Por estes dias tenho pegado no computador depois da meia noite, bem depois, e portanto não tenho conseguido tempo para responder aos comentários ou para falar de tudo aquilo de que gostaria de falar. Este sábado à noite, então, para além do adiantado da hora, ainda estive a ver o Eixo do Mal e o Downton Abbey, pelo que tenho mesmo que encurtar caminho, deixar de lado os agradecimentos aos Leitores ou alguns temas que bem mereciam a minha atenção, e resignar-me a falar apenas do inevitável.
E um comentário houve, que transcrevo, e que penso que não deve ficar sem resposta. Transcrevo o comentário:
O 25 de Abril marca a queda de um regime ditatorial e totalitário, regime este que não caiu do céu aos trambolhões, mas que surgiu dos escombros da anarquia e desgoverno total da falida primeira república. Não desejo nem um nem outro para o nosso querido país, embora receie que nos estejamos perigosamente a aproximar novamente do segundo.
A liberdade e democracia que vivemos só a devemos ao 25 de Novembro.
Acho que seria muito importante também não esquecer o que sucedeu após o 25 de Abril, as nacionalizações, os saneamentos, uma autentica caça à bruxas em que milhares de portugueses tiveram de fugir do país.
Já para não falar da organização terrorista das FP 25 liderada por quem…….
É bom não esquecer… ou saber a história….
I
A democracia é preciosa e tanto que toda a gente tem direito a expressar a sua opinião. Antes do 25 de Abril isso não acontecia.
Ontem à noite vi o Expresso da Meia-Noite no qual estavam quatro mulheres: Maria José Morgado, Joana Amaral Dias, Maria de Sousa e Hélia Correia.
Como sempre, gostei imenso de ouvir a Hélia Correia. Foi a que menos falou mas o que disse é sempre intenso. Dizia ela que quando alguém acha que se vivia melhor antes do 25 de Abril ela fica sem palavras, não consegue dizer nada porque acha que, quem diz isso, só pode ser ignorante ou estar de má fé, é alguém que se quer pôr do lado do mal, alguém em quem vive como que uma malignidade. Comigo também acontece isso. Custa-me rebater alguém que não gosta do 25 de Abril.
Mas vou esforçar-me para que não fique a ideia de que o tema me é indiferente. Não é. Acho que há coisas que devem ser defendidas e eu defenderei sempre a liberdade e a democracia e o desenvolvimento porque é esse o País que quero para os meus filhos, netos, bisnetos, trinetos e por aí fora. E espero que eles sempre o defendam também. Só numa sociedade livre e desenvolvida a vida faz sentido.
Antes do 25 de Abril, o País era vergonhosamente antiquado, os outros países olhavam para Portugal como um país pobre e atrasado no qual vigorava uma incompreensível ditadura.
Li um texto de Rita Veloso, alguém que sofreu na pele o que era a vida das crianças cujos pais, por quererem lutar por um mundo melhor, eram perseguidos e ou eram presos, torturados, ou fugiam do país ou viviam na clandestinidade.
Transcrevo uma parte:
Já por várias vezes escrevi textos com as minhas memórias do período da ditadura e da revolução. Neles, adoto sempre uma perspetiva feliz, dada pelos olhos da criança que era. O Sol e o mar de Peniche, as brincadeiras nas visitas ao meu pai, as ingenuidades de uma criança que tinha de lidar com termos confusos, como clandestinidade ou preso político. Afinal, se não guardarmos da infância memórias felizes, de quando guardaremos?
No entanto, é óbvio que essa perspetiva resulta de um filtro aplicado a uma realidade bem diferente.
Além de todas as misérias que afetavam a generalidade das crianças no período da ditadura – a subnutrição e a fome, o analfabetismo, o trabalho de sol a sol, as doenças vorazes – e que contrastavam brutalmente com as regalias das elites, havia as dificuldades específicas dos miúdos que nasciam em famílias de quem se atrevia a combater o regime, as quais se podiam somar ou não às anteriores.
Crescer na clandestinidade implicava estar-se privado de qualquer sociabilização fora do universo da família nuclear, à exceção de idas fugazes ao médico ou às compras de rotina. Não se usufruía de mimos e ensinamentos dos avós ou dos tios, não havia as brincadeiras com primos ou amigos, aspetos essenciais ao pleno desenvolvimento da personalidade do indivíduo, que se quer num ambiente seguro, carinhoso e estimulante, que questione o intrigante mundo dos outros. Em contrapartida, convivia-se vinte e quatro horas por dia com pais e irmãos. Desenganem-se os que pensam que isso era um privilégio: a tensão em que estas famílias viviam, resultante não só da situação de foragidos como também do convívio forçado e anatural, era sufocante e repercutia-se inevitavelmente nas suas crianças. Vivia-se numa bolha hiperprotegida e asfixiante. A isso juntava-se a instabilidade da contínua troca de casa, com mudanças feitas à pressa, que deixavam para trás as nossas referências físicas afetivas.
Quando chegava a idade escolar, o mais tardar, tudo mudava inexplicavelmente. Com mais ou menos conversas incompreensíveis, as crianças eram subitamente entregues a alguém da família, para poderem ir à escola sem levantar suspeitas e de forma estável. Não é preciso explicar o quão dolorosa era para pais e filhos esta separação. Em muitos casos, o contacto só foi reestabelecido na idade adulta, resultando, geralmente, em mágoas e acusações imperdoáveis. Muitos filhos questionaram o direito dos seus pais a constituir família naquelas condições, agravando ainda mais a dor que os pais já sentiam com o afastamento forçado.
O que levava tantos homens e tantas mulheres a optar por uma forma de vida que, de previsível, só tinha o dinheiro contado, a insegurança, a prisão e a tortura, o isolamento da família? Não seria, certamente, a sede de protagonismo, nem se tratava de semideuses ou heróis.
Serão, porém, seres com um profundo sentido de justiça e uma imensa capacidade de abnegação; indivíduos para quem o bem-estar próprio ou dos filhos vale tanto quanto o bem-estar de todos e para quem o primeiro não existe sem o segundo. Nem sequer se trata de abdicar de uma vida tranquila em prol dos outros; são indivíduos para quem a vida não é tranquila enquanto não houver justiça, igualdade e liberdade.
Tempos sombrios. Pessoas que, por quererem um país livre e melhor, se viam privados de toda a liberdade, incluindo da liberdade de poder acompanhar o crescimento dos filhos.
Em 48 anos de ditadura, cerca de 29.000 pessoas foram presas por motivos políticos. Uma vergonha que nunca deveremos esquecer.
Não há números exactos para o número de pessoas que tiveram que fugir do país para não serem presas mas foram milhares. Li no Expresso que, por alturas de Abril de 74, estariam exilados cerca de 100.000 jovens que queriam escapar à guerra colonial, essa guerra absurda, condenada à derrota e que tantas vidas estropiou.
A vida antes de Abril de 74 era boa para a minoria que se adaptava bem ao regime medieval, classista e iníquo que então imperava mas era insuportável para as pessoas que tinham alguns interesses intelectuais, que prezavam a liberdade de expressão, os valores democráticos, o desenvolvimento, o direito à igualdade de oportunidades, à justiça, à saúde, à educação e que queriam viver num País moderno e não numa ditadura ultramontana.
II
Até que, numa madrugada, aconteceu o que todos (ou melhor: quase todos) esperavam. Depois de 48 anos de repressão o que se esperava? Destape-se uma panela cheia de pressão...
Pois bem, apesar de alguns excessos, a revolução em Portugal nem foi bem uma revolução. Os portugueses são gentis, afáveis, tratam bem mesmo os inimigos. Um ou outro excesso? Claro que sim. Seria impossível pretender que um povo estava a viver reprimido e que, pouco escolarizado e pouco informado, de repente se tornasse culto, informado, preparado para regras democráticas que nunca tinha conhecido.
Mas tudo se passava em festa, movimentos para escolarizar um povo analfabeto, médicos enviados para as aldeias onde antes nunca tinha havido cuidados de saúde, comissões de trabalhadores, comissões de moradores, uma euforia, uma alegria. Em pouco tempo tentava-se recuperar todo o atraso. Claro, as nacionalizações, claro algumas injustiças, claro. Gente que foi presa injustificadamente. Mas ninguém lhes fez mal e foi por pouco tempo. Mas claro que não devia ter acontecido. Mas são as imperfeições da natureza humana. Houve depois as famílias mais abastadas, algumas, as que tiveram medo e fugiram, colocando os seus bens fora do país, saindo com a família. Se foi por medo ou prudência, não sei. Mas terão sido uma minoria, minoria essa que depois voltou e encontrou os seus bens intactos.
Houve saneamentos? Houve. Alguns justos, outros injustos.
Mas os excessos regulam-se e, de facto, regularam-se. No ano seguinte já as coisas estavam mais calmas, a democracia em moldes europeias começou a desenhar-se, a constituição ganhou forma, as eleições corriam normalmente e, assim, o 25 de Abril provou ser essencialmente uma revolução romântica, em que a população dava cravos que os soldados punham na ponta das armas, que atraíu intelectuais do mundo inteiro, toda a gente queria ver este povo saindo de 48 anos de repressão e de atraso.
III
Quanto a Otelo. Otelo foi o grande organizador das operações militares e o mérito da contenção e precisão da operação cabe-lhe a ele tal como cabe a Salgueiro Maia a coragem para servir de isco, pondo-se a caminho, por estrada, de Santarém a Lisboa. O País deve a Otelo, a Salgueiro Maia e a tantos outros a libertação. Como dizia a Hélia Correia, o 25 de Abril foi como um portal através do qual as pessoas saíam do passado e entravam directamente num outro tempo, num tempo prenhe de esperança, no futuro.
Otelo quis depois afastar-se, voltar às suas anteriores funções- mas Otelo é um líder. As tropas gostavam dele, quiseram-no por mais algum tempo. Espírito truculento, um enfant terrible, formação militar, habituado a decisões rápidas em tempo de guerra, nesse período eufórico e intenso logo a seguir ao 25 de Abril, perdeu a mão em relação a mandados que assinava em branco e outros disparates. Foram meses, talvez, em que durou algum desse desatino mas que apenas alguns o sentiam, os pides sobretudo, informadores, gente de quem se dizia ter colaborado com o regime salazarista.
Depois os militares saíram de cena, voluntariamente o fizerem, oficiais e cavalheiros.
De entre os que se retiraram, um manteve-se activo. Otelo, claro. Concorreu à Presidência da República. Depois deixou-se envolver por um movimento extremista. A justiça julgou-o por pertencer a um movimento terrorista, esteve preso, pagou pelo que fez. Continua a dizer que não esteve envolvido nas mortes.
Mas o facto de um dos principais agentes do 25 de Abril, anos depois, ter dado um mau passo, não deve esbater a grandiosidade do que foi o movimento que derrubou um regime obscurantista.
Apenas para que o Leitor que escreveu o comentário perceba melhor o que digo, deixe-me tentar ficcionar uma situação com algum paralelismo embora, claro, em escalas de importância completamente díspares.
Imagine que o Caro Leitor - sendo um excelente profissional, responsável por um projecto fantástico com benefícios para toda a organização - um dia, tempos depois, tem um deslize e se envolve com uma outra mulher que não a sua, negligenciando a sua própria mulher e filhos. Seria justo que, sempre que alguém louvasse a sua intervenção no projecto fantástico em que esteve envolvido, viesse outra pessoa dizer: convém não esquecer a forma como ele descurava a família quando andava de cabeça virada do avesso...?
Não seria justo, pois não?
IV
Em minha opinião o dia luminoso a celebrar é o 25 de Abril de 74 e o 25 de Novembro foi o travão que veio refrear alguns ímpetos mais afobados.
Mas quero ainda exprimir em números uma pequena parte do muito que devemos ao 25 de Abril (e vou citar parte dos números que Daniel Oliveira refere no Expresso desta semana):
- Em 1970 apenas 15.000 crianças frequentavam o ensino pré-escolar. Em 1990 já eram 161.000
- Em 1970 25,7% da população era analfabeta. Em 1990 já era apenas 11% e hoje o número já desceu para 5%
- Em 1970 a mortalidade infantil era 77.5%. Em 1990 já era 10,9%
- Em 1970 apenas 47,4% das casas tinham água canalizada. Em 1990 já eram 86,8%
Uma verdadeira revolução. Tranquilamente Portugal transformou-se por dentro, modernizou-se, tornou-se digno.
Por muito que façamos, nunca agradeceremos suficientemente aos Capitães que ajudaram Portugal a transpor o portal do tempo de que Hélia Correia fala.
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As fotografias foram feitas no dia 25 de Abril em Lisboa
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