terça-feira, janeiro 14, 2014

A vida in heaven


Bom. No post abaixo já cumpri o meu dever de boa concidadã do CR7. A sério que fiquei contente e, coração mole como sou, até me emocionei ao ver o campeão todo choroso, agarrado ao filho, e a mãe tão feliz que estava, e a namorada também toda enlevada. Derreto-me com cenas destas.

Adiante que isso é a seguir. Agora vou dar largas à minha veia bucólica: vou contar-vos sobre o fim de semana passado.

*


Ave Mundi




Quando chegámos estava um clima britânico: um frio discreto, uma névoa prateada, uma quase chuva.

Em dias assim, mal se entra em casa, sente-se um frio desumano, quase húmido. Depois, à medida que as horas passam, a casa vai-se chegando a nós, mais morna, mais acolhedora. O aquecimento começa a produzir efeito, a nossa presença torna as grossas paredes menos austeras, a luz acende-se, o ambiente aconchega-nos. Tenho uma manta nova, lãzinha fina de xadrez de um lado, pêlo branco macio de outro. Grande, quentinha, muito leve. 

No entanto, pouco depois de chegar, não é ao regaço da casa que eu me acolho, isso ficará para depois. Vou percorrer os meus caminhos. Vejo tudo com atenção.

Se junto a uma vereda algum bocado de terra está revolvido, dou logo por ele. Algum pequeno animal por ali andou a escavar.

Ou algum ramo partido, deu-lhe o vento ou foi a humidade que o cansou.

Ou o manto verdejante que cobre a terra e que dias antes ainda apenas mal despontava. Debruço-me, encanto-me. Fui afastar as ervas que cercavam o pequeno rebento de pinheiro e piquei-me, eram urtigas aquelas ervas. Fotografo outras, tão perfeitas, quase parecem flores, que milagre da natureza.

Um bocado de tronco que é o que apenas resta duma árvore que morreu agora está coberto de musgo, tão macio, tão bonito.

Num outro bocado de tronco, desta vez do meu grande pinheiro que o ano passado soçobrou à ventania agora despontam pequenas asas brancas, macias, rendilhadas. Será talvez uma espécie de cogumelos, não sei. O que sei é que é muito bonito, uma perfeição alada. 

O chão está molhado, a humidade é muita. Pelos campos vou vendo pequenas teias de névoa. Isto costuma ver-se cedo, quando as manhãs ainda conservam a frialdade da noite. Mas agora é de tarde e as pequenas teias estão por todo o lado.

Como sempre, vou pé ante pé, não quero perturbar a harmonia nem a alegria dos pássaros. Chilreiam de árvore em árvore, talvez conversem, talvez namorem, talvez cantem como se falassem. Fico imóvel debaixo de um dos mais altos pinheiros. Parece uma orquestra e, no entanto, não vejo um único pássaro. Ponho os óculos de sol porque são graduados mas nem assim. Devem estar aninhados no esconso dos ramos, não se vêem cá de baixo. Tenho que trazer binóculos para tentar descobri-los, invejosa da vida boa que levam.

Depois ouço um restolhar, pequenos passos numa corrida. Deve ser um coelho mas também não o vejo. Há aqui um mundo exuberante, porém oculto.

A barreira de pedra está negra, molhada. Gosto de passar a mão por lá. A superfície é macia, lisa, macia. As bagas da pyracantha sobressaem sobre o negro brilhante da rocha.

Então começa a chover, cada vez com mais força. As árvores ficam a escorrer, a terra fica ainda mais perfumada.

Nos sítios em que as árvores mais unem as copas e os caminhos mais se atapetam com folhagem morta, cheira a húmus, e o cheiro é orgânico, cheira a corpo de mulher. Gostava de me aninhar também eu num desvão de rocha, no regaço de um tronco, ficar ali a ouvir a chuva, entre os pequenos animais que habitam este território que cheira a inocência, a virgindade.

Mas como explicaria depois o facto de chegar a casa toda molhada? Como explicar que não sou doida? Que sou apenas um pequeno animal daquele reino abençoado?

Quando nos viemos embora, o chão da casa estava em grande parte húmido. Geralmente entramos pela cozinha e o entra e sai em dias de grandes chuvadas e os sapatos que sempre vêm molhados fazem com que a tijoleira acabe quase molhada apesar dos tapetes. Na sala, com as portadas que volta e meia se abrem para se entrar por aí, a mesma coisa. As casas de banho, por causa dos banhos, meio molhadas ficam. E pingo que caia depois já não seca, tanta a humidade. Apanho umas laranjas para trazer. Ainda se tornariam mais doces mas já se comem e prefiro comer destas, puras, cheias de sumo limpo às de supermercado que não sabem a nada quando comparadas com as minhas.

Trago também uns ramos de alecrim. Prenunciando a primavera, já está todo florido.

Ponho nos assados, ponho na caldeirada. Fica muito bom, dá um sabor a paraíso aos meus cozinhados.

Ao fechar o portão reparo num aranhiço verde como o ferro sobre o qual está.

(Não sei se é aranhiço, não faço ideia. Parece.)

Um bichinho pequeno, verde, mal se dá por ele.

Vou ao carro buscar a máquina fotográfica, o meu marido impacienta-se, já é quase noite, o tempo está mau, muito ainda que fazer antes de chegarmos à cidade.

Mas quero depois confirmar que, apesar de nos termos vindo embora, alguém ali ficou a guardar a casa. 

Aqui está, para que testemunhem: o meu fiel guardião. Verde, lindo.




(... Eu sei... o portão está a precisar de uma pintura, eu sei...)


***

A música lá em cima é Ave Mundi de Rodrigo Leão que já antes aqui entrou e que, certamente, muitas mais vezes ainda voltará a entrar: gosto muito.

***

Relembro: Se querem ver as fotografias da gala de entrega do Ballon d'Or 2013 e um vídeo com fantásticos golos do CR7 é só descerem até ao post seguinte.


***

Permito-me ainda convidar-vos a conhecerem um lindo poeminha de amor e a ouvirem Cora Coralina a dizer como mandou a gramática dos filhos às malvas porque senão não conseguiria escrever poesia. É no Ginjal, claro, onde também mostro uma declaração de amor a uma certa ursinha.

***

E, assim sendo, por aqui me fico por agora. 
Desejo-vos, meus Caros Leitores uma terça feira mesmo boa.


14 comentários:

  1. Vitor Gomes Freirejaneiro 14, 2014


    Belo e fino post !
    Melhores Cumprimentos.

    Vitor Gomes Freire

    ResponderEliminar
  2. dicas para se comer menos - https://www.youtube.com/watch?v=2IQiK2pYNWQ



    se bem que, para Portugal,com a continuação destas políticas, não vai ser preciso

    ResponderEliminar
  3. No fundo, o reconhecimento, implícito, de que, mesmo gostando de viver na cidade (o que nada tem a ver com o ter de lá trabalhar – eu trabalho e trabalhei toda a vida em cidades e nunca gostei de nelas viver, embora assim tivesse de ser), uma ida até ao campo, naquele sossego, é das coisas mais reconfortantes que temos. Por mim, mais dia menos dia é onde acabarei de viver, o que já esteve mais longe, hoje cada vez mais perto. É curioso, mas nunca vivi tranquilo numa cidade. Ao fim de algum tempo, mesmo as melhores e mais fascinantes, acabaram por me cansar. Ás vezes lembro-me d´”A Cidade as Serras”. Sempre me identifiquei mais com o Zé Fernandes, embora a minha vida tenha sido mais parecida com a do Jacinto, excluíndo as extravagâncias tecnológicas de era adepto (no meu, nosso, caso, a TV é velha, nunca comprarei aqueles ecrâs modernos, largos, não temos tlm modernos, nada disso, o simples e básico. Prefiro sim investir no conteúdo da casa. Isso já é outra história. E em muitos e bons livros. E chega-nos e sobra!). Há muitos sítios relativamente perto de Lisboa onde ainda se pode conseguir a distância da cidade, pelo menos ao fim de semana (perto de Sintra, perto de Mafra, na Arrábida, perto de Sesimbra, em Cascais, enfim, por aí).
    P.Rufino

    ResponderEliminar
  4. Cara UJM:

    Gostei e escrevi assim o meu post de hoje, no meu blog, que aqui partilho em versão provavelmente não definitiva. Muito obrigado e saudações, J. Rodrigues Dias.

    .............................

    Manto de gotículas
    (como se fosse a primeira vez)

    Manto de gotículas como beijos
    dos caminhos semeados passo a passo de amor
    quando indo da cidade neles nos perdemos
    em cada recanto inesperado que vemos
    em palavras muito subtis das coisas
    em vozes apenas sussurradas
    de uma poesia infinita
    que nos caminhos nascesse
    de poetas sem fim
    e que logo crescesse,

    caminhos encantados
    como corpos húmidos sempre tacteados
    mas como se outros sempre em redescoberta
    no fulgor do sangue
    virgem
    esparramado
    de uma eterna paixão,

    doce e pura
    como se fosse dos caminhos
    a primeira vez…

    Évora, 2014-01-14

    José Rodrigues Dias

    ResponderEliminar
  5. Olá,
    Antevejo que (salvaguardando as devidas distâncias e diferenças) me espera para a semana que vem.

    ResponderEliminar
  6. Viva UJM
    Belo texto este seu, que me fez recordar um tempo em que eu tive uma segunda casa cá, e passava pela mesma experiência de ver tudo antes de a gozar de facto. Ninguém me entendia...mas eu sentia o mesmo que a UJM.
    Goze-a bem. É o paraíso mais real que podemos ter!

    ResponderEliminar
  7. Cara UJM,
    Há realmente momentos que nos deixam fascinados pela harmonia da natureza, pelo seu lacrimejo estético que tão bem documenta nas imagens do seu “heaven”. Gosto muito da face do seu blogue, para o qual sempre selecciona belas imagens e deliciosas cambiantes. Tudo rima com a sua espontaneidade e com o fascínio do que exprime e retrata.

    Reflecte-se no seu post, para além da beleza quase selvagem do seu jardim natural, um reavivar da alma local, do renascimento da vida e da verdura líquida e oxigenada da ambiência circundante. Tudo é vida e os “penates” devem delirar de prazer. Direi que até o verde aranhiço do portão encontrou repouso num mundo paradisíaco e tranquilo.

    Mil felicidades e saúde aos molhos

    ResponderEliminar
  8. Olá Caro Vítor Gomes Freire,

    Por vezes as palavras saem sem eu pensar nelas, buscam o seu caminho sozinhas. Se pudessem, as minhas palavras, por vezes, andavam sozinhas, ao meu lado ou voando à minha volta. A sério que às vezes penso isso.

    Muito obrigada.

    Desejo-lhe um bom dia!

    ResponderEliminar
  9. Olá Anónimo,

    Mas uma dica sempre útil, por uma questão de saúde, de beleza ou de economia.

    Obrigada!

    ResponderEliminar
  10. Olá P. Rufino,

    Sou pessoa de cidade, da beira do rio ou das livrarias. Mas sou também do campo, do campo mais campo, rústico, das árvores, do mato, das pedras. De estar à lareira, de me dedicar à culinária, de varrer.

    É raro o dia, quando ando no trânsito ou quando as maçadas profissionais se intensificam, em que não pense como estaria tão bem, tão sossegada, lá in heaven.

    Também não quero saber de gadgets, de vaidades. Mas livros e coisas para a casa, isso nunca é demais. É como arranjar o ninho pois é no ninho que estou bem. E adoro ter os meus junto a mim, dar-lhes de comer, sentir que estão confortáveis e confortados.

    Acho que isto é típico dos 'caranguejos'....



    ResponderEliminar
  11. Olá José Rodrigues Dias,

    Já agradeci lá nos seus Traçados. Muito obrigada. Revejo-me no amor das palavras e nas palavras que tão bem mostram sentir o amor da terra e dos caminhos que nos levam pelo meio dos campos, ao longo da vida.

    Agradeço de novo!

    ResponderEliminar
  12. Olá jrd,

    Sabe do que falo, não é? Um frio quando se abre a porta... E tudo húmido quando chove... Mas que interessa isso? Acende-se a lareira ou a salamandra, liga-se o aquecimento, e logo tudo começa a ficar bom. E um candeeiro de pé ao lado do sofá e uma mantinha macia em cima das pernas e um livro e um chá. Tão bom. mal me venho embora já estou com saudades, quer crer?

    Um abraço, jrd!

    ResponderEliminar
  13. Olá Helena,

    É isso mesmo. E sabe que eu tenho sempre esta coisa de tudo ser efémero, de ter que gostar e apreciar muito por não saber quanto tempo mais vou aproveitar.

    Os meus pais têm uma segunda casa, um andar na cidade. A primeira casa é uma moradia e a minha mãe sempre dizia que era uma trabalheira, que gostava de morar num andar. Então, já eu era casada compraram um andar. A minha mãe adorava estar lá. Decorou-o muito bem, era mesmo a casa dos sonhos dela, um andar pequeno, confortável, sem jardins e quintal e essas coisas que dão trabalho e que fazem com que a casa se suje mais.

    Agora, desde que o meu pai teve o AVC, já não podem lá ir. A minha mãe tem um desgosto que não queira saber. A última vez que lá estiveram, não sabiam que isto ia acontecer.

    É um prazer tão grande para mim estar na minha casa no campo. Acho que lá sou mais eu. Não preciso de muito para me sentir bem mas sinto-me mil vezes melhor no campo, sossegada, do que em acontecimentos sociais com gente que não me diz nada, almoços de trabalho, coisas chatas dessas.

    Agora só posso gozar deste prazer em doses homeopáticas e, por isso, estou sempre desejando que cheguem as férias ou que, ao fim de semana, lá consiga ir.

    Sei que sou uma sortuda e dou mil vezes graças por isso.

    Um abraço, Helena!

    ResponderEliminar
  14. Olá dbo,

    Sabe que lá 'in heaven' não temos ninguém a fazer-nos nada, nem a tratar do mato nem da casa. Somos nós que, como podemos, tratamos de tudo. Claro que não temos pretensão a ter o campo domesticado e isso facilita. Mas gostamos de respeitar a natureza. No entanto, se não tomamos conta dela, ela toma conta de nós. Tem que se cortar o mato, que aparar os arbustos espontâneos, que podar árvores. E apanhar as folhas caídas e tudo isso. Mas... e o que eu gosto de fazer isso? Gosto mesmo. Por isso, não é um trabalho esforçado, é um prazer. E, sendo um prazer, é também com prazer que falo de tudo isto.

    Agradeço as suas palavras sempre tão gentis.

    Saúde e felicidade para si, dbo!

    ResponderEliminar