Música,
por favor
Bernardo Sassetti - Da noite ao silêncio
Espaços abertos, desolados, uma imensidão desabitada. As
sombras se existem são abstractas, as cores, que existem, são irreais. E há silêncio,
muito silêncio, um estranho silêncio. Mas como descrever em palavras este
silêncio tão vazio?
Há casas mas estão também vazias ou, então, estão ocupadas por rostos de pedra, por esfinges amorfas de expressão sombria, vultos sem nome; e há monumentos mas foram deixados ao abandono, um abandono asséptico, e não há qualquer forma de vida, apenas manequins sem olhos, estátuas ocas – e silêncio, silêncio.
Se há figuras, elas não são humanas embora adoptem
posturas quase humanas. Mas, apesar de não terem feições, pela forma como
inclinam a cabeça, podemos imaginar-lhes a tristeza, a pesada solidão. Ou,
então, se as figuras são humanas, dir-se-iam pequenas figurinhas de
brincar com que as grandes e silenciosas estátuas se entretêm.
E aparecem figuras com as vísceras à mostra mas as
vísceras são afinal edifícios, esculturas, e se as figuras são femininas não
são crianças o que os seus braços irreais embalam, são pequenos seres embrulhados
(na verdade o que se vê é um pano que envolve qualquer coisa). Ou então, serão
talvez pequenos seres vivos que os manequins pariram e que agora não podem
amamentar, nem sabem o que fazer com eles e a inquietação quase nos invade.
E se há figuras que se abraçam, é, afinal, para partilharem estados de arte, uma arte em queda ou decomposição, não estados de alma.
A vida quedou-se nestes espaços de perdição, o que ficou
foi um território desumano onde o vento não existe, onde a chuva nunca cai,
onde o sol, se aparecer, será também sombrio, irreal.
Por vezes, nestas ruas que o tempo abandonou, vêem-se
silhuetas mas parecem ser apenas as sombras de pessoas que, em tempos, passaram
por ali, um homem passando, uma criança brincando. Dir-se-ia que as pessoas
desapareceram e deixaram para trás, perdidas, as suas sombras.
Estes espaços de solidão, de quase absurda desolação, são
os espaços que habitam a obra de De Chirico.
Claro que há os seus auto-retratos ou outras obras que
diferem deste atmosfera rarefeita. Mas a impressão geral que nos fica é esta e
foi, aliás, por estas obras que mais foi reconhecido.
Giorgio de Chirico, pintor italiano, nasceu na Grécia em
1888 filho de pais italianos. Viveu até 1978 em vários países (Grécia, Alemanha, França
mas, sobretudo, em Itália). Casou duas vezes e, em ambos os casos, com mulheres russas. Pintor integrado nos movimentos metafísicos,
surrealistas, pintor que subverte a razão de ser, Giorgio de Chirico é um dos pintores que vivem in heaven.
Cansei-me de tentar o teu segredo:
no
teu olhar sem cor, - frio escalpelo,
o meu olhar quebrei, a debatê-lo,
como
a onda na crista dum rochedo.
Segredo
dessa alma e meu degredo
e minha obsessão! Para bebê-lo
fui
teu lábio oscular, num pesadelo,
por
noites de pavor, cheio de medo.
E
o meu ósculo ardente, alucinado,
esfriou
sobre mármore correcto
desse
entreaberto lábio gelado:
desse
lábio de mármore, discreto,
severo
como um túmulo fechado,
sereno
como um pélago quieto.
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Giorgio de Chirico -
o trailer de um Documentário que deve ser bem interessante
o trailer de um Documentário que deve ser bem interessante
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O poema acima é Estátua de Camilo Pessanha in Clepsidra.
E, por poesia, convido-vos a virem até ao meu Ginjal e Lisboa, a love affair. Hoje as mihas palavras voam em volta de um amigo especial e é Emerenciano que regressa. A voz é de Jennifer Larmore para Rossini.]
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Tenham, meus Caros, uma bela quarta feira.
De preferência, sem sombra de inquietação, afastados da solidão, com sorrisos no vosso olhar!
Amiga,
ResponderEliminarGosto de Giorgio de Chirico. As figuras estranham-se, depois entranham-se. Fazem-nos buscar o significado, fazem-nos pensar.
O segundo quadro, fez-me olhá-lo muitos minutos. Primeiro, chocou-me, a pouco e pouco, absorveu-me, agora adorava tê-lo.
Quando amo uma coisa, sou como as crianças. Tenho necessidade de possuir o que gosto.
Gosto muito, de Camilo Pessanha e este poema é um dos meus favoritos.
Beijinho
Mary
Hoje escolheu um pintor muito inquietante. A leitura que faz dele é muito boa e realça a despersonalização e a solidão quieta e tão agressiva.
ResponderEliminarQuando ollho para estas figuras, estes manequins rígidos e frios, corro logo para Chagall, para os seus corpos fluidos, para o amor que tudo eleva e liga, embora a dor e a morte também não estejam ausentes.
Creio que De Chirico e Chagall constituem as bases de luas tendências do Surrealismo, uma mais onírica e feliz outra mais desolada. Gosto muito desta corrente estética, especialmente da via mais onírica; com ligação a Chagall, destaco Miró.
Gostei da segunda pintura.
ResponderEliminarA primeira impressão que nos fica destas telas é realmente um silêncio aflitivo, principalmente a terceira; e uma angustiante paragem do tempo.
Também gostei do poema.
Um abraço
Olá Mary!
ResponderEliminarChirico pintou mundos desumanizados, um mundo em que os humanos se terão auto-destruído, sendo, então substituído por estátuas, manequins, figuras silenciosas e solitárias.
Incomoda-me mas fico presa a olhar. Imagino o que ele pensava ao pintar ou imagino o que seria um mundo assim.
O poema reflecte bem a frialdade de uma figura quase humana.
Um beijinho, Mary-menina-que-gostava-de-ter-um-Chirico...! (eu também gosava de ter um...)
Olá Leitora de A Matéria dos Livros,
ResponderEliminarTenho a agradecer-lhe o ter-me já dado uma ideia para o que hoje vou escrever. Tem graça como associa estes dois que eu diria tão antagónicos. Gosto também muito de Chagall, muito mesmo. Chagall é um pintor cheio de cores 'mimosas' e pessoas e afectos, tudo o que Chirico enjeita nas suas pinturas.
Também gosto de Miró, um homem livre, que pintava o que lhe apetecia sem qualquer preconceito.
Obrigada pelas suas palavras (e pela ideia que já me deu).
Olá Isabel,
ResponderEliminarÉ isso mesmo o que também acho: desolação, paragem do tempo, silêncio. Uma pessoa 'normal' andando e sorrindo no meio daqueles ambientes ficaria deslocada, não é?
Um abraço Isabel e obrigada pelas suas palavras.
Para mim tudo o que seja despojado de vida vivida não me faz bater muito as pestanas. Mesmo em concreto, o caso das naturezas mortas, provocam-me melancolia.
ResponderEliminarQuanto a Chagall para mim é outro assunto. Sabe como o defino?
- Um décor de garridice...
Beijinhos
Olá Teresa-Teté,
ResponderEliminarEu também não gosto especialmente de naturezas mortas mas as de Chirico não são bem naturezas mortas, são espaços onde a vida se transformou em pedra ou em artifício, há figuras quase humanas, restos de humanidade, sombras. Uma coisa melancólica, sim.
Chagall é outra coisa, sim. Mas já lá vamos.
Agora tenho mesmo que falar de Chagall...
Um beijinho, Teresa-Teté!
as paisagens urbanas de de chirico são maravilhosas, não as sinto mortas e por alguma razão imagino que gostaria de lá estar, passear, passar lá uns dias.vejo ali calma, silencio, paz. mesmo com um dos habitantes detrás das grades, talvez andasse a aborrecer as 2 pessoas que conversam tranquilamente ou a menina que brinca com a bicicleta e o mandassem ficar em casa uns dias.
ResponderEliminarCaro Patrício,
ResponderEliminarPois é... é sempre isto que se passa com o que diz. São coisas inesperadas e que me fazem ver uma outra maneira de sentir os assuntos.
Tem graça isso que diz, o de gostar de se passear e 'estar' num local assim deserto de ruído, de agitação, talvez até de emoções.
Seria deslizar num local já limpo de qualquer tipo de poluição ou, melhor, de distracção.
Percebo o que diz.