Levantei-me às cinco e tal da manhã, centenas de quilómetros para lá, duas reuniões com almoço de serviço pelo meio, centenas de quilómetros para cá, cheguei pouco antes das oito da noite, depois fiz arroz, salada de tomate, alface, rúcula, tomate cherry, mozarrela fresca, e temperei com azeite, e vieram entregar duas pizzas com meio metro de diâmetro cada, uma de frango, queijo de cabra e nozes e outra com limão, salmão e manjericão, e comprámos ainda frangos assados. Às oito e tal já cá tinha as tropas em peso, e os miúdos desataram, de imediato, a correr uns atrás dos outros. Finalmente lá se conseguiu que todos lavassem as mãos e se sentassem. Coloquei um bocado de mel de urze na minha salada e creio que houve quem o pusesse nas pizzas, fica bem. Comeu-se e bebeu-se, a animação do costume, toda a gente com um daqueles apetites que parece ser contagioso.
No fim, veio a fruta e vieram as sobremesas e a minha filha trouxe um pão de ló. Disseram que parecia um jantar de festa mas que ninguém fazia anos. Eu disse que sim, que a revolução fazia anos e, por isso, em vez dos parabéns a você, cantámos, cada vez mais alto, a Grândola, Vila Morena. Os miúdos admirados por sabermos todos cantar aquela canção e a cantarmos tão animadamente. Depois ainda nos deu para tentar a Internacional mas aí a sapiência não foi extraordinária e a coisa não saíu famosa.
Um bocado depois, um dos bandos foi à sua pois tem que estar de madrugada no aeroporto. O outro está cá em casa, acampado, andam aqui à minha volta, espertos e sem sono. Daqui a nada vamos ver da janela o fogo de artifício e, se conseguir que alguma fotografia fique boa, ainda aqui a porei.
Enquanto escrevo, está a dar o Expresso da Meia Noite e parece que o Mário Centeno está a falar bem mas a confusão reinante não me deixa ouvir uma frase inteira. A minha filha conseguiu ouvir um bocadito e disse que gostou dele, que parece gente normal, disse ela.
E agora vou ver se consigo perceber como é que nos vamos instalar para ver o fogo de artifício.
Entretanto, agora os dois rapazinhos quiseram comer Cerelac e a minha filha foi a correr preparar isso para à meia noite estar despachada.
E é isto. Um simples episódio da história da minha vida.
25 de Abril
ResponderEliminarEsta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'O Nome das Coisas'
ABRIL COM “R”
ResponderEliminarTrinta (ou 40?) anos depois querem tirar o r
se puderem vai a cedilha e o til
trinta anos depois alguém que berre
r de revolução, r de Abril
r até de porra r vezes dois
r de renascer trinta anos depois
Trinta anos depois ainda nos resta
da liberdade o l mas qualquer dia
democracia fica sem o d
Alguém que faça um f para a festa
alguém que venha perguntar porquê
e traga um grande p de poesia.
Trinta (ou 40?) anos depois a vida é tua
agarra as letras todas e com elas
escreve a palavra amor (onde somos
sempre dois)
escreve a palavra amor em cada rua
e então verás as caravelas
a passar por aqui: trinta (ou quarenta?) anos depois.
(Público, 23 /04/ 04)
Manuel Alegre