Música, por favor
Melody Gardot - Baby, I'm a fool
Eva vagueia, pois, pela casa.
Gata selvagem, arquejante, os olhos verdes ardendo no escuro, inquietos. Então,
de repente, vai ao roupeiro, escolhe uma capa escura com capuz e sai.
Vai a pé.
Na noite da cidade, uma mulher
avança, então, na rua, sozinha, envolta numa capa escura. A rua está deserta e
Eva avança, sem medo, como se caminhasse no vazio.
Um pouco depois, mais à frente,
uns vultos avançam cambaleantes, depois o silêncio, depois há um outro que sai furtivo de uma
casa, depois, de novo, o silêncio, o vazio. Eva nada receia, caminha acima de si própria.
Passa pelo vasto jardim a esta
hora deserto, escuro, as grandes árvores negras fazendo fronteira com o céu, e
está frio, e está um vento húmido e cheira a maresia mas Eva avança sem nada
notar, Eva continua a caminhar longe de si mesma.
Um gato sai dos arbustos, corre, e logo um
outro; são negros, de olhos verdes, irmãos de Eva, e Eva não os estranha.
Um carro aproxima-se, abranda,
dir-se-ia que segue o rasto de Eva ou talvez apenas tente perceber que vulto é
aquele que ali vai, um vulto escuro quase invisível na noite escura. Eva não o
ouve ou, se ouve, não se vira, não acelera o passo, continua, indiferente, longínqua, dir-se-ia apenas um fantasma
percorrendo os frios caminhos da noite.
Avança, passo certo, mas, quem
a veja de frente, poderia até pensar que está imóvel, suspensa. Eva não pensa,
a mente vazia, o olhar fixo no escuro.
Chega então junto ao mar. O
carro continua a segui-la.
Eva aspira o ar frio, sente agora a
maresia no rosto, sente a liberdade dentro de si, abre os braços, dir-se-ia que
vai voar, um elegante pássaro negro preparando-se para voar sobre o mar.
Depois desce até à praia, o
areal negro, o mar batido e negro, o rugido do mar uma e outra vez, o céu negro
e Eva vestida de negro e, no entanto, é uma paz imensa o que Eva sente, que paz, que paz. Eva, um pássaro livre
na noite escura. Que paz, que silêncio
– e o rugido das ondas é absorvido pelo silêncio da noite silenciosa. E ali fica, contemplando o vazio, o mar escuro que se confunde com a noite escura, que se confunde com o negrume que a invadiu.
Depois, levanta o rosto para o céu e
sente, então, que está a chover e, sem surpresa, sente um cheiro familiar, um calor
íntimo tão familiar, um corpo que a aconchega e que é tão familiar, e um abraço que
a envolve e é tão familiar.
Com um chapéu de chuva aberto, Miguel ali está para a proteger.
Com um chapéu de chuva aberto, Miguel ali está para a proteger.
Sem palavras, Eva deixa que
Miguel a abrace. Depois Miguel pergunta-lhe e Eva percebe que ele está um pouco agastado: ‘Mas, então, que maluquice
é esta? Fartei-me de ligar e não atendeste. O que é que se passa, pode
saber-se? E vou a chegar a casa, preocupado, e vejo um vulto rua abaixo. Não
sabia se eras tu mas logo calculei que fosses. Uma maluquice destas só podias ser tu. Já
pensaste no perigo? Não te disse já tantas vezes para não andares por aí,
sozinha, de noite?’
Então Eva, lágrimas nos olhos, numa lamúria: ‘Miguel, não me ligaste o dia todo... '. Ele nem quer acreditar: 'O quê? Estás maluca? Mas o que é que combinámos?!'
Eva corrige, hesitante: 'Pois. Não é isso. É que sei lá se gostas mesmo de mim... Sei lá se isto não é só uma brincadeira para ti, sei lá...'
Miguel olha-a espantado: 'Passaste-te...?'
Eva corrige de novo e agora vai directamente ao assunto (embora ela própria, se quisesse ser completamente sincera, não saiba verdadeiramente qual é o assunto): 'Mas não é só por isso. É que se estamos tão bem assim, vamos casar-nos porquê?’
Eva corrige, hesitante: 'Pois. Não é isso. É que sei lá se gostas mesmo de mim... Sei lá se isto não é só uma brincadeira para ti, sei lá...'
Miguel olha-a espantado: 'Passaste-te...?'
Eva corrige de novo e agora vai directamente ao assunto (embora ela própria, se quisesse ser completamente sincera, não saiba verdadeiramente qual é o assunto): 'Mas não é só por isso. É que se estamos tão bem assim, vamos casar-nos porquê?’
No escuro, Miguel ajeita-lhe o cabelo que voa fora do capuz,
‘E porque não?’.
Eva insiste: ‘Dá-me uma boa
razão para o fazermos’.
Miguel abraça-a de novo: ‘Dá-me uma boa razão para não o fazermos’.
Miguel abraça-a de novo: ‘Dá-me uma boa razão para não o fazermos’.
Eva já ri: ’Gaita, Miguel.
Assim não chegamos a lado nenhum!'
‘Chegamos…chegamos...! Anda, vamos para o
carro, é um instantinho, já chegamos‘, e com o braço em volta dos ombros, Miguel leva a sua amada.
Quando chegam a casa, Eva continua: 'Agora a sério: vamos casar-nos para quê? Não percebo. Nunca quis. Porque haveria de querer agora?'
Miguel, tira-lhe a capa: 'Porque agora já és crescida'. E olha-a, com ar de censura: 'Mas que roupa é essa? Toda mal arranjada... Até pareces uma matrona mal jeitosa da tua querida Paula Rego... Fazes o favor de te ir pôr apresentável...?'
Eva sorri: 'Que desagradável... isso são lá coisas que se digam...? E isso é maneira de olhar para uma mulher...?'
Com ar malandreco, Miguel parece lembrar-se de uma coisa importante: 'Eh pá... Que lapso... e não é dos lapsos do outro totó...! Este é dos sérios... Então não é que não fizemos nenhuma despedida de solteiros?!'
Eva: 'Despedida de solteiro? ... Isso consiste exactamente em quê?'
Miguel: 'Comida, bebida e sexo'
Eva, rápida no gatilho: 'Alinho'. E já passando à acção: 'Podes ir preparando os comes e os bebes que eu hoje, com a neura, nem comi nada...? Vou-me, então, pôr apresentável e vou estar à tua espera ali na sala, pode ser...?'
Passado um bocado, quando Miguel chegou à sala com os mantimentos, a porta estava fechada. De lá vinha uma música envolvente.
Lentamente, Miguel abriu a porta. Eva estava nua.
Maliciosa, aquele seu meio sorriso, aquela sua falsa inocência de Marilyn, sussurrou: 'Pronto. Já me pus apresentável: já pus umas gotas de Chanel Nº5. Estou bem assim...?'
Quando chegam a casa, Eva continua: 'Agora a sério: vamos casar-nos para quê? Não percebo. Nunca quis. Porque haveria de querer agora?'
Miguel, tira-lhe a capa: 'Porque agora já és crescida'. E olha-a, com ar de censura: 'Mas que roupa é essa? Toda mal arranjada... Até pareces uma matrona mal jeitosa da tua querida Paula Rego... Fazes o favor de te ir pôr apresentável...?'
Eva sorri: 'Que desagradável... isso são lá coisas que se digam...? E isso é maneira de olhar para uma mulher...?'
Com ar malandreco, Miguel parece lembrar-se de uma coisa importante: 'Eh pá... Que lapso... e não é dos lapsos do outro totó...! Este é dos sérios... Então não é que não fizemos nenhuma despedida de solteiros?!'
Eva: 'Despedida de solteiro? ... Isso consiste exactamente em quê?'
Miguel: 'Comida, bebida e sexo'
Eva, rápida no gatilho: 'Alinho'. E já passando à acção: 'Podes ir preparando os comes e os bebes que eu hoje, com a neura, nem comi nada...? Vou-me, então, pôr apresentável e vou estar à tua espera ali na sala, pode ser...?'
Passado um bocado, quando Miguel chegou à sala com os mantimentos, a porta estava fechada. De lá vinha uma música envolvente.
Música, por favor
Melody Gardot - My one and only Thrill
Lentamente, Miguel abriu a porta. Eva estava nua.
Maliciosa, aquele seu meio sorriso, aquela sua falsa inocência de Marilyn, sussurrou: 'Pronto. Já me pus apresentável: já pus umas gotas de Chanel Nº5. Estou bem assim...?'
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Bom, não querendo estragar a festa, pergunto-vos se querem ir ali ao lado, ao Ginjal, dar uma espreitadela. O clima por lá não está tão animado, mas enfim. As palavras hoje voam em volta de Sophia e ao som de Berlioz, da Sinfonia Fantástica.
«»
E, por hoje, é isto. Tenham, Caríssimos, uma excelente quarta feira. E divirtam-se, está bem?
Jeitinnho amiga:
ResponderEliminarO que eu me diverti, o que estou a divertir-me, imaginando o resto da noite de Eva.
Será que ela casa mesmo?
Gostei da despedida de solteira: do principio, claro. O resto, só posso imaginar.
Cuidado Eva! Ele ainda não casou e já te está a comparar, com as mulheres da Paula Rêgo. Um ponto contra ele.
Já está a querer opinar demais.
Tens que começar já! a mostrar, que nada vai mudar e o casamento não fará dele, teu dono.
Olha que sei o que digo.
Beijinhos amiga
Mary
Cara UJM:
ResponderEliminarEva continua a surpreender-nos.
Passar uma noite sem dormir, por uma aparente decisão inócua. Mas o interior de cada uma é insondável e não tentemos sequer perscrutá-lo.
Recordará esta noite, como a única noite, a noite da insónia, a noite passada em branco. Porque não guardamos memória das noites dormidas.
E como eu a compreendo …, os deliciosos manjares não agradam só ao estômago, sossegam também o espírito e … que veneno delicioso!
Conhecendo bem o carácter de Eva, Miguel deixa que ela o seduza e, inebriado, confuso com a música, o corpo, o Chanel n.º 5, nem quer acreditar no que ouve sussurrado ao seu ouvido: não é na novidade, mas no hábito, que descobrimos os maiores prazeres.
Irá Miguel desistir da sua ideia?
E divirta-se
abraço da
Leanor formosa e segura
Grande Eva! Que grande texto! Bom...nua e com Chanel Nº 5, meu Deus , senhores!
ResponderEliminarDivertido. Ah, estou com Miguel, mulher que queira “destroçar” não pode ser parecida com as “feias musas” de Rego. Aquilo era receita para...: “vou ali e já venho” (para um nunca regressar!).
E Miguel o que preparou para comer? Aqui vai uma sugestão, Miguel, para uma Dama com uma personalidade tão fascinante, como Eva: Perdiz no forno, regada com Madeira, acompanhada de umas batatinhas assadas, em azeite e salsa, uns espargos verdes a acompanhar e, a anteceder, uma Vichyssoise. Tudo regado com um bom tinto do Alentejo (Quinta do Mouro), de onde abundam as perdizes. A acompanhar a dita sopinha, um branco leve, de Pinhel, por exemplo. Finalizando com uns morangos, com natas e Vinho do Porto. E voilá! Eva render-se-ia. Ah, e porque não, tudo isso ao som (baixo) de Julia Hulsman?
Bom apetite a ambos, Miguel e Eva! E...felicidades!
P.Rufino
Rufino:
ResponderEliminarPor essas e outras, é que a Eva não quer casar.
Repare: O menu é excelente, mas a Eva, não quer um cozinheiro. Além disso, todo esse requinte, levava horas a preparar.
Acha que a Eva ia adorar, estar horas, vestida de Chanel nº5, à espera?
Como os homens conhecem mal as Evas!
Maria
Mary, Espero que a esta hora já ex-fumadora,
ResponderEliminarAdoro os seus comentários e agora já me fartei de rir com o seu remoque ao Caríssimo P. Rufino. Tirou-me as palavras da boca e eu, quando lá chegar já lhe vou dizer o mesmo.
Sabe o que é que eu acho, querida Mary? Em vez de fazermos uma sociedade para fazer guiões vamos mas é formar uma escola para ensinar os homens a perceberem as mulheres...
Não é uma boa ideia? E o que a gente se haveria de divertir com o pouco que eles nos percebem...!
Quanto ao resto que diz, claro que concordo.
Um beijinho Mary e espero que também já esteja bem da gripe (ja deve estar porque já a sinto aí, ao rubro, toda fina)
Leanor, formosa, segura, e tão sedutora como Eva (não...?),
ResponderEliminarPois foi, aquilo foi mesmo uma pancada, uma típica coisa de 'gaja', um pico de hormonas, uma telha, uma carência de mimo, uma vontade de testar o homem, qualquer coisa assim. Tanta coisa que a gente não percebe. Às tantas quis apenas aumentar a emoção, levar as coisas aos limites, não sei.
Eu a esta hora ainda não sei, só consigo pensar quando estou a escrever - e aflita das costas como estou ou me vou deitar antes, ou escrevo pouco ou, então, só vai sair disparate. Não sei mesmo.
Um abraço, Leanor e tomara que hoje me consigam ocorrer segredos sussurrados ao ouvido (mas talvez que isto às vezes espevita à medida que a noite avança)
Caro P. Rufino,
ResponderEliminarA Mary já me tirou as palavras da boca...!
Mas então, oh meu Caro P. Rufino, se uma qualquer Eva, em noite de ansiedade, num pico emocional, lhe apetece ser socorrida pelo seu querido amante e se desafiam mutuamente para uma despedida de solteiro, imagina-a nua, na sala, pacientemente à espera que o seu amado cozinhe uma perdiz, se ponha a descascar batatinhas, a arranjar espargos, a escolher um vinho, e ela ali a gelar, a esforçar-se para se manter acordada, impaciente, e ele a preparar um banquete desses a meio da noite...?
Qual quê...! Nada disso. Nem sei se teria paciência para uma pizza congelada no forno. Seria uma coisa simples: umas tostas, um queijo, qualquer coisa, o que houvesse logo ali à mão. Está bem que ele se poderia esmerar para aparecer com um tabuleirinho bem arranjado mas mais do que isso já seria perder tempo.
De qualquer forma, vou-lhe contar: se não fosse para uma cena destas a meio da noite, na véspera do casório, mas, sim, organizar uma refeição boa, num almoço de domingo aí, meu Caro, que maravilha, que belo repasto, irrepreensível... E, para ser ainda melhor, se fizesse favor, deixaria ainda a cozinha limpinha.
Quanto ao início do seu comentário, deixe que lhe diga: a Eva é uma giraça, uma sedutora, e portanto todos os olhares (como o seu) lhe são devidos. Mas e se eu, que inventei Eva, for feia todos os dias, uma matrafona... já viu? Como me estarei a sentir ao ler o seu comentário enfadado para com as mulheres fisicamente pouco dotadas... Infeliz, certamente. Que insensibilidade a sua... (Será que os homens são mesmo todos assim?!)
Mas para a próxima, se me inspiração me der para isso, vou inventar uma mulher de pernas e pés e mãos feios, de cara feia, toda feia - e por quem os homens vão ficar caidinhos... vai ver...!
Por isso, meu Caro, hoje não consigo estar de acordo consigo. Mas, também, é normal, poderia alguém estar sempre de acordo com outra pessoa?
Amiga Jeitinho:
ResponderEliminarBastava a tacinha de morangos com chantilly e uma flute com Champanhe!
Vá descansar e vá ver as costas.
Por mail, conto-lhe a história dos cigarros.
Beijinhos e as melhoras
Mary
As mulheres "feias" não me incomodam. O que é uma mulher realmente feia? Existem? O que me incomoda é gente perversa, insensível, que tanto pode ser mulher, como homem (mais frequente em homens, convenhamos). Ocorreu-me a perdiz porque realmente "morro" por um petisco desses (um amigo, caçador, deu-me 6! Lá as depenei, pena a pena, queimei-lhes, ao de leve, a pele e depois entendi ser melhor convidar outros convivas e todos partilhámos o petisco. Gosto de partilhar coisas boas com os amigos). Isto do conceito de beleza é relativo. Por exemplo, do miradouro da aldeia duriense S.Salvador do Mundo, ali perto de S.João da Pesqueira, pode observar-se uma das mais espantososas e belíssimas vistas deste país. Um segredo bem guardado. Como tenho raízes (via paterna)ali perto,recomendo. Mas já houve um casal amigo, citadinos, que não se entusiasmaram (como não???). Viram e voltaram para o carro!!
ResponderEliminarVoltando a Eva, bom, vou esperar para ver. Mulher que é fogo- de personalidade!
Uma boa noite, que se faz tarde!
P.Rufino
Cara UJM:
ResponderEliminarDiz o ditado popular: “ da feia e formosa, a feia é a mais proveitosa”
Será para consolar as feias ou para desenganar as formosas?
Sedutora q.b. , mas muito imaginativa.
E tenha uma boa noite e rápidas melhoras
Leanor formosa e segura
Não leve muito a sério esta ofensiva feminina, P. Rufino...
ResponderEliminarSabe o que lhe digo? Tomáramos nós que nos tivesse convidado para um petisco desses... Perdizes com batatinhas, espargos, um tinto do Alentejo (os que prefiro)...? E nós sem termos que fazer nada, só passear, ver as vistas e, a seguir, um banquete... Acha que alguma de nós se fazia rogada...? Refilávamos por isto, aquilo e o outro, os machistas, os homens, re-béu-béu, pardais ao ninho mas, entretanto, íamo-nos regalando com o jantarinho, ora, ora.
Quanto a esse local, já me ensinou outra coisa. Thanks.
Leanor, segura, formosa e imaginativa,
ResponderEliminarGostei deste seu comentário: sobre as feias proveitosas e sobre a importância da imaginação.
Se for bela, sedutora e imaginativa, tanto melhor.
Mas se for feia, sedutora e imaginativa, a graça que terá...!
Tenho conhecido mulheres bonitas sem um pingo de sal e feias que deixam os homens de cabeça perdida. O importante é o 'mix'.