e um iogurte, atirar-se para o sofá e adormecer. Mas o programa e o local eram aliciantes. Foi à copa, preparou uma infusão. Sentou-se a bebê-la devagar. Sentiu que talvez estivesse a melhorar.

Foi à casa de banho, viu-se ao espelho, avaliou-se. As olheiras estavam fundas mas nada de dramático. Foi, então, ao gabinete, desligou o computador, avisou que ia sair mais cedo. Entrou de novo na casa de banho, passou uma sombra nos olhos, nos lábios um gloss em tom nude, passou o pente ao de leve pelo cabelo de modo a mantê-lo com ar despenteado. Despiu a blusa, ficou apenas com o top. Desceu à garagem, dirigiu-se ao carro, trocou de sapatos, os de salto alto normal por outros mais elegantes, mais altos.



E arrancou.

Na rua, deixou-se ir com a janela do carro aberta. O ar fresco da tarde sabia-lhe bem. Ajeitou o retrovisor e viu-se ao espelho. De repente, lembrou-se de uma coisa. Que esquecimento. Na estação de serviço mais à frente parou. Tinha uma fita preta, larga, na carteira. Apanhou o cabelo ao de leve com uns ganchos quase invisíveis e prendeu-o melhor com a fita a que deu um nó de lado, as pontas curtas espetadas, quase um turbante. Riu. Será que já não tinha idade para isto? Riu de gosto. Pensou: que se lixe. Arrancou, prego a fundo, a janela aberta.




Na rádio, a Callas interpretava o O mio babbino caro. Perfeito.

Quando saíu do carro, vestiu o blaser. Atravessou a rua. A sala estava cheia. Sentou-se numa das filas de trás. Debatiam a futuro da Europa, falaram da Grécia, uns a favor de uma valente lição a ver se aqueles malandros aprendem, outros que o problema é político e que é melhor não abrir a caixa de pandora. Tretas. O drama grego já a servir de entretenimento de fim de dia a gestores, empresários, advogados, jornalistas. Olhou em volta. Não viu jeito de estarem ali académicos, artistas, gente desempoeirada. Tudo executivos e a fauna que os rodeia. Uma maçada.

Levantou-se, então, e foi espreitar as salas em volta. A dor de cabeça tinha desaparecido. Sentia-se, de repente, aliviada, a cabeça leve. E toda ela se sentiu leve, livre.

Começou, então, a ouvir a música. Era chegado o momento musical. Então parou. A mesma música. Espreitou. Uma jovem cantava o que tinha vindo a ouvir no carro.

Em silêncio foi avançando pelas salas. Esculturas, pinturas, belos cadeirões revestidos a tapeçaria, pesados cortinados, um conforto requintado, uma decoração que preservado a riqueza de outros tempos.

De repente, sentiu-se observada. Um homem estava junto a uma janela mas, em vez de olhar para fora, olhava-a a ela. Sobressaltou-se. Colocou a mão no peito, como se querendo acalmar o coração. Disse: 'Assustou-me...'. Ele disse apenas: 'Não fiz nada'. Ela desculpou-se 'Sou eu, sou assustadiça e também não pensei que estivesse aqui alguém'. Ele disse: 'Se quiser, vou-me embora'. Ela sorriu, 'Que ideia'.

Então ele disse 'Estava a ver o jardim, daqui vê-se um recanto, a esta hora está bonito'. Ela aproximou-se, 'Que bonito, que paz'. Da outra sala chegava o canto, a luz que vinha da rua era uma luz coada, o jardim lá fora estava envolto em dourado: um momento perfeito. A mulher ficou ao lado do homem. Em silêncio. Depois, quando ela se virou para se afastar, o homem começou a dizer qualquer coisa em voz baixa, uma toada. Ela parou, pôs-se a ouvir. Aos poucos a sua pele foi ficando arrepiada. O homem, olhando o jardim, dizia

paraíso de espaços múltiplos
e velozes,
entranhado em mim como se eu fosse a árvore
e tu fosses um espelho que a árvore despedaçasse pela sua força
e no espelho eu, como uma imagem, fosse despedaçado,
brilhando.

A mulher ficou parada a olhar para ele. No fim, como ela o olhasse, em suspenso, ele disse: 'Herberto'. Ela quis sorrir mas estava quase emocionada, e surpreendida. 'E sabe de cor?'. Ele encolheu os ombros, 'Sei algumas coisas'.

Então ela aproximou-se e com ar zangado disse: 'Fez mal'. Ele admirou-se: 'Fiz...?'. Ela confirmou 'Muito mal'.

Sério, ele tentou perceber: 'E posso perguntar o que fiz eu de tão mau assim?'. Ela fez um ar ainda mais zangado, 'Não se faça de inocente. Fez mal e vou ter que o castigar'. Ele sorriu ao de leve, 'Assim? Castigo directo? Sem acusação? Sem culpa formada?'. Ela zangou-se ainda mais: 'Ora, não brinque com coisas sérias; acha que podia dizer um poema destes, num fim de dia destes, com uma música de fundo destas, a olhar pela janela para um jardim destes, e nada lhe acontecer...? Não brinque comigo...!'.

Então tirou a fita do cabelo, apeteceu-lhe sentir os cabelos soltos sobre o rosto. Encostou o homem à janela. Depois ainda ensaiou puxá-lo a si pela gravata mas, vendo o ar assustado dele, desistiu. Resolveu, então, tratá-lo bem. Chegou-se, encostou o seu corpo ao corpo do homem, sentiu que ele estava expectante, sem saber o que fazer. Ela não se importou com o espanto dele. Roçou o seu rosto pelo rosto dele, sentiu o corpo dele no seu, sentiu o calor que vinha do corpo dele, o perfume dele, deixou que ele sentisse o seu.

Depois afastou-se, virou-lhe as costas. Abriu a portada de vidro e foi para a varanda. Ele foi atrás e, cavalheiro, colheu uma rosa branca de um grande vaso; num gesto tímido, ofereceu-lhe.




Ela disse, 'Não pense que é por me oferecer uma rosa branca que está absolvido'. Ele olhou-a, 'Eu? Não penso nada. Deixei de pensar'.

Sedutora, ela brincava com a rosa, mas não abrandou, 'Quê...? Está a querer passar por inimputável...? Não... Vai ter que pagar, não pense...'. Ele disse: 'Grande foi, então, o meu pecado'. Ela assentiu, ar de caso, ' Foi. Foi mesmo. Vai ter muito que rezar'.




Depois afastou-se e virou-se para trás como que querendo, de novo, puxá-lo pela gravata, como se fosse uma trela. O homem hesitou. Ela largou-o. Ele ficou parado.

Ela avançou, entrou noutra sala, escondeu-se. Pouco depois, ouviu-o a entrar. Procurava-a e ela escondida. Quando ele saíu para outra sala, ela foi atrás dele. Via-o procurando por ela. Perseguiu-o. Ele inquieto e ela atrás, predadora.

Até que viu um outro homem, mais jovem. Disse, então, em voz alta para o diseur, que apanhou um susto: 'Então está com medo...? Anda a fugir de mim...?'. O homem disse 'Não, andava era à sua procura'. Ela disse, 'Não se arme em simpático, não pense que escapa ao seu castigo'. 

Ele riu, 'Pronto, rendo-me, faça o que quiser'. Ela disse, implacável, 'Ah pois faço... E sabe qual vai ser o seu castigo?'. Ele sorriu 'Não faço ideia'.

Ela empurrou-o para a sala onde estava o homem mais jovem e disse 'Vai ensinar-lhe um poema para ele também me dizer, quero que me digam poemas, ora à vez, ora em coro, baixinho, quase num sussurro. Quem disser melhor, ganha um presente'. O mais jovem, muito admirado, disse, 'Não sei se vou ser capaz'. Ela riu-se, ficava amoroso com aquele ar atrapalhado, o aprendiz. Ela tranquilizou-o 'Será, será. Cuidarei que o mestre seja paciente. E temos a noite toda para o ensinar'. E, maliciosa, olhou o diseur. Este corou. Ela sorriu e fechou-se lá dentro, com eles.



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O poema é um excerto retirado de Photomaton & Vox de Herberto Helder.

"O mio babbino caro" da ópera Gianni Schicchi (1918), de Giacomo Puccini é interpretado por Maria Callas em Paris, Junho de 1963.

O vídeo, muito recente, é The AristoCrazy Collection, da campanha Outono/Inverno 2015 relativa aos elegantésimos sapatos de Giuseppe Zanotti.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa quinta-feira.

(E não é que escrever esta historinha infantil me fez passar a dor de cabeça...? 
A sério. Passou mesmo. 
Ora aí está: quando tiverem uma dor de cabeça, nada de aspirina ou ben-u-ron: 
basta escrever uma história infantil. Boa. Já tenho matéria para um paper científico)

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quarta-feira, junho 24, 2015

O Pacheco Pereira e os demasiado lampeiros para serem sérios, o PS de António Costa, as sondagens, o Syriza, a UE, o euro, esta prisão absurda gerida por burocratas imbecis e desalmados --- e todo este mundo de incertezas e absurdos.


Meus Caros, no post abaixo falei das lágrimas que me cobriram os olhos perante o magnífico Pano de Cena pintado por Chagall para a Flauta Mágica e que está no CCB. No post a seguir falei da surpresa que tive ao ler um comentário que alguém muito especial para mim deixou no post sobre o Valverde Hotel de Lisboa.


Mas, agora, que entrem as valquírias!







É que, estando eu nesta boa onda, compreenderão que pouca vontade tenha para sujar os dedos com palavras sobre a forma cobarde e estúpida como os burocratas imbecis que governam a Europa estão a tratar a Grécia. Cobardes, estúpidos, desrespeitadores, acéfalos, broncos. E ainda gozam a pensar que ganham alguma coisa vergando um povo, um país. Gente parva, perigosa.

Compreenderão também que não tenha vontade nenhuma de falar deste PS tomado por maria-amélias que medem cada palavra com medo de que os tomem por perigosos radicais, gente acobardada que parece que só lhes falta andar de fralda, que não são capazes de dizer alto e bom som que governar não é desprezar o povo, não é impedir o desenvolvimento económico, não é amarrar gerações a uma dívida que parece um monstro de mil goelas. Compreenderão que já nem posso ver o António Costa incapaz de formar uma equipa credível, de gente desempoeirada, virada para o futuro, em vez de andar rodeado apenas por meia dúzia de gatos pingados a arrastar os pés como zombies.

Compreenderão que me custa à brava ver que tem que ser gente como o Pacheco Pereira a escrever coisas como Demasiado lampeiros para serem sérios 

(e uma vez mais agradeço ao Leitor que me enviou o artigo que eu, de outra forma, não teria lido que nem tempo tenho para passar os olhos, mesmo que apenas de relance, pelos jornais). Transcrevo a parte do texto que esse Leitor me enviou:

O PS ainda não percebeu em que filme é que está metido. Continuem com falinhas mansas, a fazer vénias para a Europa ver, a chamar “tontos” ao Syriza, a pedir quase por favor um atestado de respeitabilidade aos amigos do Governo, a andar a ver fábricas “inovadoras”, feiras de ovelhas e de fumeiro, a pedir certificados de bom comportamento a Marcelo e Marques Mendes, a fazer cartazes sem conteúdo — não têm melhor em que gastar dinheiro? — e vão longe.


Será que não percebem o que se está a passar? Enquanto ninguém disser na cara do senhor primeiro-ministro ou do homem “irrevogável” dos sete chapéus, ou das outras personagens menores, esta tão simples coisa: “O senhor está a mentir”, e aguentar-se à bronca, a oposição não vai a lado nenhum. Por uma razão muito simples: é que ele está mesmo a mentir e quem não se sente não é filho de boa gente. Mas para isso é preciso mandar pela borda fora os consultores de imagem e de marketing, os assessores, os conselheiros, a corte pomposa dos fiéis e deixar entrar uma lufada de ar fresco de indignação.


Compreenderão meus Caros como fico arreliada, e arreliada é apenas um suave eufemismo, por ter que ser uma pessoa do PSD a dar este abre-olhos ao António Costa.

É tarde e espera-me outro dia dos valentes pelo que tenho que estancar a minha indignação perante tudo isto. Mas a verdade é que fico passada com tudo isto, fico mesmo.



A União Europeia fede entregue a gente que toma decisões para ter votos nas eleições do seu país ao mesmo tempo que amarra os países menos desenvolvidos e mais vulneráveis a pactos incumpríveis e os impede de crescer ou de ter esperança numa vida melhor.

Portugal está entregue a uns Pafs ignorantes, manipuladores, gente incapaz que tem vendido o País ao desbarato, gente que já nem deveria poder sair à rua sem apanhar com grandoladas, gargalhadas, sapatos, tartes e sei lá que mais em cima -- e que, afinal, por aí andam lampeiros, a defecar de alto (pardon my french).

O PS, que tinha tudo para fazer uma oposição de pé em riste, anda armada em sei lá o quê, umas mariazinhas que parece que saíram da sacristia. Nem sei o que pense disto tudo. Ou o PS acorda para a vida e percebe que, se toda a gente acha que o Passos Coelho e o Portas não prestam, mas que, ainda assim, consideram votar neles, é porque não se revêem na forma como o PS está a actuar -- ou vamos ter o caldo entornado nas próximas eleições, ai vamos, vamos.

E enquanto a UE não começar a ter Chefes de Estado capazes, gente com visão, vamos continuar a ter cimeiras que só servem para enterrar cada vez mais o ideal europeu. O cherne foi-se embora mas o aquário ficou cheio de peixe podre. Caraças.

Vou pregar para outra freguesia que já estou farta desta cambada toda. Bolas para isto.




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As imagens mostram a Golden Valkyrie de Joana Vasconcelos. A música é (e desculpem por nem traduzir mas já mal consigo manter-me acordada): The Ride of the Valkyries from Wagner's Ring Cycle at the Met.

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Sem rever nada de nada e a escrever quase de olhos fechados e, portanto, antevendo que haja para aqui mais de mil gralhas, apresento desde já as minhas desculpas.

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E, se me permitem o conselho, desçam até aos dois post seguintes que contêm temas mais agradáveis.

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Desejo-vos, meus Caros leitores, uma bela quarta-feira.

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Marc Chagall, um imenso Pano de Cena no CCB -- e uma imensa emoção


Bom, agora que, no post abaixo, já me babei à vista de todos vou falar de outra coisa. A ver se consigo que não me parece nada fácil.







No outro dia, a seguir a um evento profissional, raspei-me para o Museu Colecção Berardo para ver a exposição O Olhar do Colecionador / The Collector's Eye. Ia sobretudo pelo Pano de Cena para A Flauta Mágica, de Mozart (2.º Acto, 3.ª Cena), 1965, de Chagall.

Fui indo pelos minimalistas, conceptualistas, etc, andando, andando, e já pensava que às tantas já tinham escondido o pano ou que, por artes mágicas, me tinha passado ao lado, ou que afinal estava dobrado e parecia pequenino e eu nem tinha dado por ele, e já desconsolada, pessimista, pus-me a tentar encontrar entusiasmo a ver as outras obras, quando, já sem nada esperar, me vejo numa sala enorme e, olhando para o fundo, tive uma das experiências mais avassaladoras de que tenho memória. Senti uma comoção que não sei traduzir por palavras. Quase tive vontade de cair de joelhos. Imaginam talvez que é um dos meus exageros. Não é, juro que não é. A minha vista não era capaz de abarcar uma beleza tão imensa, uma tal vastidão preenchida com as cores de Chagall.

Deixei-me estar ali, parada, a olhar de um lado a outro, de alto a baixo e, de repente, estava com lágrimas nos olhos, o peito apertado, numa comoção irreprimível. Soube depois que a isto Borges chama, creio, acto artístico. A obra a envolver quem a vê. Tive vontade de me sentar no chão e deixar-me ali ficar, tomada pela emoção de estar como que dentro do mundo mágico de Chagall.

Pelas circunstâncias, não tinha podido ir equipada com a minha máquina fotográfica. Por isso, deixei-me simplesmente estar. Quase como se estivesse em estado de adoração.

Depois, porque não podia ficar ali até ser noite, vim-me embora. Então lembrei-me que podia usar o telemóvel e voltei atrás e fotografei. Não ficou nada de jeito mas, ainda assim, aqui vos deixo com duas dessas fotografias.

Se puderem, não deixem de ir. Não se paga. E é daqueles momentos que nos convocam para o que há de mais espiritual dentro de nós. Ou dentro dos outros, não sei. Uma vontade de ser tolerante, generosa, infinitamente boa com os outros, com o mundo. Há ali uma inocência, uma luz, uma beleza, uma paz que parece apelar ao que de melhor temos dentro de nós. Não sei explicar. Não digo mais nada.

(Eu tinha dito que talvez não soubesse dizer o que tinha sentido)


O que aparece em primeiro plano não tem nada a ver com o imenso pano pintado por Chagall que está na parede do fundo

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Marc Chagall


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Lá em cima é: Tölzer Knabench (Tölz Boys' Choir) Magic Flute, Mozart (Die Zauberflöte)

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E desçam, por favor, até ao post seguinte para verem como fico, quando fico toda orgulhosa.

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Bem... agora é que tenho mesmo que elogiar ainda mais abertamente o Valverde Hotel. Tenho com cada boa surpresa...!




Só para dizer que há bocado, ao ver um comentário no post que fiz sobre o Valverde Hotel, fiquei completamente admirada e, of course, toda babada. 

Depois, quando falei com a minha filha, perguntei-lhe: 'Olha, viste aquilo sobre o hotel português recomendado pela Vogue? Sabes quem é que fez o projecto...?'. Ela exclamou logo: 'Tás a gozar...?!'. Confirmei. Ela acrescentou, toda orgulhosa também 'Sempre a mesma coisa, sempre o mesmo low profile'. 

Agora acabei de falar com ele, eu toda orgulhosa e ele todo sóbrio, não embarca nos meus arroubos -- que já foi há uns três anos e que o hotel está a ser louvado pela arquitectura, decoração, serviços, etc, não pela engenharia. Não interessa. Alguém estudou como transformar um edifício antigo e o projectou para ficar moderno, robusto e de acordo com o projecto de arquitectura. Bem sei que já tem feito projectos bem mais complexos mas não interessa, é deste agora que estamos a falar. E eu fico contente com todos os feitos deles, grandes ou pequenos, e não quero cá saber, está de parabéns e eu toda contente por ele.



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terça-feira, junho 23, 2015

A verdadeira autora de Um Jeito Manso. E uma cá das minhas, Elena Ferrante, pela mão de Pedro Mexia







Desconhecem-me e, por vezes, isso não chega a quem aqui me acompanha. Recebo mails em que Leitores se deitam a adivinhar a minha idade ou como sou do ponto de vista físico. Outras vezes há quem espere encontrar-me em lançamentos de livros para poder ver quem sou e como sou, e me escreva referindo a pena de ainda não ter sido dessa vez que conseguiram, finalmente, encontrar-me.

E, no entanto, se eu quisesse despertar interesse através de mim enquanto corpo, rosto, nome ou profissão, criaria uma conta no facebook ou até no linkdin e exporia esse meu lado exterior. Se essa fosse a minha opção, ir-me-ia mostrando a olhar o rio e escreveria uau, que bem se está aqui, ou mostrando-me a comer um gelado e escreveria nham nham, tão bom, ou fotografando os meus pés com uns sapatos novos e escreveria olha eu a fazer de conta que sou maluca por sapatos, e, portanto, centraria a minha comunicação internética na minha pessoa. Ora, a questão é que me acho deveras pouco interessante para isso. 

Pelo contrário, embora também não me ache a última coca-cola do deserto, penso que, quem aqui procura este espaço, o fará não por eu ser loura ou morena, magra ou gorda, engenheira ou doutora da mula russa, bem vestida ou mal enjorcada, mas, sim, porque o que aqui escrevo ou divulgo tem alguma graça. Pelo menos, tento iludir-me assim.

Se eu fosse escritora, também não me daria a conhecer. Não quereria que a minha escrita pudesse ser lida à luz da minha vida. Nem quereria ter que explicar o que escrevesse. Nunca. O que se escreve tem explicação para o próprio e tem-no no momento em que se escreve -- a menos que escrevesse sobre política, gestão ou qualquer uma dessas tretas de cariz mais prático. Agora, se escrevesse ficção, alguma vez eu teria paciência ou discernimento para explicar porque é que aquela personagem disse aquilo ou a outro fez outra coisa qualquer? Nunca. Cada um diz e faz o que quer: é coisa que assoma aos dedos de quem escreve sem se saber porquê. Ou, se souber, não é para estar a divulgar, ora.

Se eu escrevo aqui sobre fogo, sobre mar, sobre abismos, monstros, nuvens, flores, mulheres sedutoras, homens de perdição, gaivotas, espelhos, lágrimas, fúrias, desconsolos, desacertos, paixões, abraços perdidos no tempo, ou seja sobre o que for, a última coisa que eu quereria seria que alguém pensasse que essas rêveries têm alguma coisa a ver comigo ou com alguém que eu conheça ou que tentassem interpretar as palermices que aqui aparecem escritas à luz de quem eu sou na minha vida 'à civil'.

Como não sou escritora nem considero que o que aqui vou escrevendo tenha algum valor por aí além, não me ponho em bicos de pés e, portanto, não posso estabelecer comparação com a pessoa sobre quem Pedro Mexia falou aqui há dias. Mas gostei de ler.

De facto, no Expresso de 13 de Junho, Pedro Mexia escreveu uma crónica a que deu o título: O verdadeiro autor, em que fala sobre a irrelevância do 'verdadeiro autor' enquanto elemento determinante na apreciação da respectiva obra.


Sobre o assunto, escreveu ele a propósito de um nome grande da literatura actual, alguém que ninguém faz a mínima ideia quem seja: Elena Ferrante. Transcrevo alguns excertos.


Agora, os seus editores conseguiram entrevistá-la, e o texto, revisto, apareceu na última edição da 'Paris Review'.

Ferrante não desvenda o seu verdadeiro nome e não revela quase nada sobre a sua vida, mas conversa sobre métodos de trabalho e sobre a questão da autoria.

Um leitor inteligente não verá autobiografia em tudo, mas saberá reconhecer a 'autenticidade' do texto, que aliás não obsta à sua impecável ficcionalidade.

Não é a morte do autor que está aqui em causa mas a morte daquilo a que se chama um autor, e que é uma falsidade e uma desnecessidade. 'Se a autora não existir fora do texto, dentro do texto ela oferece-se a si mesma, acrescenta-se conscientemente à história, de um modo muito mais verdadeiro do que nas fotos a cores de um suplemento dominical, num lançamento, num festival, num programa de televisão, numa entrega de prémios'. Fazer desaparecer o autor empírico abre um espaço criativo. E essa ausência é colmatada pela escrita. Os leitores, acredita Ferrante, serão capazes de descobrir o 'verdadeiro' autor, 'em cada palavra ou violência gramatical ou nó sintático', tal como descobrem, aos poucos, a personalidade de uma personagem.

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Por isso -- e agora dirijo-me, em especial, aos meus Caros Leitores mais curiosos -- tenham por favor, alguma paciência comigo: não queiram saber quantos anos tenho, se sou feia ou bonita, se sou atraente ou antipática ou qual a área em que trabalho. Isso é irrelevante, passageiro. Uma desnecessidade. A minha verdade está nas ficções simples com que me entretenho, nas palavras que se soltam de mim à noite aliviando-me do peso dos dias, nas cores ou, mesmo, apenas no preto e branco com que levo até vós aquilo de que gosto, nos sonhos inocentes ou tresloucados que por aqui podem passear à vontade, nas minhas opiniões políticas, no humor que, por vezes, de mim se evade à rédea solta. E no amor que, por aqui, tantas vezes transparece.



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E, por falar em coisas de que gosto, aqui vos deixo duas delas.




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As fotografias são da autoria de Christian Coigny  
Eva Cassidy interpreta Over The Rainbow
Aurélie Dupont e Manuel Legris dançam o pas de deux Abandon de "Le Parc" numa coreografia de Angelin Preljocaj
E por vezes, David Mourão-Ferreira é dito por Teresa Coutinho

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça-feira.

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