Dove sei, dove t'ascondi
[Bononcini (Polifemo), Martina Bovet]
*
Lídia estava muito em baixo. Tinha chorado, os olhos estavam inchados, vermelhos, tinha olheiras. Uma sombra, como sempre.
O que é agora isso?, perguntou Nita quando chegou; e enquanto perguntava, mudava a fralda à idosa, limpava-a, punha-lhe cremes, ajeitava o resguardo, tirava as luvas, uma rapidez de movimentos que só visto, dir-se-ia que toda a vida fizera aquilo. Depois deu-lhe uma papa, limpou-lhe a boca, deu-lhe os medicamentos, ajeitou-a na cama, puxou o cobertor para cima, entalou-o dos lados. No fim fez uma festa na cabeça da senhora. Lídia, como se ganhasse força, levantou-se e deu um beijo na mãe, durma bem, mãe. A mãe perguntou-lhe, sabe a que horas é que a minha filha chega? Lídia fez-lhe uma festa ao de leve na cara e respondeu, está quase a chegar.
Nita olhava para ela, mas então foi-se outra vez abaixo ou quê?
Lídia encolheu os ombros, fechou os olhos. Depois disse, combinei ir amanhã pagar o dinheiro àquele polícia que me ajudou.
Nita ficou à espera, E...? Como Lídia não respondesse, insistiu, Sim, e então, que é que isso tem?
Lídia não queria falar nisso mas como Nita continuasse à espera, de mãos nas ancas, explicou, e toda ela uma hesitação na voz, Eu não quis que ele viesse aqui a casa... combinou irmos a um café...
A outra continuava sem perceber, E então? que é que isso tem?
Há anos que não vou a um café, sentar-me numa esplanada, e ainda por cima à hora de trabalho.
A outra pensou que ela estava com medo de ser apanhada numa fiscalização, Não tem problema! Então, a sua baixa é psiquiátrica, a senhora pode sair, só lhe faz é bem, devia era sair mais.
Lídia viu que ela não tinha percebido, mas nem sei estar num café, não me dá jeito.
Ora, D. Lídia, mas o que é isso de dar jeito? Não é para estar sentada a uma mesa...? Que jeito é que é preciso para estar sentada a uma mesa...? e riu-se.
Lídia ganhou coragem, Mas ele é casado.
Nita deu uma gargalhada, Ora essa! E então ser casado é ter peçonha?
Lídia, envergonhada, já com medo, Se me vêem sentada num café com um homem casado...
A outra ria-se, Oh D. Lídia mas está a pensar ir arrancar-lhe algum pedaço...?
Lídia sorriu. E nem sei o que hei-de vestir... e estou tão magra.
Nita pegou nela pela mão, Bora lá, vamos lá então escolher a toilette e levou-a até ao quarto.
Depois de vasculhar, confessou, rindo, Pois é, D. Lídia, este guarda roupa bem merecia uma boa reforma, que roupas mais tristes, senhora...
Mas lá escolheram.
Nessa noite Lídia mal dormiu. Levantou-se cedo, tomou banho, vestiu-se logo, aprontou-se, guardou o livro de cheques e a meio da manhã estava pronta. Mal conseguiu comer tal era a ansiedade. Depois uma outra questão começou a atormentá-la: queria lembrar-se da cara de Paulo e não conseguia. Começou, então, a temer chegar lá e não o reconhecer.
A mãe chamava-a, chamava pela mãe, pela prima, pelo marido, estava levada da breca, uma agressividade difícil de aturar, que as janelas estavam escancaradas, que os ladrões entravam, que entrava o frio, que entrava o vento, que entravam os gatos, que os gatos davam conta de tudo, e Lídia, não estão nada, mãe, estão fechadas e a mãe, sua mentirosa, estás a gozar comigo, então eu não vejo tudo aberto, a chuva a entrar, o chão todo molhado, os tapetes encharcados, sua estúpida, sua malvada, queres é que eu morra, não é?
Lídia, enervada, impaciente, Que ideia, mãe, está tudo fechado. Quando se ia chegar à mãe para lhe ajeitar a mantinha sobre as pernas, a mãe quase a agredia, julgas que eu estou velha, que já me podes enganar? dou-te um par de estalos para veres quem manda aqui.
Sentiu o cheiro, aquele horrível cheiro. A mãe estava suja, devia mudar-lhe a fralda. Mas queria era ir-se embora, estava ansiosa, impaciente.
Infeliz, a sentir-se culpada, saíu da sala. Foi ver-se de novo ao espelho. Desengraçada, ultrapassada, mosca morta, solteirona, menina velha, desmereceu-se em pensamento. Mudou de casaco, vestiu um mais claro. Depois saíu de casa, enervada, culpada, culpada por deixar a mãe assim, culpada por se ir encontrar com um homem casado. Viu as horas, a D. Fátima deveria estar quase a chegar, limparia a mãe, da-lhe-ria o almoço.
Chegou ao Cais do Sodré antes da hora e o coração batia, batia, pancadas incertas e audíveis. As pernas tremiam-lhe, a boca seca, as mão molhadas. Podia colapsar a qualquer momento.
Não sabia o que fazer, se devia entrar, se devia ficar por ali a fazer horas. Era uma estranha naquele ambiente. Havia gente descontraída nas almofadas cá fora, gente junto ao rio, pareciam todos felizes, bem vestidos, descontraídos. Lídia não sabia se haveria de ir para ali, tinha vergonha, tinha medo, não costumava andar em sítios assim, medo que a assaltassem, medo também que algum homem se metesse com ela, medo que Paulo não aparecesse, medo, medo, sempre aquele insidioso medo, sempre, um medo surdo a tolher-lhe a vida..
Mas, mal se aproximou, viu Paulo. Estava perto da entrada, mãos nos bolsos. Era alto, forte, uns cinquenta anos, talvez mais, parecia quase um homem do campo e também ele parecia ali ligeiramente deslocado.
Quando a viu, riu e avançou para ela. Parecia ir aproximar-se para a beijar mas Lídia estendeu-lhe uma mão gelada, húmida. E mal o fez logo se arrependeu, que vergonha, porcaria de mãos, vai ver que estou neste estado, mas ele deu-lhe um vigoroso aperto de mão, Então como está?
Lídia, atrapalhada, estou bem, obrigada. E só pensava em entrar e esconder-se num canto, sentar-se de costas numa mesa escondida.
Paulo, disse, Não quer vir aqui até à beira do rio? e Lídia já numa aflição, a voz a tremer, Não, não quero ser vista consigo aqui a passear.
Paulo parou espantado, Hom'essa, mas então porquê? Eu sou dos bons. Eu prendo os maus. Eu não sou nenhum bandido. Tem vergonha de ser vista comigo porquê?
Lídia sentiu-se corar, a voz sumida, Porque é casado...
Paulo deu um passo atrás, espantado. Casado, eu? Mas onde é que foi arranjar essa ideia? E se fosse? Essa agora é boa...
Lídia assustou-se, pensa, já estou arrependida, bem diziam que devia ser um meliante, é um mentiroso, bem me avisaram contra gente desta, agora pensa que me vai enganar, julga que se pode aproveitar, vou-me mas é já embora. Pago e vou-me embora, nem me sento à mesa. Tem ar de sabido, credo..., nem tinha ideia que fosse assim, julga que me pode enganar, ah que pouca sorte a minha, olha como sorri a ver se me leva na conversa.
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Caso vos apeteça passear comigo pelo Ginjal, teria todo o gosto em vos ter por lá. Boccherini continua a ser uma presença envolvente e hoje as minhas palavras pintam rios e pontes para me unirem a vocês, meus Caros Leitores, junto a um belo poema de Pedro Tamen.
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Desejo-vos, meus caros leitores, um belo dia. Está um fresquinho e uma chuvinha de Outono, é bom.
Amiga:
ResponderEliminarLídia, mesmo nervosa, angustiada, deu um passo em frente. Espero que Paulo saiba lidar com ela, quebrar as barreiras invisíveis, que a assustam.
Falo de Lídia como se fosse uma pessoa. Ela ganhou vida, tão parecida é, com tantas mulheres com quem nos cruzamos.
Paulo! Vai devagarinho, por favor.
Abraço
Mary
ResponderEliminarMeu Deus, todo o passado a vir à tona e o impressionante é que nesse passado nada tinha acontecido, em termos de realização pessoal. Só ideias preconcebidas que lá lhe meteram, numa idade em que a personalidade estava em formação. Para se recuperar disso seria preciso tomar consciência de que o seu medo é irracional e que a vida é muito mais do que isso.
A mãe! Sempre me impressionou essas vidas para lá da razão, em que o cérebro se destrambelha completamente, indo buscar pedaços aqui e ali, projectando-as num tempo que não é passado, presente ou futuro. E lá nesse limbo, nesses encontros e desencontros, deve haver um sofrimento atroz.
Querida UJM, vejo que o Ginjal está de novo a dar que falar. Lá irei, para estar, para ler e ouvir música. Vai ser o meu momento zen.
Beijinhos
Olinda
Olá,
ResponderEliminarLídia já ultrapassou os obstáculos que a atormentaram, durante tantos e tantos anos, agora foi ao encontro de Paulo que a vai escutar, aconselhar e encaminhar. Ele vai apreciar a sua maneira de ser sincera e vão ser bons amigos, certamente. Ela bem merece ser feliz.
A todas as Mulheres como Lídia, que sentem que a sua vida não tem mais sentido, devem erguer a cabeça, não ter receios, procurar ajuda, falando com amigas, pois uma amiga outra amiga tem e há sempre alguém com espírito de solidariedade e a troco por vezes só de uma amizade mútua, se ofereça para dar ajuda e daí possa surgir uma grande amizade recíproca!...
Um beijinho
Olá Mary,
ResponderEliminarConheço mulheres assim, cheias de inibições, que vivem muito condicionadas pelo receio da opinião alheia, que sofrem com medo de despertar a censura alheia. Conheço mulheres que são cuidadoras de doentes dependentes e sei como ficam, oprimidas, revoltadas, vitimizadas, sem vida própria, mas, ao mesmo tempo, dedicadas, assustadas, carentes de um sorriso ou de um gesto de agradecimento que raramente aparece.
Sair deste 'poço' é muito difícil.
Mas eu não quero que a Lídia se deixe afundar na sua depressão, quero tentar que ela consiga viver a sua vida sem se sentir culpada em relação à sua mãe. Estou a tentar mas não é fácil - não é fácil na vida real, nem é fácil para mim que estou a escrever isto.
Quanto ao Paulo, acho que é um bom homem. Pelo menos, até agora, acho que tudo o que fez, o fez por bem.
Obrigada pelo seu apoio, Mary, é muito importante para mim.
Um abraço!
Olá Olinda,
ResponderEliminarSim, o Ginjal começa a entrar, de novo, na minha rotina. Volto a ter necessidade de iniciar a minha empreitada nocturna com a música, a poesia, a fotografia e a escrita no Ginjal.
Quanto à cabeça 'destrambelhada' é um mistério. Convivo de perto com uma realidade parecida (mas não sou a cuidadora), que, neste caso, não é Alzheimer mas sim sequelas de um AVC severo. E, por vezes, já não se sabe se é da doença, se é da cura pois há muitos medicamentos que provocam alucinações (mas que têm que ser tomados para outros sintomas que são ainda piores que a demência). E o que é estranho e curioso é que na mesma cabeça convivem pensamentos lógicos, acertados, recordações verdadeiras com racionínios disparatados, recordações baralhadas. A seguir a uma conversa completamente louca, pode seguir-se uma conversa normal sobre a actualidade política. E, passado um bocado, outra conversa sem nexo. Ou estar uns dias muito bem e pensa-se que a coisa entrou nos eixos e, depois, imprevisivelmente, sai uma conversa completamente maluca. Não dá para perceber. O pior é quem convive a tempo inteiro, 24 h por da, 7 dias por semana, todas as semanas de todos os meses dos anos.
Se a pessoa que cuida de um doente assim tem o suporte e o apoio da família, a coisa é muito pesada e dolorosa mas, enfim, vai-se levando; agora se é uma mulher sozinha, sem apoios familiares, aí nem sei como é que se consegue sobreviver, mas é que nem sei mesmo. E é por todas as pessoas que sofrem anos e anos em silêncio, que eu estou a escrever também isto (embora a ideia me tenha aparecido inesperadamente, sem pensar em nada disto de que agora estou a falar).
Muito obrigada pela sua atenção para com as minhas palavras, Olinda.
Um beijinho!
Olá Maria Eduardo,
ResponderEliminarTodas as pessoas que se vêem nestas situações, e geralmente são as mulheres as que mais se ocupam de doentes dependentes, se sentem infelizes, sozinhas, fechadas numa casa a tratar de uma pessoa que vai definhando e que absorve as energias de quem delas trata. O apoio, mesmo que seja para se falar, para aconselhar, é importante.
E há ajudas. Nisto, como em tudo (excepto na morte), há sempre esperança de arranjar melhor alternativa. Nunca se deverá desesperar, desistir. É importante falar embora eu saiba, e uma Leitora já também aqui o disse, que as pessoas se sentem umas chatas se andam a 'massacrar' os outros com o relato do seu infortúnio, das suas pequenas dificuldades (trocar fraldas, levantar o pai ou a mãe que já mal se mexe, etc).
Tomara que eu consiga arranjar uma alternativa feliz e credível para a Lídia. E tomara que Paulo seja mesmo uma boa pessoa.
Muito obrigada pelas suas palavras, Maria Eduardo, e um beijinho!
Olá,
ResponderEliminarComo certamente se apercebeu o comentário destinado a este poste foi parar ao poste anterior.
Acontece-me com frequência. Peço desculpa, mas fico contente por lhe ter provocado um sorriso.
Abraço
jrd,
ResponderEliminarOs sorrisos ficam bem em qualquer lado. Espreitou por uma janela e sorriu e eu nem reparei que era na janela ao lado e sorri também.
Estava tão entusiasmada na leitura, quando de repente...acabou!
ResponderEliminarTudo é possível e tenho a certeza que o que quer que escolha para fim, pode ser credível. As pessoas mudam se quiserem e fizerem esforço para isso. Mas não mudam de repente. Vão mudando e têm recaídas. Esse peso provinciano do parece mal também o senti durante muitos anos e acho que só há bem pouco tempo me libertei dele. Hoje já "me estou nas tintas" para o que dizem, mas leva-se muito tempo a mudar. Ajuda principalmente a idade.
Bem, vamos ver como acaba a história de Lídia. Mas ela também tem que querer mudar. Tem que deixar de se sentir vítima e aceitar o que a vida lhe pode dar de bom, não é?
Um beijinho
Olá Isabel,
ResponderEliminarConcordo com o que diz. O hábito de temer a opinião dos outros fica marcado na pele como uma tatuagem. O medo de dar um passo em falso é outra face da mesma moeda. Medo, ansiedade, inibição, e isso tudo associado a um peso grande, uma responsabilidade não dividida, são factores que atrofiam. Não é fácil, não. Conheço pessoas que estão sempre a temer o pior e tanto temem que não ousam e, não ousando, não avançam. Não se muda de um dia para o outro, não.
Por isso, apesar de ser uma história e de eu estar a torcer para tudo dar certo, as coisas andam e recuam permanentemente.
Vamos ver, sim. Até eu estou curiosa, quer crer?
Um beijinho, Isabel!