No texto a seguir a este falo do discurso tomba-cravos de Cavaco e da preocupação e estranheza que tudo isto me está a causar mas interrompo para, a seguir, falar da praia, de conchas translúcidas como asas que pousam sobre as palavras fantásticas de Clarice Lispector.
Mas isso é a seguir. Agora, aqui, a conversa é outra. Volto ao virtuoso Dr. Sotto Aguiar.
Música, por favor
Achamos que somos diferentes dos outros. Nós, um poço de virtudes, os outros, um manancial de imperdoáveis defeitos. E, se reconhecemos em nós, alguma pequena imperfeição, já nos apressamos a encontrar justificações. A família que não nos apoiou, uma mãe castradora, um pai ausente, irmãos invejosos, chefes autoritários e castradores, colegas desleais. Os outros. Sempre os outros.
Esta falta de isenção e objectividade tem estado na origem de muitas injustiças e muitas irresponsáveis desculpabilizações.
É que os outros somos também nós.
|
Sotto Aguiar é um executivo de sucesso, é certo. Tem rendimentos elevados, tem poupanças sólidas, sabiamente divididas por várias instituições, dinheiro a salvo no estrangeiro, uma boa casa na cidade, outra no campo, outra na praia e tem, até, um apartamento em Inglaterra, onde os filhos vivem actualmente. No campo tem cavalos, na praia tem um barco.
No trabalho é reconhecido, elogiado, recompensado. Socialmente está perfeitamente integrado, quer através do desporto que pratica, o golfe, quer através dos grupos de reflexão de que faz parte, quer, ainda, da igreja de que é fiel seguidor. Aquilo de que publicamente se queixa é apenas da brutalidade de impostos que paga e da estupidez atávica deste governo. Sendo um liberal democrata, diz que nunca viu tanta estupidez em tão pouco tempo e defende, alto e bom som, o afastamento deste primeiro ministro. Tirando isso, a vida corre-lhe bem e sente-se um homem realizado.
E, no entanto.
E, no entanto, tanta perfeição também cansa. Sente falta de alguma irreverência, de alguma transgressão. Lembra-se de como era em miúdo, ele e os irmãos, ele e os amigos, as partidas, as noitadas. Nunca nada de transcendente mas, ainda assim, a ilusão de alguma aventura. Agora nada. Sempre chamado a mostrar como se faz, como se pensa, apresentado como um modelo, irrepreensível. Uma seca.
A mulher, também ela, saturada de tanta boa vida, saturada de andar sempre de boa cara, saturados uns do outro. Mal se falam mas acha que nem é por nada, talvez apenas por falta de terem o que dizer, e mal se tocam, o carinho e o afecto já fossilizados. Os contactos quase se resumem as questões funcionais, questões cuja decisão compete a ambos, ou, então, a uma tentativa de disfarçar perante terceiros ou, mesmo, perante os filhos, a falta de chama.
Contudo, continua a gostar dela. Não a trocaria por ninguém, ela é a mulher da sua vida, conhece-a como se conhece a si próprio, sabe o que ela pensa, sabe o que ela sente. Tem ideia que isto talvez seja apenas uma fase normal num casamento (uma fase que tarda em passar). Além do mais, não quereria desestabilizar a harmonia familiar, o ambiente em que quer que os filhos se desenvolvam (e isto apesar dos filhos já não viverem com eles e de já terem mais que idade para perceber situações deste tipo).
Mas porque também não é agradável esta convivência surda e apática, Sotto Aguiar prefere chegar tarde a casa para não ter que enfrentar aqueles fins de dia de pesado silêncio. Não tem paciência para ler, não tem paciência para tanto debate político na televisão, não tem paciência para nada. Ela também anda a chegar tarde, provavelmente pelas mesmas razões, mas apanha-a a olhá-lo de lado como se desconfiada, e ele sem paciência também já para isso.
Gostava de ter com quem conversar, quem se interessasse pelos seus problemas, quem lhe fizesse um mimo, quem se aconchegasse nele. Mas, infelizmente, isso não acontece. Por isso, as noites e o fim de semana em casa são, na verdade, uma seca, uma grande seca, um grande vazio.
Mas, como é sabido, a natureza é avessa ao vazio.
Desde que a Drª Sá Borges, a quem toda a gente trata por Drª Sá ou, simplemente, Sá, entrou, vinda de outra empresa - uma contratação de luxo - e já lá vão alguns anos, Sotto Aguiar sentiu qualquer coisa. Uma rivalidade, talvez. Ou uma embirração. Ou vontade de a apanhar em falso, talvez. Ou uma certa insegurança, é capaz de ser isso. Muito senhora de si, ela, muito intransigente. Muito eficiente. Mas tudo como que envolto numa simpatia que ele acha que é forçada. Mas talvez não seja forçada, talvez ela seja mesmo assim, uma sonsa que disfarça uma certa dose de malvadez. Ou não. Não sabe bem. O que sabe é que, em suma, é uma grande chata. Mas, ao mesmo tempo, contendo um permanente desafio em si mesma. Mulheres bonitas e inteligentes não deixam ninguém indiferente, desculpa-se ele perante si próprio.
Mas ela nunca facilitou. É frequente quase desautorizá-lo em público com os seus apartes, com as suas correcções – embora, com aquele ar de boa pessoa, disfarce as alfinetadas com um sorriso angélico, transbordante de inofensivo charme (e ele sabe que isso só evidencia que é bastante inteligente, na verdade uma adversária temível).
Anos de picardias disfarçadas de sã camaradagem. De vez em quando, contudo, a coisa estalava e os desentendimentos ficavam à vista. Não raramente, quando discutiam, os colaboradores ouviam as vozes que se elevavam, a irritação. Quando se separavam, ele furioso, em silêncio jurando vingança, ela, superior, sorrindo como se nem tivesse percebido a situação desagradável e ele, com isso, ainda mais furioso, a ranger entredentes, ainda as pagas, não perdes pela demora, a vingança serve-se fria, espera pela pancada.
Não raras vezes, quando se reunia a sós com ela e a conversa e as divergências subiam de tom, aquele perfume, aqueles olhos, aqueles lábios, aquelas pernas, aquele decote começavam a fazer o seu caminho rumo aos domínios mais escusos do seu inconsciente. Não o demonstrava, anos de tarimba, e continuava a discutir, a desmontar raciocínios, a tentar vencê-la, mas, enquanto isso, sentia a involuntária reacção do seu corpo. E pensava, que ela não me tope, caraças. Ia ser a grande vitória dela, porra. Mas ela nunca o percebia. Vive para o trabalho, não tem mundo, bonita mas uma santinha, nem lhe deve passar pela cabeça uma coisa destas, tranquilizava-se ele.
E, no entanto.
*
Sotto Aguiar é, aqui, Pierce Brosnan. A música é What other guy de Adam Cohen.
*
Relembro que, se continuarem a descer, abaixo deste, há o texto que escrevi há pouco sobre as comemorações do 25 de Abril, sobre a minha ida à praia e sobre o livro que estou a ler, crónicas de Clarice Lispector.
Caso queiram continuar ainda um pouco mais na minha companhia (há gostos para tudo, não é?), convido-vos a virem comigo até ao meu Ginjal e Lisboa onde, hoje, pela mão de Manuel Alegre (who else no 25 de Abril?) me interrogo sobre o início (e o fim) de todas as coisas. A música que se lhe segue é ainda uma grande interpretação de Chick Corea.
*
Por hoje, é isto. E já é sexta feira.
E o que vos desejo, meus Caros Leitores, é que seja, para vós, um grande dia.
E que tenham saúde, alegria e esperança.
Afinal... o realizado e virtuoso Dr. Sotto Aguiar tem um vida cheia de tudo mas falta-lhe desenterrar a chama do amor para lhe rejuvenescer o coração, porque pelo que estou a perceber, há uma roptura ou descontinuidade nas relações afectivas!:)Estou a seguir com interesse e estou com pena do Dr.Sotto:)...ele é bonito e bonzinho de mais para sofrer assim.
ResponderEliminarUm beijinho e bom fim de semana.
Todo o herói tem um calcanhar de Aquiles. O herói trágico, por seu lado, não só tem um calcanhar de alto coturno, como sofre de Hybris, uma força, um excesso que o leva a desafiar a ordem. Esse excesso até pode ser o tédio ou uma necessidade indizível que é a marca do humano...
ResponderEliminarAs mulheres, por mais boazinhas, inteligentes e bonitas, também têm o seu lado secreto, uma sede escondida...
Curioso par. Aguarda-se o desenrolar da história!