Música, por favor
Norah Jones - Don't know why
Mas se na vizinhança andavam todos intrigados, mistério idêntico havia na oficina.
Com uma humildade desconcertante, Ana chegava cedo, sentava-se no canto que lhe destinaram, punha-se a trabalhar, absorta nos seus pensamentos. Ninguém percebia bem o que estava a fazer, nem ninguém tinha muita coragem de a interrogar. Era uma estranha que ali tinha aterrado mas uma estranha que parecia não encaixar nem na oficina, nem na vila.
As mulheres ao princípio não gostaram da intrusão, não percebiam qual a ideia, temiam a concorrência, que lhes tirasse trabalho. E não se sentiam à vontade nas suas conversas em torno dos seus assuntos pessoais perante uma mulher tão diferente. Por vezes, quando falavam entre elas, quase em surdina, calhava Ana dirigir-lhes um sorriso de compreensão mas depois não se imiscuía na cumplicidade que era delas.
Não raro levantava-se e ia falar com o gerente. As outras mulheres ficavam desconfiadas, murmuravam especulações.
Mas, aos poucos os trabalhos, iam surgindo das mãos de Ana, belos bordados, coloridos, exuberantes. E, aos poucos, as outras mulheres iam-se aproximando, curiosas. Desconfiadas, discretamente espreitavam o avesso a ver se o trabalho estava bem acabado. Mas estava, sempre muito perfeito, limpo. E elas entreolhavam-se, pasmadas.
Os trabalhos de Ana começaram a ser expostos na loja mas foi ela que, em conjunto com o dono, escolheu o local - criaram uma espécie de recanto destacado do resto. E Ana desenhou uma variante da etiqueta, com um design mais cuidado. Marcou com um preço mais elevado que o das colegas, não queria fazer concorrência pelo preço. As colegas olhavam-na admiradas. O dono da loja parecia agora dedicar mais atenção a esta mulher estranha do que a elas. Mas se elas se sentiam enciumadas com isso, começavam também a sentir uma certa admiração por esta misteriosa mulher.
Comentavam entre si que, se ela usava aliança, é porque seria casada mas depois concluíam que, se fosse, não estaria ali a viver, com casa montada. Não percebiam. Um dia perguntaram-lhe como é que ela tinha ido ali parar. Ana respondeu apenas que estava farta de viver na cidade, farta de confusões, farta de situações complicadas, farta de aturar gente conflituosa, farta de perder horas no trânsito, que tinha resolvido mudar de vida, nada mais, e que estava tão farta de tudo isso que nem sequer queria falar mais no assunto. Mas, vendo o olhar desconfiado das outras, sorriu ligeiramente e acrescentou que estivessem descansados, que era uma mulher normal. E como se, assim, tivesse esclarecido tudo, voltou tranquilamente ao trabalho. As outras não tiveram coragem para insistir.
Ana parecia estar ali para trabalhar, apenas para trabalhar. Um dia, Ana convenceu o dono a fazer um blogue. Ele não percebia bem de que estava ela a falar mas Ana mostrou-lhe vários, louvando as vantagens do ponto de vista de imagem comercial e de vendas e, descansando-o, acrescentou: ‘Mal não faz...’. Ele encolheu os ombros, ainda pouco convencido, ‘Se não custa dinheiro e se mal não faz... então está bem...’, e deixou o assunto por conta dela.
Ana então, à noite, passou a entregar-se a isso. A versão base era em português mas criou também uma em inglês e outra em francês. De cada vez que escrevia um texto, publicava-o também nas outras línguas. De manhã, antes de ir para a oficina, ou à saída tirava fotografias na cidade e, durante o dia, tirava fotografias dos trabalhos das outras mulheres e dos seus e, com elas, ilustrava o blogue, não sem antes mostrar sempre ao dono para que ele autorizasse. Quando perguntou às mulheres se as podia fotografar para aparecerem na internet elas ficaram com medo, aquilo soava-lhes a coisa esquisita mas Ana esteve a mostrar-lhes e, no fim, umas disseram logo que sim, outras que iam perguntar à família. No fim, todas aceitaram e, entusiasmadas, passaram a vir todas arranjadas, uma festa.
Os contactos começaram a chegar, especialmente do estrangeiro e, apesar de mais caros, os bordados de Ana desapareciam rapidamente. Combinou, então, com o dono que iriam contratar mais uma mulher e que uma das outras passaria também a estar adstrita para a ajudar. Ana bordava ou desenhava os contornos e as outras ‘enchiam’ (ou seja, bordavam o interior).
Entretanto, quando houve a reunião da associação das indústrias de bordados locais, o dono da oficina pediu a Ana para o acompanhar e, aí, Ana mostrou aos participantes os seus bordados, o blogue, contou sobre a evolução das vendas, propôs que fizessem um site ou um blogue da associação com informação, imagens, contactos de cada uma das empresas e, como, reticentes, dissessem que não havia orçamento para gastos desse tipo, Ana propôs-se, ela, fazer o blogue. Para a ajudar, propôs que falassem com a Escola Secundária para ver de que forma os miúdos poderiam fazê-lo, orientados, em termos de conteúdos, por ela. A ideia foi aceite.
Foram, então, falar com a Direcção da Escola que aceitou muito bem o desafio. A dinamização da indústria e do comércio dos bordados locais passaria, pois, a ser também um projecto da escola, dos miúdos. Os conteúdos deveriam sempre ser colocados em português, francês, inglês e, se na escola, houvesse competências para tal, também noutras línguas e Ana referiu o castelhano, o mandarim, o russo. Seria uma forma de os miúdos também praticarem línguas e escrita, para além de os estimular do ponto de vista criativo.
Algum tempo depois, vendo o entusiamo dos jovens e dos professores, Ana lembrou-se de lhes propor um novo desafio. Depois de lhes mostrar os desenhos para utilizações tradicionais e os novos, de sua autoria, propôs que os miúdos da área pedagógica respectiva, apresentassem propostas de inovação quer a nível de desenhos, quer de aplicações sendo que por cada ideia que Ana e os responsáveis da associação aprovassem, o direito de utilização seria cedido a troco de oferta de livros aos miúdos e de um donativo para a escola e para a associação de estudantes.
Os miúdos andavam entusiasmados, fizeram visitas de estudo; Ana preparou, em conjunto com dois professores, uma apresentação aos miúdos sobre a evolução histórica da indústria de bordados, sobre indústrias análogas noutros países, sobre os possíveis mercados - e as ideias começaram a chegar.
Face à adesão, Ana, o dono da oficina, a associação e a escola resolveram fazer um concurso de ideias sendo que o prémio, a entregar em sessão solene, aos cinco alunos que tivessem as melhores ideias constaria de uma visita de cinco dias a Paris - e um passe para seis museus incluindo o Louvre, o Quai d’ Orsay e o Museu de Artes Decorativas, indo os miúdos acompanhados por dois professores - e ainda de um estágio em qualquer das empresas ligadas à Associação.
Os dias de Ana na nova pequena cidade (parece que, afinal, era vila) decorriam assim: sempre ocupada, sempre a fervilhar de ideias. Embora estivesse longe de ser uma pessoa alegre, aos poucos tinha deixado de ser a pessoa apática que chegara algum tempo atrás. Toda a gente a conhecia, toda a gente a cumprimentava com respeito e admiração. E Ana gostava cada vez mais de lá viver. Manteve a amizade com a modista, com o rapaz da loja das tintas, com o jardineiro, mas arranjou novos conhecimentos, gente muito disponível, muito interessada em fazer coisas novas, sobretudo gente muito afável.
Contudo, impreterivelmente todos os dias antes de jantar, Ana fazia telefonemas e, quase todos os fins de semana, saía da vila. Ia à sexta ao fim da tarde e apenas regressava na segunda de manhã. Ninguém sabia para onde ia, estranhamente ao fim de tanto tempo ainda ninguém sabia nada da vida de Ana.
Viam-na regressar com sacos pesados e interrogavam-se sobre o que seria, de onde vinha ela com aquilo.
Se lhe tivessem perguntado, Ana teria respondido com gosto que estava a rodear-se dos seus livros.
Já agora: caso queiram ler esta história 'de carreirinha' poderão ir aí ao lado, lá mais para baixo, e escolher nas etiquetas: 'Ana muda de vida'.
Uma nota: hoje há dois posts. Este e o de baixo que gostaria que vissem. Trata-se de um poema que a Leitora Era uma Vez escreveu ontem alusivo ao aniversário do seu tão amado filho e que repesquei dos comentários para o lugar de destaque que merece.
E, já agora também: hoje, lá no meu Ginjal e Lisboa, as minhas palavras voam em volta de um belo e sentido poema de Manuel Alegre, 'Saga'. Acompanha com o Toreador de Bizet. Lá vos espero.... se estiverem para isso, claro.
****
Já agora: caso queiram ler esta história 'de carreirinha' poderão ir aí ao lado, lá mais para baixo, e escolher nas etiquetas: 'Ana muda de vida'.
Uma nota: hoje há dois posts. Este e o de baixo que gostaria que vissem. Trata-se de um poema que a Leitora Era uma Vez escreveu ontem alusivo ao aniversário do seu tão amado filho e que repesquei dos comentários para o lugar de destaque que merece.
E, já agora também: hoje, lá no meu Ginjal e Lisboa, as minhas palavras voam em volta de um belo e sentido poema de Manuel Alegre, 'Saga'. Acompanha com o Toreador de Bizet. Lá vos espero.... se estiverem para isso, claro.
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E, por hoje, é isto. Tenham, meus Caros, uma bela quinta feira.
(Não sei se amanhã conseguirei escrever alguma coisa dado que tenho compromissos que me reterão fora até tarde; mas tentarei)
Cara UJM:
ResponderEliminarAna a empreendedora, que vai dar uma nova dinâmica à fábrica e à vila, sem competir com as colegas, e ao que parece perfeitamente integrada já a fazer parcerias com a escola.
Quanto dinamismo! E parece estar de bem com a vida (já estou toda baralhada imaginava-a diferente… mas ainda bem que não é) Mulher dinâmica e determinada, gosto de pessoas assim.
Gosto da Ana!
E que haja dias Felizes
Abraço da Leanor formosa e segura
Amiga:
ResponderEliminarA história da Ana, seria a história de muitas mulheres, se tivessem coragem. Nunca pensei mudar a minha vida. Por sorte, tenho a vida que sonhei. Sou feliz, assim. Claro, que tenho altos e baixos, momentos de angústia. Quem os não tem?
Mas, se um dia, tivesse tido uma vontade louca de mudar de vida, teria mudado. Admiro a Ana. Compreendo-a, apoio-a com toda a força. Mas tal como as colegas dos bordados, sinto-me curiosa. Algo acordou Ana. Algo mudou, que fez Ana mudar.
Palpita-me, que só o saberemos no fim.
Estou a falar de Ana, como de um ser vivo, não de um ser imaginário.
Ela já ganhou vida própria.
Que tudo lhe corra bem.
A dorzinha está melhor, mas ainda mói. Deve ser pedra a sair.
Amanhã, vou a Cascais de novo. Espero que o tempo esteja como hoje.
Abraço grande
Mary