Gosto muito de ler José Tolentino de Mendonça. Conhecia-o da sua poesia e só agora que ele tem uma crónica semanal no Expresso, com o sugestivo nome que coisa são as nuvens, é que começo a conhecer a forma límpida como pensa.
A crónica deste sábado é muito bonita (são sempre muito bonitas).
[Penitencio-me sempre que, ao querer exprimir o quanto gosto de um texto ou poema, só me ocorre dizer que é bonito. Parece-me fraquinho, poucachinho. Mas, por mais que me esforce, é isso que me ocorre.
Deveria ser capaz de usar palavras mais rebuscadas ou mais técnicas - e, agora que escrevo isto, ocorre-me a palavra oxímoro que acho uma palavra enviesada porque quase se pode confundir com oxímero, que não tem nada a ver, ou, quem diz isso, diz que talvez fosse interessante dissecar melhor a coisa, retalhá-la, etiquetá-la. Mas tudo isso me parece artificial, parece que é estragar tudo.
Deveria ser capaz de usar palavras mais rebuscadas ou mais técnicas - e, agora que escrevo isto, ocorre-me a palavra oxímoro que acho uma palavra enviesada porque quase se pode confundir com oxímero, que não tem nada a ver, ou, quem diz isso, diz que talvez fosse interessante dissecar melhor a coisa, retalhá-la, etiquetá-la. Mas tudo isso me parece artificial, parece que é estragar tudo.
No outro dia, um colega meu contou-me que, estando a atravessar a China, deparou com campos e campos e campos cheios de chineses e chineses e chineses e andavam todos curvados a espetar flores de plástico na terra. Ficou admirado. Os chineses com quem ele ia explicaram, então, com o ar mais natural e emproado do mundo, que, como o mau tempo tinha devastado as colheitas, para a terra ficar mais bonita estavam a enchê-la de flores de plástico. Para os chineses isso era normal.
Eu acho que olhar para um texto puro e belo e desatar a despejar palavreado por cima é a mesma coisa que espetar flores de plástico numa terra lavada pela natureza.
Mas, claro, admito que isto seja prova da minha rusticidade. Mas, rústica que sou, parece-me que dizer que uma coisa é bonita é uma boa coisa.]
Ler a bonita crónica do Padre José Tolentino de Mendonça confortou-me um pouco. Deu-lhe ele o título de O que é compreender.
Não vou transcrevê-la toda pois bom mesmo é lê-la toda, em papel, mas, para os que o não poderão fazê-lo, trago aqui um pouco:
(...) Talvez porque compreender seja outra coisa, peça de nós outro tempo, distinto daquele que estamos habituados a usar, nos exponha na nossa pobreza, encaminhe a nossa inteligência e o nosso coração por territórios porventura mais próximos do silêncio do que da palavra.
Penso muitas vezes naquela pintura de Goya que retrata um cão. Não sabemos exactamente o que é que o cão está ali a fazer: apenas vemos o seu focinho que sobressai, solitário, projectado num céu vazio. Dir-se-ia que ele fareja não já o mundo, mas a fronteira do mundo, à maneira de um detective metafísico.
Penso muitas vezes naquela pintura de Goya que retrata um cão. Não sabemos exactamente o que é que o cão está ali a fazer: apenas vemos o seu focinho que sobressai, solitário, projectado num céu vazio. Dir-se-ia que ele fareja não já o mundo, mas a fronteira do mundo, à maneira de um detective metafísico.
Quando penso nesse cão de Goya acontece-me associá-lo a uma frase da escritora Maria Gabriela Llansol sobre o texto (que não há-de ser diferente do trabalho de compreensão do mundo e de nós próprios). A frase diz:
Compreender um texto é como compreender um cão...
ou seja,
é aceitar que não se fala,
que não se compreende,
excepto pela companhia
Armámo-nos de instrumentos sofisticados de análise, estratificamos, decompomos, observamos através de lentes que reputamos infalíveis, e esquecemo-nos desta verdade básica: a compreensão passa, necessariamente, por um avizinhamento, por uma descoberta mútua que só a reciprocidade vai tecendo e aclarando.
A compreensão é um jogo jogado na consciência de que estamos perante o vivo, que se dá a ver na dobra, no intervalo, na interacção afectiva, na dedução incalculável daquilo que cada um traz escondido, sem nos deixarmos capturar pelas expectativas, sem impormos nada do que sabemos ou pretendemos saber.
Llansol tem razão: não compreendemos nada nem ninguém, excepto pela companhia.
(...)
O objectivo é poder alcançar aquela plena liberdade da definição que Montaigne propõe: 'Se me intimam a dizer porque o amava, sinto que só o posso exprimir respondendo: Porque era ele. Porque era eu'.
A companhia constrói-se, em seguida, na aceitação. Aceitar, aceitar - que exercício tão difícil. Aceitar a noite e o nada, o silêncio e a demora, aceitar a graça e a fraqueza, a diferenciação e o desapego.
De tudo fazer caminho.
Aceitar ver o todo apenas na parte, na visão incompleta, no gesto inacabado.
A ansiedade de dominar é um equívoco.
Aceitar ver o todo apenas na parte, na visão incompleta, no gesto inacabado.
A ansiedade de dominar é um equívoco.
(...)
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Dominar um texto? Dominar a compreensão de um texto? Dominar o conhecimento técnico da língua, de um estilo? ... Não. Não quero. Isso não me interessa. Dominar é menorizar o que se domina. Não se deve menorizar o que se respeita. Muito menos o que se ama.
Gostar de uma coisa (tal como gostar de uma pessoa) é deixá-la livre. Não tentar dominá-la, compreendê-la, possuí-la. É deixá-la ser. Apenas isso. É observá-la na nossa incompreensão. É gostar porque sim.
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"Não sei como vim ao mundo, nem o que é o mundo, nem o que sou eu; vivo numa ignorância terrível de tudo; não sei o que é o meu corpo, os meus sentidos, o que é a minha alma, nem esta parte de mim que pensa aquilo que eu digo (...)". Isto escreveu Pascal. Blaise Pascal.
[E isto escreveu Pedro Mexia, também no Expresso, ao falar sobre "O falecido Mattia Pascal" de Luigi Pirandello. E vem mesmo a propósito do que José Tolentino Mendonça disse em que coisa são as nuvens.]
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As pinturas e a gravura são de Goya. Francisco José de Goya y Lucientes (Fuendetodos, 30 de março de 1746 — Bordéus, 15 ou 16 de abril de 1828) foi um pintor e gravador espanhol.
Na transcrição dos excertos da crónica de José Tolentino de Mendonça tomei a liberdade de acrescentar algumas consoantes. Palavras com letras a menos parecem-me palavras que saíram à rua sem cuecas. Pode ser que um dia me habitue mas, por enquanto, ainda não estou aí.
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E com isto me vou que já são horas. Tenham, meus Caros Leitores, um domingo muito bom.
Que o excesso de calor seja compensado com belos banhos, frescas bebidas e outras coisas boas!
Achei piada às "palavras que saem à rua sem cuecas"!
ResponderEliminarTambém não me consigo habituar e continuo a escrever em "português"!
Um beijinho e bom domingo