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Não sabemos de nada. Como podem alguns fazer juízos precipitados quando é tão difícil saber alguma coisa?
De que somos feitos? De que incógnita matéria? De que estranheza? De que ténues fios que tão facilmente se quebram?
Podemos ser normais, felizes, sorridentes, ter uma vida perfeita e depois, sem que se perceba bem porquê, tudo se começa a desfazer, tudo. Talvez ninguém dê por nada, talvez nem se lembrem de nós, se calhar a erosão da nossa felicidade começa sem que ninguém o perceba.
Talvez nem nós percebamos que o caminho que estamos a percorrer é o que nos conduz ao abismo. Não sei.
Talvez, por vezes, nos olhemos ao espelho ou olhemos o que fomos, sorrisos presos dentro de fotografias emolduradas, nós que já não somos o que éramos naquele outro tempo. Talvez pensemos: onde está a pessoa que um dia fui? Mas pode também acontecer que não pensemos nada. Pode acontecer que por dentro de nós haja apenas um imenso vazio.
Uma mulher sorridente, olhar franco, o marido reservado, a filha. Passeando nas ruas da cidade, bem sucedidos, exemplares.
Ou não?
É tão difícil perceber. Será uma parte do cérebro que escurece? A sombra que invade as ruas esgueirando-se, também, para dentro de nós, uma parte de nós a viver na sombra, uma sombra espessa, silenciosa, devorando a nossa felicidade. Será?
Quem os conhecia bem não percebe, pois, o que possa ter acontecido. Lembram-se agora que nos últimos tempos a felicidade já não se passeava a três pela rua mas quem dá pela falta de três pessoas numa cidade?
Os mais velhos olham-se uns aos outros tentando encontrar, algures no passado, uma ponte que leve ao local onde se esconde o segredo. Mas o passado não tem respostas. Só estranheza, uma estranheza fria, misturada com medo.
A menina era um caso à parte, exemplar.
Estava um ano avançada nos estudos em relação à sua idade. Exímia em música, em dança. Esguia, quase a fazer treze anos.
Estava um ano avançada nos estudos em relação à sua idade. Exímia em música, em dança. Esguia, quase a fazer treze anos.
A mulher, mãe da menina, advogada, 44 anos, filha única, bonita, pertence a uma abastada família, o pai também advogado, a mãe professora universitária.
Toda a gente conhece a família, têm pertences, propriedades, têm história. O pai foi cônsul de França. Depois passou o cargo à filha. Tudo sem uma mácula, tudo muito bem. Numa sociedade católica, tradicional, está é o exemplo de uma família típica, com raízes sólidas na comunidade.
Ligada aos meios mais progressistas, casada com um jornalista, tinha uma vida profissional intensa, bem sucedida. As imagens mostram-na segura e sorridente. Talvez não tivessem conseguido ter filhos. Não se sabe agora se houve um processo traumático de sucessivas tentativas mal sucedidas. Aquilo de que as pessoas se lembram é que há cerca de doze anos foram buscar esta menina, então apenas com meses, à China, uma menina que adoptaram.
Depois deram entrevistas, disso as pessoas lembram-se. A adopção tinha corrido muito bem porque ambos queriam mesmo uma filha, porque a rodearam de afecto. Sorriam, felizes com a sua menina tão afectuosa, tão talentosa, tão inteligente.
Mas as sombras talvez estivessem já a fazer o seu caminho. Não sabemos. Talvez só uma pessoa o saiba, se é que o sabe. Ela.
O que também se sabe é que há algum tempo a sua vida começou a mudar. Fechou o escritório de advocacia, deu baixa da carteira profissional. Começou a representar interesses comerciais em Marrocos, a viajar muito para lá. Dizem que era vista frequentemente na companhia de um marroquino, seu amigo.
Depois, aconteceu uma coisa que deixou a comunidade em choque. Um dia, ao chegar a casa, o velho advogado encontrou a sua mulher morta. Uma morte súbita, inesperada, o senhor devastado. Ela também. Todos.
Mas a desgraça quando começa a rondar, nem sempre se contenta assim tão facilmente. Uns meses depois foi a vez do pai também aparecer morto. Também na sua casa, também sem que nada o fizesse esperar. No espaço de poucos meses, a bela advogada perdeu os pais, ambos de morte súbita.
É sabido: acontece muitas vezes que, quando a pressão é muita, os relacionamentos não resistem. Foi o que aconteceu. Depois da morte dos pais, a que antes era uma sorridente mulher e o jornalista separaram-se.
De repente quase sozinha, sem pais, sem marido, era apenas ela e a filha. Dizem que estaria a receber tratamento psicológico.
As sombras não são boas companheiras, parece que sugam a vida. Aos poucos, a vida, destituída de luz, vai procurando mais e mais sombra, a matéria vai ficando rarefeita, apenas o silêncio já parece suportável. E depois já não são apenas sombras, já é um negrume que avança como irreversível gangrena.
No domingo passado foi a vez da menina aparecer morta. Foi encontrada num campo perto da casa dos avós, umas cordas cor de laranja por perto.
Por essa altura, já a mãe e o pai tinham participado à polícia o seu desaparecimento.
Na tarde de sábado, teria ficado em casa a fazer os trabalhos escolares. A mãe teria ido fazer umas compras, teria ido depois a casa da família, àquela em que os pais apareceram mortos. Quando regressou a casa não encontrou a menina. Pensou que estivesse com o pai, era normal, ele mora a cem metros, davam-se bem, dizem que adorava a filha, que estavam juntos sempre que podiam. Mas não estava. Esperaram. Depois participaram o desaparecimento.
Quando o corpo apareceu, os pais foram ouvidos, a polícia queria perceber o que poderia ter motivado o hediondo crime, ver se detectava algumas pistas.
Mas as contradições da mãe foram muitas. As câmaras de vigilância mostram que a menina, afinal, na tarde deste sábado, saíu no carro com a mãe. Em casa dos avós, onde a mãe diz ter estado, a polícia encontrou restos de cordas cor de laranja.
Dos primeiros exames, a polícia concluíu que a menina não morreu ali onde a encontraram, que o crime aconteceu num noutro local, e que foi, depois, levada para o campo. Chegaram agora os resultados que se esperavam: foi sedada, asfixiada, amarrada e, depois, transportada.
Depois da menina ter sido cremada, a polícia prendeu a mãe, Rosario Porto Ortega. É a principal suspeita da morte da filha, Asunta Basterra. Diz-se agora que Asunta era a principal beneficiária da herança da fortuna dos avós, o advogado Francisco Porto Mella e a professora María del Socorro Ortega Romero, uma das famílias mais estimadas de Santiago de Compostela. O pai, o jornalista, Alfonso Basterra, também foi constituído arguido mas, ao que parece, por razões processuais.
A Galiza, aqui tão perto, está em choque. Ninguém consegue compreender uma coisa destas. Dizem que tal não é possível, que Charo não poderia ter feito uma coisa assim - mas já não sabem de que coisa estão a falar, não conseguem sequer formular as medonhas ideias que lhes ocorrem. Atordoados, olham para trás, tentam encontrar, algures no passado, algum indício. Mas não encontram.
Estranha é, pois, a matéria de que somos feitos.
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A música é Perdóname de Pablo Alboran com Carminho
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A música é Perdóname de Pablo Alboran com Carminho
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma quinta feira muito boa.
E que as sombras nunca invadam as vossas casas, as vossas almas.
têm-lhe gabado os textos que aqui escreve, este para mim está soberbo.Passo por aqui para ver se aprendo a escrever assim-)))
ResponderEliminarJá vi que colocou uma pesquisa para a Wikipedia.Isto vai lá-)))
ResponderEliminarcaso tenha algum manuscrito aí na gaveta e pensa que é muito caro publica-lo, como dizia o Mário Soares , olhe que não - http://www.bubok.pt/
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