segunda-feira, junho 24, 2013

Onde vos conto do meu 'encantamento do mundo', e do meu 'amor à natureza, aos animais, da compaixão social, e da noção dos perigos sociais que resultam da prosperidade' (palavras de Pedro Mexia no Expresso na sua crónica 'Francisco'), para concluir que, se calhar, tenho alma de franciscana. Tudo isto em noite de S. João, de lua muito cheia, de fogo de artifício sobre o Tejo, e depois de um dia muito quente in heaven em que pintei um pequeno quadrinho e em que descansei ao pé de uma das mulheres de Magritte, perto dos cavalos azuis e dos dançarinos em volta


No post abaixo, mostro:

  • como alguns patos descerebrados embarcaram num navio desconchavado sem perceberem onde se estavam a meter (digo eu que não perceberam mas, se calhar, perceberam mesmo: há gente que tem um prazerzinho perverso em exercitar práticas sádicas) 

  • e como, agora, os condutores do dito navio - vendo que, depois de esbarrar em tudo e mais alguma coisa, está a meter água à força toda, afundando-se rapidamente - estão ao murro uns aos outros, acusando-se mutuamente da autoria da coisa, 

  • e como, curiosamente a suposta pregadora-mor desta ideologia está a prometer exactamente o oposto aos seus eleitores... 


Seria de gargalhada se os alvos das práticas sádicas não fossemos nós, que - e falo por mim - não somos masoquistas.

Mas isso é mais abaixo. Aqui a conversa é outra.

/\

É dia de S. João e à meia-noite, sobre o rio, soltou-se a luz. Da minha janela vi, encantada como sempre vejo, mil estrelas, um céu iluminado que se reflecte no rio escuro. Uma festa.



Uma chuva de mil pontos dourados na minha janela


Um pouco afastada, do lado direito mas ainda sobre o rio, lá estava a bela lua branca, grande, também enfeitada por pequenos pontos de luz e por veios brancos irradiando de um ponto que parece o olhinho de uma laranja macia, feita de luz prateada.



A lua grande e branca já não in heaven mas sobre o rio que corre aqui sob o meu olhar sempre deslumbrado


Já não estou in heaven. Hoje, por lá, esteve um calor abrasador. O tempo lá é extremado, verificam-se sempre das temperaturas mais excessivas do país. Terra de tojo, pedras, figueiras, grandes calores, grandes frios, grandes vendavais (- um dia ainda vos vou contar uma coisa e perceberão porque a minha casa in heaven é como é). 

Percorri aqueles meus caminhos perfumados tendo quase apenas o sol a cobrir-me a pele. Os pássaros e os coelhos já não estranham, sabem que gosto de sentir a luz como uma seda macia sobre o meu corpo encalorado.



Uma das mulheres de Picasso in heaven, desnudada, prendendo o cabelo -
a aprontar-se para enfrentar melhor estes dias de calor


De manhã, mal me levantei, fui abrir as portadas da sala. O chão estava todo molhado. Pensei: afinal os pequenos seres lunares, ou os cavalos azuis ou os bailarinos sempre cá estiveram e devem ter estado a brincar com água. Ou então algum fez chichi no chão.



Cavalos azuis, dançarinos em roda -
e o banco onde me sento a vê-los desfrutar a sombra fresca da grande figueira
(Franz Marc e Matisse in heaven)


Mas não. O meu marido contou-me depois que, quando se levantou (ele, claro está, como qualquer pessoa normal, levanta-se a horas decentes), viu o chão da sala cheio de formigas e que, então, para as espantar, deitou água no chão.

Aquela sala, aliás, é um verdadeiro recinto zoológico: formigas, bichos de conta, aranhas, aranhiços, centopeias. Quando lá chegamos há de tudo. Apanham-se sozinhos em casa e chamam os amigos, grandes orgias, reproduzem-se. Depois, chegamos nós e estragamos-lhes a festa. 

Tal como vos contei na madrugada de sábado para domingo, estava com vontade de pintar. Assim fiz este domingo de manhã. Uma tela de pequenas dimensões. É uma liberdade tão grande, coisa de criança mesmo, usar pincéis, tintas, pintar sem propósito, apenas o prazer de ver aparecer a cor numa tela em branco. Não tenho qualquer pretensão, nem quero ter aulas ou ler livros sobre técnicas de desenho ou pintura, não quero que nada condicione o gosto infantil que tenho. Apenas pintar, é o que quero. Esforço-me por não me deter em detalhes, não quero fazer coisas perfeitinhas, evito reproduzir alguma coisa concreta. Não: quero apenas deixar a mão livre, e que a mente observe a mão, sabendo que não lhe deve dar quaisquer instruções.

No entanto, como estava com vontade de pintar uma coisa em tons claros, tenho que dizer que não fui espontânea, foi mesmo um esforço, a todo o momento olhava para as tintas quentes que são as cores que correm dentro de mim. Mas forcei-me. Foi, pois, uma coisa um bocado contra natura. Mas, ainda assim, um prazer. Fazer uma coisa sem objectivo, sem censura, sem ambição. Como uma criança a quem dão tintas e uma parede e total liberdade: faz o que quiseres.




Aqui está o meu pequeno quadrinho.

Aqui, neste recanto fresco, onde uma mulher de Magritte repousa,
repouso também eu muitas vezes.
Por cima desta mulher, que bem poderia estar a apanhar banhos de sol ou de lua,

 em letrinhas pequeninas, está o poema de Sophia


Há sempre um deus fantástico nas casa

em que eu vivo, e em volta dos meus passos 

eu sinto os grandes anjos cujas asas

contêm todos os ventos dos espaços









Sinto. Sinto mesmo que há um deus fantástico nas casas onde vivo, e que há grandes anjos em volta dos meus passos. E sinto um 'encantamento do mundo', espanto infantil perante coisas recém-criadas ou recém-descobertas.

Em itálico, estou a usar palavras de Pedro Mexia da sua crónica 'Francisco' no Actual do Expresso. E, se usar também estas outras, agora citando Chesterton, o amor à natureza, o amor aos animais, a compaixão social, a noção dos perigos sociais que resultam da prosperidade e mesmo da propriedade - fico a pensar que, na volta, o que sou mesmo é uma franciscana.


Talvez por isso, quando estou in heaven, sinta que aquele espaço é habitado por uma paz como nunca ouvi antes ou depois - talvez idêntica à que Pedro Mexia sentiu quando esteve em Assis, nas colinas da Úmbria, nos lugares onde Francisco viveu.



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Depois disto, talvez não seja sequer delicado da minha parte convidar-vos a descer até ao post seguinte onde falo de assuntos tão desagradáveis. Farão como entenderem.

Mas convido-vos, isso sim, a virem comigo até ao meu Ginjal onde a minha boca é uma amora madura que o navegador solitário não conseguiu comer. Fui pelas palavras de Abel Neves. A música que me acompanha  por aquelas bandas é especial: Shostakovich pelo Simón Bolívar String Quartet.


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E nada mais. Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela semana a começar já por esta segunda feira.

3 comentários:

  1. Até as sardinhas são comidas
    pela hora da morte
    no pão que nos querem tirar da boca

    neste país a olhar a lua

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  2. Ainda bem que eram formigas e não ratos.
    Bom, os ratos estão na primeira parte do poste e alguns preparam-se para abandonar o barco.

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  3. Em tudo o que nos transmite do seu in heaven só consigo imaginar beleza, uma grande tranquilidade, muita paz e encantamento! O seu "quadrinho" quais barcos à vela!? Qual paisagem lunar!? Quem sabe se não foram os pequenos seres lunares que a visitaram e a inspiraram para pintar assim logo pela manhã, com tanta convicção, paixão e criatividade!?
    Gostei muito e obrigada pela partilha.
    Um beijinho

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