Música, por favor
Música com sons da natureza
Tomás olhou para Ana, 'Deve estar a achar que isto está a parecer uma novela mexicana'. Ana sorriu. 'Que ideia... Não, Tomás, estou a ouvir com atenção e com curiosidade.'
'Não gosto de falar nisto, nunca falei. Mas mil vezes tive, dentro de mim, a conversa que estou aqui a ter. Mil vezes relatei, em silêncio, a conversa que um dia teria com alguém a quem explicaria o que se passou. Mas, apesar de mil vezes ensaiado, agora que estou a falar a sério, tudo me parece pouco credível, tudo me parece exagerado ou destituído de lógica.
Mas foram anos de cansaço, Ana, anos de trabalhar quase sem dormir, anos de querer sempre mais, mais clientes, mais horas, mais quadros, mais livros, mais carros, anos de muita pressão, ter relações no período fértil, exames médicos, frustrações, análises, mais exames, e as frustrações, as minhas, as dela, as depressões dela, as dores de cabeça dela, as indisposições e eu já não sabia se as indisposições eram físicas, se eram imaginadas, se eram fruto da depressão, tantos anos assim, tantos, eu sei que é difícil de perceber mas foram anos e anos, eu estava tão exausto, nem sabia quanto'. E passou as mãos pelo cabelo.
'Mas, dito assim, parece uma tragédia vulgar, não gosto de me ouvir a dizer isto. Uma perda é uma coisa má mas uma perda envolta em culpa é uma coisa péssima. É uma garra no nosso peito, é uma angústia que não nos deixa respirar, nem viver. Nem falar, Ana'. E olhou-a como se fosse incapaz de dizer mais uma palavra que fosse.
Ana levantou-se e foi sentar-se ao lado dele, 'Não conte, Tomás, não quero ouvir. Mas conte como foi parar à vila.'
Tomás deu-lhe a mão, 'Larguei tudo, tudo. Andei por aí, por onde calhava, andei até gastar o dinheiro todo, anos a andar por aí, em acções humanitárias, por aí. Até que, quando se acabou o dinheiro, comecei a trabalhar, também onde calhava. Uma vez estava numa serração, apareceu o dono da carpintaria da vila para escolher umas madeiras. Gostou da forma como eu pegava ou cortava na madeira, precisava de um ajudante, fui com ele. E foi ali, a trabalhar a madeira e a aprender com ele que reencontrei o amor que antes tinha pelo corpo humano. Os veios da madeira, descobri-los, o corpo da madeira, a forma de transformar aspereza em suavidade, a forma certa de cortar sem ferir, a forma certa de tratar sem traumatizar. Fui ficando. Ali também ninguém me conhecia e ali poderia, finalmente, estar em paz sem ter que andar de um lado para o outro. Depois, há uns dois ou três anos ele parou, reformou-se e vendeu-me a carpintaria. Foi só isso, nada demais, afinal.'
Ana, fez-lhe uma festa no cabelo e ficaram um bocado em silêncio. Depois ela disse, 'É tarde, ficamos por aqui. Vamos jantar e falar de coisas divertidas. Bom, bom, seria se encontrássemos um sítio para dançar.'
Tomás levantou-se, 'Dançar!? Tudo menos isso. Por muito que lhe queira agradar, isso é que não, peça outra coisa mas isso não. E, além disso, agora é a sua vez de falar'.
Ana hesitou, 'Tomás, peça outra coisa... mas isso não, hoje não... tenho que ver se invento uma história credível para lhe contar porque a minha história verdadeira é escabrosa demais'. Ele olhou-a, espantado. Ana riu-se, 'Não, escabrosa também não será, mas é maçadora, tenho que ver se invento alguns pormenores picantes'.
Jantaram no hotel e depois, antes de irem dormir, ficaram um bocado a combinar o percurso do dia seguinte.
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Freixo do Numão - a beleza pura da simplicidade |
De manhã foram até Numão, localidade encantadora onde passearam como turistas, vendo o castelinho, a vista do castelo, as casas. Uma mulher, ouvindo as vozes, veio espreitar à porta, depois recolheu-se. Passado um bocado, discretamente veio até à rua, devia querer ver bem aquele casal para depois poder reportar o evento. Ana deu o braço a Tomás e sorriu para ele, enternecida, até para a senhora poder acrescentar esse dado relevante.
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Contentor do lixo em Numão |
Tomás apontou a Ana o contentor do lixo. Ana fartou-se de rir e fotografou. 'Não colocar cinzas quentes', que coisa mais engraçada para se escrever num contentor do lixo. São as particularidades da vida na terra.
Dali partiram para Foz Côa.
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O Douro Superior avistado pela última vez em Foz Côa - uma imagem que não se apaga da memória
Os montes que se vão tornando azuis à medida que se escondem atrás de outros montes e um rio
que reflecte o céu e que desliza ante os nossos olhos assombrados |
Ana não conhecia o museu, ia céptica. Mas o cepticismo logo se esbateu. A vista era, como sempre, magnífica, com todo o esplendor que caracteriza toda esta zona.
E o edifício do museu é espectacular.
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Entrada do Museu do Côa
O céu que se vai estreitando à medida que entramos na terra, isto é, no belo edifício |
A entrada deixa logo antever que vamos entrar num espaço onde a luz entra por frinchas. E depois toda a organização do museu nos 'leva' aos espaços em que foram observadas as gravuras rupestres.
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Interior de uma sala do museu do Côa |
Avançamos por espaços pouco iluminados mas o suficiente para vermos o que nos é mostrado, os traços que alguém, muito antes de nós, nestes mesmos locais, vendo estas mesmas paisagens, e vivendo numa natureza fulgurantemente bela, foi desenhando nas rochas.
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Outro aspecto de outra sala do belíssimo (e moderno!) Museu do Côa |
O que vemos são réplicas, ou figuras iluminadas, ou peças descobertas, ou recriações de ambientes e há uma música suave que nos acompanha, sons da natureza, bichos, passos de gente nos rochedos ou de animais, pássaros, o vento na folhagem.
Ana andou feliz, descansada, o ambiente de museus deixa-a sempre assim, descontraída e bem disposta. Tudo ali a encantou.
Quando saíram, Ana deu a mão a Tomás, puxou por ele. 'Venha, vamos encontrar um recanto confortável, sossegado'. Abriu o saco que trazia ao ombro e mostrou-lhe pão, bolos, fruta, sumos. Tomás admirou-se: 'Mas de onde veio isto?'. Com ar gaiato, Ana confessou, '...Não diga nada... Trouxe do hotel, do pequeno almoço, bad, bad girl... vamos, vamos fazer um picnic'.
Se a música lá de cima ainda não acabou, por favor, parem-na, que a música agora é outra.
Damien Rice - I can´t take mey eyes off you
(Banda sonora do filme Clser)
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Pormenor da paisagem do Douro Superior, Douro Vinhateiro, Reino Maravilhoso |
Foi Tomás que descobriu o sítio ideal. Sentaram-se e, como se estivessem no ventre da terra, no meio do nada, ali estiveram comendo, rindo. Depois Ana, resoluta, avançou, 'Então, vá, vamos lá: agora eu!'
Tomás deu o mote: 'O que é que uma mulher como você tem a ver com aquele sujeito intragável que a foi visitar no outro dia... com flores?!'.
Ana riu, maliciosa, 'É intragável, é. Mas tem o seu lado tragável...'.
Como ele não se risse, ela continuou: 'Vá, agora a sério. Fomos colegas. Depois cada um seguiu o seu trajecto profissional mas a nossa amizade continuou. Sempre houve um ambiente de picardia entre nós e dali até haver uma chispazita era um ar. Uma adrenalina, uma atracção, nem sei bem dizer. Mas ele ultimamente está um convencido, um arrogante, um verdadeiro palerma, é verdade. A empresa onde ele estava, como sabe, foi comprada por chineses, eu na brincadeira até o trato por chinês. Sou amiga da mulher dele, não tem nada a ver. E gosto dele, apesar das parvoíces e vaidades. Em privado é divertido, é outro. Andou a querer divorciar-se, queria ficar comigo, uns dramas. Era escusado que eu nunca iria viver com ele mas, de qualquer maneira, a mulher também não aceitou o divórcio amigável e ele, com a exposição mediática que tem, nunca poderia ir para um litigioso. Continuámos amigos como antes, embora desde há algum tempo pouco nos encontremos'.
Ana estava com calor, tirou o casaco e apeteceu-lhe sentir a terra, tirou os sapatos. Continuou de olhos postos em Tomás: 'Mas, enfim, são coisas da vida. Mas o homem da minha vida não é ele. É outro, sempre foi. É o pai dos meus filhos.' Tomás abriu os olhos, com espanto. 'Sim, tenho filhos, Tomás.'
Tomás olhava-a, calado. Ana continuou: 'Que calor que se está a pôr. Não leve a mal, Tomás, mas vou tirar também a tshirt'. Despiu e ficou de calças e soutien. Tomás engoliu em seco, tentando não ser indiscreto, não ver os seios de Ana que eram bem visíveis com o soutien decotado.
Ana continuou sem conseguir tirar os olhos de Tomás: 'Mas o homem da minha vida, o ano passado recebeu um convite que achou que era irrecusável, ir arrancar com uma unidade no Brasil. Queria, naturalmente que eu fosse com ele. Claro que eu não ia, tenho cá a família, o trabalho, tudo. Depois meteu na cabeça que eu não queria ir por causa do 'chinês'. Nós, que antes sempre nos tínhamos dado tão bem, começámos a viver numa discussão permanente. Cenas de ciúmes permanentes, uma estupidez, queria que eu confessasse, cenas parvas, coisas pelas quais eu, nunca na minha vida!, quis passar, odeio ciúmes, odeio. Uma vez no meio da maior crise, farta das inquisições e ciumeiras, disse-lhe para se ir embora e para me deixar em paz, que eu, por muito que gostasse dele, não iria viver para longe dos meus filhos, nem dos meus pais e que fosse chatear outra e essas coisas que se dizem no calor das discussões. A verdade é que saíu porta fora e aceitou, finalmente, o convite. Depois arrependeu-se mas já era tarde demais. Furiosa, disse-lhe que escusava de me telefonar, que eu nunca mais queria pôr-lhe os olhos em cima. E, no dia em que ele embarcou, eu fiz o mesmo, saí de casa, avisei os meus filhos e os meus pais e fui parar à vila. Todos os dias lhes telefono e todos os fins de semana são sagrados mas a ele não, não lhe perdoo, e ele liga aos filhos, pede-lhes para eles me convencerem, uma chatice.'
Tomás olhava para o chão, inibido. Percebeu que Ana estava a despir as calças mas não levantou os olhos. 'Que bem que se está assim, Tomás, a sentir o sol na pele'. Tomás não disse nada.
Ana colocou-se bem na sua frente, assim, e continuou, olhando-o: 'Quis afastar-me, estava furiosa, furiosa comigo por ter esticado a corda até partir, furiosa com ele porque se foi embora, furiosa, triste, aborrecida. Uma vida inteira para acabar assim, estupidamente. Nem sei quem é que teve razão ou se alguém teve, nem isso me interessa. Tratei de tudo no trabalho para deixar de ter funções executivas, passei a tratar de tudo por mail ou por telefone ou em reuniões ao fim de semana. Era para ser um mês, dois meses, três meses. Mas comecei a arranjar a casa, comecei a interessar-me pela terra, por tudo e... pode alguém ser quem não é? Quando dei por mim já estava a dinamizar negócios, a motivar pessoas, enfim, aquilo que sempre fiz. E isto apesar de ter ido para lá para mudar de vida. De tal maneira que quando o dono da oficina me perguntou o meu nome, me saíu um nome que não o meu...'
Tomás olhou-a então de frente, como se sentisse enganado: 'Não?! Não se chama Ana? Então como é que se chama?"
Ela despiu então a última peça de roupa e assim, de frente para Tomás, deixando que ele a visse em toda a sua nudez, olhando-o nos olhos, respondeu: 'Eva'.
***
Para o caso de alguém querer ler esta história do princípio até ao fim, poderá procurar a etiqueta 'Ana muda de vida' aí ao lado, mais lá para baixo.
E, para o caso, de haver algum resistente que, depois desta longuíssima história, ainda lhe apetecer ler mais qualquer coisa, convido-vos a visitarem-me lá na minha outra casa, o
Ginjal e Lisboa, a love affair. Hoje as minhas palavras voam, mas hoje voam mesmo, em volta de um poema de Tatiana Faia. A música só poderia ser
Va, pensieri, sull'ali dorate e, claro, é Verdi.
***
Cansada de tanto escrever, desejo-vos uma bela terça feira.
E, se me permitem um conselho de ordem prática, não seria de jogarem o euromilhões? Parece que há um jackpot jeitoso que talvez venha a calhar para uns devaneios.
Seja como for, divirtam-se à grande, está bem?