quarta-feira, dezembro 12, 2012

Silêncio e tanta gente. Troco a minha vida por um dia de ilusão. (Catherine Deneuve por Bettina Rheims ao som de Maria Guinot)






Aqui sozinha em casa. Todos os dias sozinha. Em tempos fui bonita. Se calhar ainda sou mas já não o vejo nos olhos de quem me olha. Já ninguém me olha. Sempre aqui sozinha, perdida de mim.

Vestir-me para quem? Pintar os lábios para quem? Ver-me ao espelho para quê? Para ver o que mais ninguém vê? Uma mulher sozinha, que ninguém ama, que ninguém beija?

Mas hoje estou tão vazia que preciso da minha própria companhia, talvez assome alguma ilusão, talvez essa ilusão me sirva de companhia. 

Vou vestir-me hoje, vou pentear-me, vou ver-me ao espelho. 




Aqui estou. Roupas de há anos atrás. Já não se usa nada disto. Também eu já estou fora de moda, gasta. Era tão bonita, eu, quando me sentia desejada. 

Vejo-me ao espelho, saia curta, rosto triste, deixo descair uma manga, deixo que a alça do soutien se veja no ombro que se descobre, faço uma expressão que tenta sensual mas que é apenas triste.

Arqueio um joelho, faço uma pose que podia ser de sedução; mas não é. Para seduzir teria que me sentir confiante e não sinto, sinto-me sempre tão frágil, tão à beira do desmoronamento.

Há pouco escrevi uma carta. Dizia que estava farta, cansada, que ia partir para uma vida nova, que tinha um outro amor à minha espera, despedia-me, lamentava que tudo estivesse a acabar assim. Despedia-me em lágrimas e deixei que as lágrimas tombassem sobre as últimas palavras. 

Agora já me secaram essas lágrimas, agora tento pensar apenas no meu amor que lá fora me espera.




Pego na carteira que levarei. Não levarei mais nada comigo. Guardo o telemóvel, o pente, o baton, a chave do carro, os cartões. Nada mais. Deixo o passado para trás, quero esquecê-lo para sempre. Saio de mãos vazias.

Deito-me uma outra vez na cama, nas nossas camas unidas, desunidas, distantes. Olho-me no espelho que está em frente da cama, deixo que o decote descaia, os seios adivinhando-se, desenhando-se, eu ainda uma bela mulher, eu apetecível, sei que sou. Olho-me com um sorriso que apenas se insinuará, ao de leve, muito ao de leve, um olhar transversal, era assim que costumava seduzir, infalível.

Se fosses homem, aparecias agora aqui, sentavas-te à minha frente, olhar-me-ias com um olhar longo e desafiador, depois deixarias que a tua mão descesse pelo meu decote, puxarias a saia para cima, tudo farias e eu tudo consentiria.

A tua mão espreitaria o meu corpo e seria macia, e o meu corpo iluminar-se-ia para ti. Tu sabes isso, tantas vezes o soubeste.

Vou despir-me. Já que não o fazes, faço eu. 

Olho-me, sorrio-me. Em silêncio. E as tuas mãos não vêm. Já percebi que não virão nunca.

Daqui a nada sairei, e será para sempre. Não me peças que recue, que volte, que te perdoe. Não me peças. Não vale a pena. A minha decisão está tomada. Tantos anos este meu corpo aqui desperdiçado, abandonado, sozinho. Não perdoo, não perdoo.





Está frio. Enrolo-me num casaco macio, o casaco que usava quando vínhamos da ópera, dos concertos, o casaco que vestia sobre a pele nua quando chegávamos a casa e festejávamos o nosso amor eterno. Não foi eterno, afinal.

Envolvo-me agora nele e olho-me ao espelho. Um corpo que foi feito para ser amado, como todos os corpos. Como todos. Olho-me. Bela. Dizem que sou bela. O espelho devolve-me a imagem de uma mulher que se olha sem esperança. Olho-me e o meu coração grita a história do que eu sou. Grito. Mas do meu peito não sai um único som. Tanto silêncio. Tantas palavras por dizer.

Vou despir esta capa. Vou vestir um pijama infeliz, um casaco baço, sem história, sem graça. Vou apanhar o cabelo. Vou fechar o rosto.

Vou rasgar a carta. De qualquer maneira, ninguém a leria. Aqui não vive mais ninguém. Só eu e os fantasmas que habitam as minhas recordações. Há muito tempo que não existe amor na minha vida. Nem dentro de casa nem lá fora. Escrevo cartas para ninguém. Rasgo-as e sou eu que me despedaço ao rasgá-las.

Nem consigo já imaginar nada, nada, nem uma pequena ilusão. Vou enfiar-me na cama, luzes apagadas, ainda é de dia mas a noite já entrou dentro desta casa sombria, tão fria, tão fria. A solidão às vezes é tão triste.

E eu troco a minha vida por um dia de ilusão.


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Catherine Deneuve aqui é retratada por Bettina Rheims, fotógrafa francesa agora com sessenta anos.

A canção, que é tão bonita, é Silêncio e tanta gente, de Maria Guinot.


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Se me permitem o abuso, deixem que vos convide ainda para permanecerem um pouco mais na minha companhia. Hoje as minhas palavras estão assim, tristes, e no meu outro blogue, o Ginjal e Lisboa, não estão muito melhores. Uma fotografia que me custou a fazer fez-me escrever o que escrevi. Nem é que fosse o poema de Manuel António Pina e ditar-me o que escrevi, acho que foi mesmo a situação que retratei. Para ver se espanto tristezas, fui buscar Los Romeros para interpretarem La Malagueña de ernesto Lecuona.


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E, por hoje, nada mais. 
Apenas quero desejar-vos ainda uma bela quarta feira. 
As quartas feiras têm sempre tudo para serem uns bons dias.

15 comentários:

  1. Olá,

    Li agora o que escreveu esta madrugada, achei-a muito triste, gosto mais quando está com o seu imparável sentido de humor!
    Conto com ele para me animar!!!

    Ou será que vai escrever mais uma das suas histórias?

    Entretanto, para a animar a si, vou enviar por mail um little Christmas Cat.

    Um beijinho, e uma óptima quarta feira.

    ps: Então chamou Seabra ao Seara?
    A Judite deve estar 'piurça' (será que ela lê o UJM?).


    Antonieta

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  2. Olá Amiga,
    Gostei do texto, triste sim, mas de uma beleza enorme!!
    A voz e as palavras de Maria Guinot, lindas!!
    Uma das melhores representantes que tivemos no Festival Eurovisão da Canção.
    Desejo-lhe uma óptima quarta-feira.
    Aquele Abraço.
    MCP

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  3. JOAQUIM CASTILHOdezembro 12, 2012

    Olá UJM!

    Quando a tristeza e a solidão se embrulham num belo texto como o seu, nem parecem tristeza nem solidão.
    Até conseguem sorrir, no prazer das frases que nos mostra , como rio luminoso que se espreguiça ao som das suas palavras . Consegue ser bela a (sua?) melancolia...

    Para a homenagear, a Gundula Steglitz escreveu-lhe umas palavrinhas:

    AUSÊNCIA


    Dizem que as ausências doem
    quando nos chegam
    como lâminas ácidas
    do interior do tempo,
    quando as imagens ausentes
    nos cercam
    e nos ferem como fantasmas.
    Dizem, os que nunca viveram
    o doce prazer de encontrar,
    a esperança morta já,
    quem, em vão, procurámos.
    Viver a esperança, dizem,
    é melhor
    que alcançar
    por um qualquer acaso
    o que sempre, sem esperança,
    se aguardou.

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  4. Bonita composição, música, voz e poesia. Todavia, não sei se eu trocaria a minha vida por um dia de ilusão. Catherine Deneuve está aqui uma mulher belíssima. O que ela foi (e ainda é). Sensual, muito feminina, cheia de charme e encanto. Gostava muito dela como actriz. Mas já não a vejo há algum tempo em filmes. Tinha uma beleza muito especial, que quase nos intimidava. E possuia aquele “ar fatal”. E tinha (e tem) imensa classe. “Indochina” e “The Hunger”, não sei porquê, foram dos filmes dela que melhor recordo.
    Se Catherine tivesse vivido na época Renascentista, não me admirava que um desses grandes artistas a tivesse pintado. E captado o seu olhar. Assim, ficou nas telas do Cinema.
    Gostei de ler o texto do Post. Um dia, na reforma (já que agora não está para aí virada, ao que vejo), “atreva-se” a escrever. Não se iria arrepender. Pode crer!
    P.Rufino
    PS: aqui há tempos, numa prova de vinhos com uns carolas e amigos, alguém comparava, com elegância, a mulher e o vinho e que tipo de vinho para determinada mulher. No caso de Catherine Deneuve (ocorreu-me agora) não hesitaria em associa-la a um bom tinto, maduro. Mas qual?
    Já para a Angelina Jolie associava-a, talvez, a um branco (meio seco).


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  5. Belíssimo texto de claridades

    Sopro-te
    e voo

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  6. Catherine Deneuve e Maria Guinot provam que "ninguém" tem quase setenta anos.
    :)

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  7. ...há dias assim, há vidas assim, mas quando o Sol brilha, tudo passa.
    Que bom recordar Maria Guinot e o Festival da Canção, quando dele saíam belas canções, agora que a RTP desistiu

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  8. A Todos,

    Hoje apenas consegui pegar no computador perto da meia-noite e estava com vontade de escrever o que escrevi.

    Agora já são praticamente duas da manhã (e chove que Deus a dá) e daqui a nada tenho que estar a pé. Por isso, com muita, muita pena, não consigo comentar os vossos comentários, tão queridos. Quase me dava vontade de pegar neles e copiá-los para um post autónomo.

    Agradeço-vos de coração. Amanhã, a propósito das vossas palavras, tentarei conversar convosco (mas não prometo pois provavelmente não chegarei cedo).

    As minhas desculpas.

    Um abraço a todos!

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  9. Antonieta, olá,

    No que se refere ao Seara não sei o que me deu. devo ter achado, no meu subconsciente, que ele ficava mais compostinho com um b.

    Quanto ao que escrevi, acho que já expliquei: cansaço, sono, um texto escrito no Ginjal que me custou a escrever e, sei lá, cheguei aqui e saíu-me isto. E estou com vontade de continuar.

    Um beijinho!

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  10. Olá MCP,

    Gosto imenso desta canção da Maria Guinot. Apeteceu-me escrever um texto enquanto a ouvia. Ela punha uma tal emoção ao cantar que é impossível ficar-se indiferente.

    Obrigada pela suas palavras amigas.

    Um abraço, MCP!

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  11. Olá Joaquim Castilho,

    Em primeiro lugar agradeço a sua gentileza.

    Estava melancólica eu, sim. No entanto, o que escrevi nada tem a ver com a minha história pessoal. Acho que me inspirei na letra da canção e nas fotografias que fui escolhendo enquanto escrevia.

    Gostei muito da poesia que a Gundula Steglitz escreveu e pode ser que ainda surja a oportunidade de a incluir na história. Veremos, nunca sei o que vai sair daqui.

    Muito obrigada.

    Um abraço, Joaquim Castilho.

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  12. Olá P. Rufino,

    Um prazer de ler, como sempre, o que escreveu.

    E agradeço a sua generosidade. Talvez daqui por uns anos, uns 30 ou 40, quando me conseguir reformar (acho que, quando chegar a minha vez, aumentam a idade de mais 5 anos e depois, passados 5 anos, aumentam mais 5 e assim sucessivamente), talvez, então, eu me dedique à escrita. Espero nessa altura, ver os meus livros ao lado dos seus, nos escaparates das livrarias...

    Quanto às mulheres e ao vinho, acho que sim, que é uma comparação que é simpática para ambos os termos da comparação.

    Deneuve seria um tinto, sim, mas muito assente na Touriga, leve, frutado. Enfim, digo eu.

    A Angelina ser um branco seco, fez-me rir. Mas acho que tem razão.

    E para o rosé? A Luciana Abreu...?

    (Apesar do sono com que estou, estou a escrever isto e a ler as suas palavras e estou-me a rir e, só por isso, já tenho que lhe agradecer)

    Uma boa sexta feira!

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  13. Olá Eufrázio Filipe,

    Fico agradada que tenha visto luz nas minhas palavras apesar de ser um texto 'noir'. Eu sou, de facto, uma pessoa que ama a luz (apesar de gostar de escrever noite adentro) e fico contente por pensar que isso transparece nas palavras que escrevo.

    Muito obrigada pelo sopro e pelo seu voo!

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  14. Olá jrd,

    As suas palavras são simpáticas para quem tem perto de 70 anos e uma vida cheia de sonhos, recordações, e a quem o tempo não derrubou.

    Por acaso acabei há pouco de escrever sobre uma outra forma de viver o tempo que passa sobre o corpo, transformando o rosto. Apesar de 'rejuvenescidas', repara-se mais na idade destas pessoas do que naquelas que o vivem com orgulho.

    Um abraço, jrd.

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  15. Olá Pôr do Sol,

    Eu, é sabido, de vez em quando dá-me para escrever coisas tristes. Mas, no dia seguinte, já estou a ver como hei-de dar a volta e ficar outra vez 'numa boa'.

    Já estou nessa fase. Hoje aliás vinha para escrever a continuação da história mas o Google distraíu-me dos meus intentos.

    Ainda tinha a ideia de a seguir escrever a continuação da história mas já mal consigo abrir os olhos.

    Um beijinho, Sol Nascente!

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