No post abaixo, que muito vivamente recomendo que não deixem de ver e ouvir, mostro a cerimónia durante a qual Cate Blanchett discursa ao receber uma título honorífico numa universidade em Sydney.
Mais abaixo ainda, mostro a actriz Lupita, muito justamente considerada uma das mulheres mais belas do mundo, falando da sua vocação.
Mas isso é a seguir. Aqui, agora, apetece-me falar do outono. Ando com uma pendência mas é assunto tão fétido que me custa deitar-lhe a mão.
Por isso, permitam que vos conte do outono in heaven.
Vamos com música, por favor.
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O portão grande é o palco onde a glicínia exibe a sua volubilidade de mulher. Umas vezes florida, toda ela lilás, outras verde, outras dourada como agora. E, conhecendo-a como a conheço, mulher dada a despudores, não tarda tê-la-ei nua, enleando-se, tentadora, no varão do portão, no coração de quem por aqui ousa entrar.
O outono é a estação erótica, com os seus frutos de água, as florestas nascidas de um incêndio de seios, os rios engrossados pela chuva do desejo.
Este anos quase não houve dióspiros, o fruto do desejo, carne macia escorrendo em doçura. Este último rebentava, suculento, pedindo a minha boca. Fotografei-o e depois, gulosa, comi-o.
As uvas estavam cheias de mel e ouro, felizes e ternas sob esta luz suave de outono. Fiquei-me a olhá-las como se nelas residissem todos os segredos do universo. Depois também as comi e, quando as tinha já dentro de mim, pensei que dentro de mim, estavam, então, todos os segredos do universo. E que o mel e a luz que as dourava iria correr nas minhas veias, inundar o meu coração.
Eu podia alimentar-me de frutos, de bagas, de queijo, de mel, de pão, de vinho, de luz, de palavras.
Por esta altura os medronhos começam a ficar macios, derretem-se em doçura na boca. Depois olho os que ainda não encarnaram e penso que, se os deixo, os pássaros vão chegar antes de mim. Mas, também por isso, deixo-os. Sei que quando lá voltar já não os encontrarei mas esta terra é mais dos pássaros do que minha.
E há os milagres, a natureza que se antecipa. A nespereira esconde as flores que, em pleno outono, já despontaram.
Desde pequena que sou doida por nêsperas. O meu avô tinha uma nespereira enorme no quintal e trepava lá bem acima para ir buscar as mais carnudas para mas dar. Desse tempo, guardei o ferro com ponta arredondada com o qual ele puxava os ramos para conseguir apanhar a fruta que estava mais alta. Quando ele morreu, pedi ao meu pai que guardasse esse ferro para mim. É com ele que tantas vezes puxo as nêsperas que vêm sorrindo juntamente com a recordação desse meu avô, tão amigo.
A grevílea robusta continua a crescer. Está quase uma jovem adolescente, espigada, frágil.
Tenho contado isto muitas vezes e aqui tenho dado conta do seu crescimento.
Conto de novo: num dia de vendaval, a árvore original partiu-se, ficou um tronco triste, quebrado. Tive um grande desgosto e não deixei que o meu marido a cortasse, tinha esperança que voltasse a despontar. Mas era triste demais para ficar assim, sem vida, e o meu marido serrou-a junto ao chão. Até que no ano seguinte, para nossa alegre surpresa, percebemos que um pequeno rebento surgia junto ao tronco.
Desde então o meu marido tomou-a a seu cuidado, pequeno ser perfilhado. Rega-a no verão, vigia-a. E ela, sentindo-se estimada, vai crescendo. Temo sempre por ela, quando o vento sopra com força. Mas talvez seja mais forte do que parece com as suas folhas de renda macia.
E, por falar em renda, vou andando pelo campo e fotografo o que, em tempos, foi um saco de ráfia que guardava adubo. O tecido vai-se desfazendo, alourando, e eu gosto de o ver, fundindo-se com a caruma, com o musgo, com a terra, regressando à sua origem, ao seu destino.
Conto cada um dos seus dias por uma tabuada de expectativa. Estendo os minutos na tábua de engomar das emoções; e vejo-os dilatarem-se com o calor até uma eternidade efémera que a alma absorve, como se fosse o seu destino.
Aprendo a vida pelas folhas caídas das árvores. Deito-me sobre elas, até sentir a humidade da terra; e o teu corpo materializa-se num puro impulso de fêmea, soltando-se de entre as páginas do campo, ainda fechadas, como se o livro das estações mantivesse a sua virgindade no ciclo natural do tempo.
Vejo-te, então, à transparência das palavras, sacudindo os cabelos de cima dos ombros, num vento de vertigem.
As aves da noite caem dos teus olhos, com a branca humidade dos muros.
Roubo-te aos lábios um bater de asas; e o ritmo pontua o verso com que respiras.
À minha frente, para lá do meu bocado de terra, tenho o espaço imenso, o horizonte que os meus olhos tocam mas as minhas mãos não. A serra ao longe vai ficando azul e o azul vai cobrindo, como um veludo, as árvores, as terras, as casas ao longe.
Por vezes, ouve-se o estampido de um tiro longínquo, um cão que ladra, os pássaros que piam quando a noite começa a tombar, as folhas que dançam, um gato que corre, furtivo. Por vezes também, passa no ar o perfume de uma lareira que se acendeu, o cheiro fértil da terra húmida, o perfume dos pinheiros.
E eu sinto-me um bicho, e queria saber o silêncio, a doçura, o cheiro dos animais inocentes que aqui habitam, queria ser tão inocente e feliz como eles.
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A música é Serenade de Schubert
Os textos em itálico compõem o primeiro de Oito fragmentos de Nuno Júdice in 'O fruto da gramática'
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Permitam-me que relembre que, descendo um pouco mais, poderão encontrar um vídeo imperdível, um excelente discurso de Cate Blanchett, um discurso que deveria passar a toda hora nos locais onde Passos Coelho e a sua troupe estivessem, a ver se aprendiam alguma coisa. Mais abaixo ainda, poderão ver uma outra mulher igualmente bela e que vai a caminho de ser igualmente talentosa, a bela Lupita.
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E, assim sendo, ainda não foi hoje que me debrucei sobre a D. Cristina Ferreira do Norte, a madame blue bag das campanhas do PSD. Mas não perde pela demora.
Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela terça-feira.
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