segunda-feira, outubro 29, 2012

Lídia, a mulher que era triste, recebe um inesperado convite




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Lídia já tinha regressado ao trabalho e agora a vida parecia-lhe um pouco mais leve. A D. Fátima dissera-lhe que tinha arranjado uma cliente que lhe dava mais jeito, eram mais horas de seguida e Lídia deixou-a ir com algum alívio (financeiro, sobretudo). As senhoras do voluntariado revezavam-se, uma ia à hora de almoço, outra ao fim da tarde, esperando até Lídia chegar a casa. Assim, Lídia não tinha que andar sempre com o credo na boca, temendo atrasar-se. Nita, por seu lado, era uma ajuda muito preciosa a todos os níveis, um suporte. E, depois, claro, havia o Paulo.

A amizade entre ambos estreitava-se de dia para dia, quase todos os dias arranjavam maneira de se ver e, se não era possível, telefonavam-se.  Aos poucos, em grande parte por influência e insistência de Nita, Lídia foi ganhando coragem para ser ela mesma, foi ganhando coragem para superar o medo da opinião alheia, conseguindo, a custo, ir fazendo aquilo que lhe dava gosto.

Perto dos cinquenta anos, Lídia sentia, finalmente, sem medo, o carinho de uma relação que começava a esboçar-se.

Sendo Paulo um homem vivido, seria normal que a relação avançasse sem delongas ou mil cuidados. Mas Paulo era também um homem bom e compreensivo e cedo percebeu que Lídia era uma mulher que toda a vida vivera inibida, constrangida, e que, apenas agora, estava a viver a adolescência venturosa que as mulheres costumam viver antes dos vinte anos. Por isso, com uma ternura quase cerimoniosa, cada passo era dado com muito vagar. E, talvez por isso, Lídia foi aceitando que a relação fizesse o seu caminho e já não conseguia passar sem a voz reconfortante e viril de Paulo, sem o seu olhar compreensivo e doce, e Paulo também não conseguia passar sem a atenção e o cuidado de Lídia, sem a sua visão sensível e curiosa, sem o seu enorme sentido de humanismo.

Até que, um dia, Paulo lhe ligou e a voz era ansiosa, tinha uma coisa para propor, tinha tido uma ideia, estava entusiasmado.




Foi buscá-la ao trabalho e, mal ela entrou no carro, disparou, Como sabe, a minha filha está a fazer o Erasmus em Amsterdão e eu pensei em ir lá vê-la. Tenho dias de férias para gozar, íamos num sábado logo de manhãzinha, vínhamos na terça à noite, eram só dois dias. A minha filha diz que aquilo é outro mundo, que não há preconceitos, que ninguém censura ninguém, e que é um sítio muito bonito. Lídia assustou-se, ir assim sozinha com ele para o estrangeiro? Nem pensar. E ter que andar de avião, só andou uma vez, há muito tempo, uma vez que foi com os pais numa excursão à Madeira, tem medo, nem pensar. Com tantos medos ao mesmo tempo, tão inesperada a proposta, não conseguiu dizer nada. Paulo deve ter percebido porque continuou, e a voz era de quem queria transmitir tranquilidade, Ela está num apartamento com outras estudantes, diz que arranja maneira de lá ajeitar um sofá para si e eu arranjo um hotel em conta lá perto. O que diz?

Lídia fechou os olhos, preferia não ser confrontada com propostas destas. Mas, por outro lado, que vontade de ir conhecer o mundo. Paulo disse-lhe, eu gostava muito de ir ver a minha filha e gostava que vocês se conhecessem e gostava muito de ir conhecer aquela cidade, tenho ouvido falar tanto. Mas, para ir, só vou se for consigo. Vamos…, e o tom era quase de súplica.  Já pensou, nós dois a passearmos nos canais? E a Sara diz que depois nos vai mostrar os sítios e nos ensina o caminho para os pontos mais interessantes. Venha Lídia… gostava tanto… Que mal tem? Você tem que dar justificações a alguém?





Lídia pensava agora na mãe. Nunca se separou dela, aquilo já era uma dependência mútua, já não conseguia estar longe dela nem deixar de se preocupar. Não posso, quem é que fica com ela? E se piorar, e eu lá tão longe?

Paulo respondeu-lhe, Calma. Primeiro tem que resolver se quer ir ou não. Se não quiser, nem precisa de se preocupar com a sua mãe; se quiser ir, então arranjamos uma solução. Entre a Nita, as senhoras do voluntariado e, se calhar, até a D. Fátima, alguma solução se há-de arranjar. 

E arranjaram. Quase como se estivesse a agir debaixo de hipnose, quase como se se tivesse forçado a deixar de pensar, quase como se nem fosse ela, pela primeira vez na vida Lídia deixou-se levar pela sua vontade própria.

Foi Sara, a filha de Paulo, quem lhes arranjou voos muito baratos numa companhia low cost, foi  Sara quem escolheu um hotelzinho barato para o pai, foi Sara que enviou um mail com alguns pontos de interesse e uma proposta de roteiro para que eles pudessem ver na internet de que se tratava e decidir se queriam fazer aquelas ou outras visitas.

Perto do dia da partida um medo, daqueles medos antigos, que a deixavam incapacitada, quase tomou conta de Lídia – medo que a mãe piorasse, medo que alguma das mulheres não fosse ver a mãe nos horários, que não lhe desse a medicação, medo de andar de avião, medo de que se perdessem, medo de que o fraco inglês não bastasse para se entenderem por lá quando andassem sozinhos e, sobretudo, muito, muito medo da intimidade que se poderia vir a proporcionar. Até agora, a esse nível, ainda não tinham passado de beijos, de estar de mão dada, uma ou outra carícia, nada de muito mais que isso – e, mesmo assim, sempre que isso acontecia, ela ficava inibida, quase sem acção, o coração num sobressalto que quase a sufocava.

Mas Nita e Paulo não a deixavam vacilar. Sempre que a sentiam hesitar mudavam logo a conversa para a roupa que ela devia levar, para a mala que devia usar, para que não se esquecesse de levar isto, aquilo e o outro.

E, assim, no dia combinado, depois de uma noite em claro, tamanha era a ansiedade e a excitação, antes das cinco da manhã já Paulo estava num táxi à espera à sua porta. Lídia reparou como ele estava animado, feliz mesmo, bonito, rejuvenescido.




A caminho do aeroporto, depois no aeroporto surpreendentemente cheio de gente àquela hora, depois a entrar para o avião já com Paulo a dar-lhe a mão, carinhoso - Está tão bonita hoje, mais ainda que nos outros dias, fica-lhe bem o baton, e está com os brincos que lhe ofereci, está tão linda, Lídia, tão linda... - era como se Lídia vivesse o espírito adolescente das excursões de finalistas, aquele frenesim nervoso e expectante das viagens em que tudo está por descobrir, as paisagens, as sensações, tudo.

No avião, Lídia sentiu as mãos geladas e húmidas, era o seu velho medo. Mas Paulo estava tranquilo e essa tranquilidade sossegou-a.




Durante a viagem, Lídia tentava imaginar como seria Sara, receava que a jovem não gostasse dela, receava que a achasse antiquada, triste, mas não comentou sobre isto com Paulo. Ele estava tão entusiasmado com a perspectiva de rever a filha, tão entusiasmado, tão feliz que Lídia quase sorria com a perspectiva de os ver juntos, de pensar que, dentro em pouco, andariam os três a passear numa cidade estrangeira, quase como se fossem uma família.

À chegada, Sara esperava-os. Era uma jovem alta, moderna, bonita. Tinha traços do pai. Paulo estreitou-a nos braços, beijou-a com carinho e ela retribuíu. Via-se que eram bastante amigos. Depois Paulo apresentou-as e Lídia sentiu um sentimento de proximidade em relação à jovem. Quando Sara a beijou, Lídia desconheceu-se ao perceber que estava a fazer uma festa carinhosa no braço da miúda.

Bem vindos a Amesterdão! Vão ser quatro dias inesquecíveis, vocês vão ver, exclamou Sara.

Paulo estreitou Lídia entre os braços. Vão ser, sim, disse ele em voz baixa, com ternura, quase como quem faz uma promessa. Lídia deixou-se abraçar; o calor do corpo de Paulo e o sorriso de Sara transmitiam-lhe uma segurança e uma tranquilidade nunca antes sentida.


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As fotografias retratam Kristin Scott-Thomas e Harrison Ford.  Philippe Jaroussky, interpretando Farinelli, canta Cara Sposa de Handel.

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Muito gostaria de ter a vossa visita também no meu Ginjal e Lisboa. As minhas palavras hoje acolhem-se da chuva, na companhia das palavras de Eugénio de Andrade, quase molhadas pela chuva. A música é um momento especial no qual convergem a dança, o canto e a música de Monteverdi. Gostaria muito que vissem e ouvissem (mas, se não estiverem para isso, paciência, fico contente na mesma). 

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E, por hoje, é isto. 
Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa semana a começar já por esta segunda feira. 
E que viva o romance e o amor!


PS: Ainda há Homens na política deste país. José Manuel Rodrigues, do CDS, uma vez mais mostrou que o é e que os tem no sítio. Acabo de o ouvir dizer que é tempo de agir por convicção, dizendo não às conveniências. Demitiu-se do cargo no partido e diz que o deputado da Madeira deverá votar contra o OE 2013 e sujeitar-se às sanções. Até que enfim que vejo alguém a agir de peito feito! 

8 comentários:

  1. Amiga:
    Já tinha saudades da Lídia.
    Os milagres que uma boa amizade e um amor nascente, fazem a uma mulher.
    Tento imaginar Lídia em Amesterdão. Talvez me tente sentir a mim, em Amesterdão. Quem sabe? Talvez na Primavera, com o meu marido. Isto claro, se o Gaspar der ordem.
    A mudança de Lídia, tem sido tão bem descrita, que parece real. Para mim, ela já não é personagem, é pessoa. Tem um pouco de muitas mulheres.
    Só espero que ela goste tanto de Amesterdão, como a minha Amiga gostou.
    Peça-lhe que traga duas echarpes do gato. Uma para si, outra para mim.
    Ou melhor: O Paulo que lhe dê uma, a ela.
    Beijinho
    Mary

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  2. Olá,

    Por esta não estava à espera, mas é uma ideia fantástica!

    Quer dizer que vamos ver os canais de Amesterdão através dos olhos da Lídia, do Paulo e da Sara.

    Que boa surpresa!

    Beijinho,

    Antonieta

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  3. Olá,
    A Lídia finalmente está a caminho da felicidade e vai sentir-se muito bem em Amesterdão, com museus lindos para ver, canais por onde andar, ruas cheias de gente feliz, sem inibições e constrangimentos, livre como um passarinho,com a amizade do Paulo e de braço dado com o amor.... vai estar no paraíso, e ela merece ser feliz... e nós vamos todos à boda!!!!
    Parabéns pela sua imaginação, não podia ter um encaminhamento melhor...
    Um beijinho grande

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  4. Olá Mary,

    Quando estava a escrever, pensei em si. Achei que ia gostar de ter notícias de Lídia.

    Acho que faria bem, se for lá. A Primavera é também uma boa altura para ir. No verão não, há demasiados turistas e agora também não é a melhor altura, está a ficar frio, chuva, os dias pequenos.

    Quanto a Lídia, acredito que os apoios, os afectos, são indispensáveis à sobrevivência emocional de quem esteja sujeito a muita pressão. A Lídia tinha em cima de si, só ela, toda a responsabilidade de ter uma mãe demente, a definhar de dia para dia, dependente. Foi-se abaixo como tantas mulheres cuidadoras o vão.

    Quis que ela conseguisse sair do fosso onde estava metida, ela e a mãe, as duas na maior solidão.

    Estou contente por agora senti-la bem. O Paulo ajudou-a a sair daquela terrível depressão e tornou-se um esteio na vida dela.

    Tomara que a história se mantenha assim, positiva.

    Obrigada, Mary.

    Um beijinho.



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  5. Olá Antonieta,

    Pois é, ontem ocorreu-me que era o melhor sítio para a Lídia se desempoeirar, para perceber que é uma estupidez de todo o tamanho viver uma vida inteira atormentada com receio do que dizem os outros. Apeteceu-me dar-lhe um banho de mundo.

    Obrigada!

    Um beijinho, Antonieta.

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  6. Olá Maria Eduardo,

    Quando eu estava a descrever aquele sufoco terrível, aquela angústia, aquele medo sempre presente, acabava de escrever e estava, eu própria, numa angústia que nem imagina. Tinha que respirar fundo para ver se aquela aflição saía de mim.

    Agora é o contrário, escrevo e fico nas nuvens e só me apetece voltar a escrever, descrever o romance que está cada vez mais forte.

    Muito obrigada pelas suas palavras.

    Um beijinho, Maria Eduardo!

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  7. Boa noite, UJM

    Vim fazer-lhe uma visita assim a esta hora para acompanhar a história de Lídia, embora gostasse imenso de ficar aqui a ler todos estes posts maravilhosos.

    Gostei imenso da ideia de Paulo convidar Lídia para uma viagem, ainda por cima a Amesterdão, por quatro dias.:) É muito bom tirá-la daqui, do ambiente que ainda a deprime dando-lhe assim a oportunidade de conhecer outros lugares e, talvez, outras pessoas.

    Não poderei ler a continuação, hoje, mas voltarei.

    Beijinhos

    oLinda

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  8. Olá Olinda,

    Fiquei contente com a sua visita nocturna. Depois da angústia com que ficava ao escrever aquela fase da vida de Lídia em que ela se esgotava sozinha em cansaço e desespero, estou a gostar agora de a trazer para estas paragens tão arejadas em que ela vai poder ver que não faz sentido uma vida de medo, de constrangimento e em que começa, finalmente, a perceber que todos os fardos podem ser aligeirados (sem que isso signifique menos amor e dedicação ao ser a quem se prestam cuidados).

    Agora acabo de escrever e sinto-me também contente.

    Obrigada pelas suas palavras, Olinda, e um beijinho.

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