domingo, setembro 15, 2013

O suave correr do tempo nestes dias de fim de verão aqui, in heaven.


No post abaixo falo de um lugar clandestino habitado por silhuetas para onde gosto de me esgueirar para dançar um tango e ouvir palavras de amor (tudo se passa apenas em sonhos, mas paciência).

Mas aqui, agora, o tom é outro.

****

Que soe a música do Romance


(Mozart)



O sol em Setembro é muito doce e eu aproveito o seu calor brando e a sua luz suave, andando pelos caminhos em que por vezes as árvores fazem uma sombra rendilhada, sentindo sobre a minha pele a macieza de quem se prepara para se despedir.

Estou in heaven. Agora que estou a escrever, muito tarde, noite avançada, a temperatura baixou bastante. Há instantes, abri a porta que dá para a rua e estive aqui fora, gosto de sentir este fresco. As árvores tapam a lua. Poderia aventurar-me mais, às escuras, para a poder ver, nua e branca como eu. Mas tenho algum receio. E está frio.




Embora sozinha, a estas horas tardias, não me aventure para muito longe da casa, gosto de estar na rua de noite, ouvindo os sons vagabundos que não se percebem de onde vêm. Bichos? O vento? Recordações? 

Mas se agora está frio, de dia esteve um sol quente, bom. A hora que prefiro é o cair da tarde. Os cheiros intensificam-se, os pássaros aquietam-se, as sombras ficam elegantes.

Estive deitada no banco de pedra que está ao pé do grande pinheiro que não pára de crescer. Se tivesse o corpo coberto talvez a caruma que tapava o banco fosse uma cama macia. Assim, para não me picar, retirei-a, deitei-me directamente na pedra. Gosto de olhar o céu através da copa das árvores.




Ali estive, vendo os desenhos que as sombras desenhavam no muro. Lembrei-me de Barceló que, na entrevista ao Expresso, diz que anda a usar apenas o branco nas suas pinturas. Aqui havia também o cinza desenhando arabescos no muro que também já não é branco, o tempo vem enriquecendo a sua cor.


Do banco onde me encontrava ia sondando com o olhar os caminhos que, em tempos, imaginei e que agora vejo como os via dentro dos meus sonhos. 

Labirintos abertos por onde é bom andar, por onde é bom ir vendo como o tempo os vai mudando. 

Daqui a nada será inverno, o verde do musgo invadirá o chão, os muros, nascerão cogumelos imprevistos, as árvores escorrerão da frialdade da noite, os pássaros estarão escondidos.


Mas agora ainda nem sequer é Outono, agora é apenas o Verão que começa a despedir-se.


E depois, aos poucos, a luz foi ficando mais dourada e eu, encantada, desloco-me como uma gata procurando os melhores recantos, aqueles em que a luz se detém mais demorada, mais dourada.




Pode ser entre a renda de uma teia, a luz quase prateada, aprisionada entre um esboço de folhagem: e eu ali fico, maravilhada. Nada se compara à beleza das coisas simples.




Na mesma árvore coexistem as folhas ainda verdes e as que já estão folheadas a ouro. Tanta a fragilidade destas (de todas, aliás). Sei que estão assim douradas porque o seu fim se aproxima. Mas para que vou estar a pensar nisso? Agora ainda aqui estão e isso é o que interessa, que alguém as olhe e as ache belas (porque a beleza só sabe bem se virmos reflectido no olhar dos outros o encantamento que a beleza desperta).




Gosto de fotografar o beiral ao longo do ano. O céu vai mudando, a folhagem também. Na Primavera a folhagem está viçosa, o céu incerto; no Verão está assim, de um verde quente, quase dourado, o céu despreocupadamente azul;  não tarda, no Outono, vai estar cor da terra à qual as folhas estão quase a voltar, e o céu começará a toldar-se. No Inverno os ramos estarão nus, prontos para acolherem os rebentos que virão para renovar a vida e o céu estará branco ou cinzento, carregado de água.

E eu, cá em baixo, olhando o beiral e o plátano e o céu e vendo o tempo que passa.




Se estou na cozinha a esta hora do sol que se põe, perco-me a olhar cá para fora mas hoje olhei a janela da cozinha pelo lado de fora e quase me vi lá dentro, parece que eu já estou nas coisas deste lugar. Gosto tanto da minha cozinha, tão luminosa, tão boa para se estar lá a preparar as refeições. Há uma chaminé larga sobre o fogão e, quando estamos cá fora, se há comida ao lume, sentimos o cheirinho bom que sai e se espalha no ar, misturando-se com o perfume da figueira, dos cedros, dos pinheiros.




Continuo a andar pelos caminhos, por entre as árvores. Podia ser uma gata, eu. Às vezes passa aqui à porta uma gata sinuosa (ou um gato, não sei). Olha cá para dentro, curiosa, e depois segue. Tolera, portanto, a nossa presença. Ou podia ser um pássaro. Há aqui muitos pássaros. Sinto-os mais do que os vejo. Já pensei: vou arranjar uns pratinhos com sementes e vou espalhá-los por aí, em cima dos muros ou dos bancos, para ver se os atraio, quero vê-los de perto, quero que se habituem a andar ao meu lado, quero que me ensinem a voar.

Espreito por entre o alecrim, a folhagem da azinheira e do pinheiro, que dourado que está tudo, que doçura que há no ar. Vejo como a luz dourada ilumina também as outras mulheres que aqui habitam, as de Rivera, as de Szenes, outras.




Até que o sol quase se põe, começa a esfriar, terei que vestir qualquer coisa ou que me recolher. E é já de dentro de casa, à porta, que espreito o pôr de sol, o céu que fica encarnado, as árvores que adquirem um ar secreto.




Depois ficou de noite. Tão silenciosa, tão boa. A casa em sossego, os meus livros aqui desarrumados ao meu lado, vocês aí desse lado velando por mim. Lembrei-me agora de ir espreitar as estatísticas para poder escrever isto: só nesta última hora (entre a 1:19 h e as 2:19 h) estiveram aqui, junto a mim, trinta e seis pessoas, grande parte de Portugal mas doze do Brasil, duas dos Estados Unidos, duas da Venezuela e uma da Alemanha. Mas não são números. São anjos bons, são amigos, são luzes brilhando no horizonte? Não sei. Mas sei que gosto muito de estar a escrever e saber que vocês estão aí.


Amanhã irei de novo lá para fora, colher raios de sol, apanhar figos, pôr outros a secar, ver se ainda há amoras, apanhar uvas, comê-las logo de seguida, estão doces como mel, percorrer caminhos à procura de sombra que o sol, de dia, está quente, tentar descobrir pássaros no meio das ramagens, depois deitar-me a ler, ao sol, sentindo a luz a aquecer docemente a minha pele.

Mais tarde, à noite, já olhando o rio, aqui virei de novo para vos deixar as minhas palavras. Bem hajam vocês, por gostarem de vir fazer-me companhia. Obrigada mesmo.

*

Um rasto de água arde sobre o corpo,
cresce mansamente dentro dos olhos,
salta-me húmido pelos lábios.
Pequeno fruto trazido pela aurora,
um jogo de volúpias azuis ao anoitecer.

Enlouqueço nas trevas, ébrio do teu cheiro,
quando a ausência se desenha
e sinto o estrangulado desejo da rosa,
a fria e frágil flor em que te desfolhas.
Luz, labareda, sangue e fogo.

Um sismo desliza-te pelo ondular do ventre,
se eu chego na lonjura do tempo,
se te cavalgo no cerrado campo do corpo.
Uma silhueta vem na sombra do silêncio:
toca-te os olhos, desce sobre o mar


['433. Um rasto de água ardia sobre o corpo' de Homo Viator]


«««»»»

Permito-me relembrar o Hernando's Hideaway em duas versões dançantes já aqui abaixo.

E, por agora, nada mais - apenas quero ainda desejar-vos um domingo cheio de graça.

5 comentários:

  1. Joaquim Castilhosetembro 15, 2013

    Olá UJM!

    Gostei....e muito!

    É sempre bom lê-la mas este texto com estas fotos a acompanhá-lo é mesmo um regalo!

    Mais uma vez obrigado e um Bom Domingo!

    Um abraço

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  2. O seu texto é maravilhoso. Essa é mesmo a sua casa? Para quem vive num apartamento na cidade, isso cria-nos uma "inveja" (...)
    Bjs

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  3. A "sagração" de Setembro numa composição admirável.
    Abraço

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  4. Gosto do que escreve e de como escreve. Transmite-nos sensações, momentos.
    E em breve chegará, de mansinho, uma das minhas preferidas estações do ano, o Outono, a outra é a Primavera.
    Por aqui vivem-se momentos serenos, embora com algum vento.
    Boa semana!
    P.Rufino

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  5. Olá UJM,
    Lindo! Lindo este cair de tarde de Setembro, descrito por si com tanta doçura e beleza! Á medida que a lemos sentimo-nos cada vez mais a seu lado, a percorrer esses caminhos misteriosos tal as sensações que nos consegue transmitir, os cheiros, a frescura do fim de tarde, a luminosidade frouxa a atravessar as árvores e as folhas douradas a despedirem-se do Verão, etc. etc. Direi também que é a sagração da vida e das coisas simples da natureza!
    Nós é que somos uns privilegiados por a termos a Si, qual anjo da guarda a vir até nós, todos os dias, mesmo sem o merecermos!
    Obrigada, UJM por nos ensinar a observar a natureza e fazer acreditar que a vida vale mesmo a pena ser vivida, que mais não seja, para desfrutarmos destas sensações maravilhosas que a natureza nos oferece todos os dias.
    Um beijinho e bem haja.

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