Já por três ou quatro vezes me cruzo com Hélia Correia. Ainda há dias almocei no mesmo restaurante que ela. Nessas alturas esforço-me para não ficar, feita saloia, a olhar, como os pacóvios olham as pessoas conhecidas.
Mas há nela qualquer coisa de avezinha pouco habituada a andar com os pés na terra, parece vogar, parece-me um pouco perdida (mas há um ser protector que a guia) - e fascina-me ver seres assim, meio gente, meio pássaro, especialmente quando sei que deles nascem palavras livres.
Hélia Correia tem (ou faz este ano) 63 anos e ao olhá-la parece-me ter ainda muito de menina, parece que fala a rir, nasceu em Lisboa, licenciou-se em Filologia Românica, foi professora, é poetisa, dramaturga, tradutora, ficcionista.
Tenho aqui comigo, acabado de sair em Fevereiro, 'A terceira miséria', livro de poesia da Relógio d'Água, grande livro.
Este é o primeiro poema:
Para quê, perguntou ele, para que servem
os poetas em tempo de indigência?
Dois séculos corridos sobre a hora
em que foi escrita esta meia linha,
não a hora do anjo, não: a hora
em que o luar, no monte emudecido,
fulgurou tão desesperadamente
que uma antiga substância, essa beleza
que podia tocar-se num recesso
da poeirenta estrada, no terror
das cadelas nocturnas, na contínua
perturbação, morada de alegria;
e eu leio e fico agarrada a estas palavras que me fazem lembrar Maria Gabriela Llansol ou Herberto, gente com o seu quê de rústico, gente cujas mãos que escrevem nascem das vísceras, ou cujas palavras nascem do ventre, não sei explicar bem.
E penso naquela mulher de andar vacilante, por vezes de chapéu, mala às costas como uma mochilinha, olhar e andar de pássaro. Às escondidas espreito-a e fico admirada de a ver sentada a uma mesa de restaurante. Mais facilmente a veria numa árvore, olhando o céu.
Hoje no Ginjal e Lisboa escolhi um algo estranho poema de Margarida Vale de Gato, o Mulher ao Mar (e, quem me lê, sabe o que eu aprecio coisas estranhas), sobre o qual, depois escrevi um texto que me deu muito prazer escrever. Gostava que lá fossem espreitar.
Mas foi ao transcrever o poema Mulher ao Mar que reparei que este livro, que também se chama Mulher ao Mar, um livro tocante como costumam ser os livros estranhos, também da Editora Mariposa Azual, contém, no final, um texto de Hélia Correia. Um texto magnífico, devo dizê-lo.
Se me permitem, vou transcrever uma parte e vou já avisando que os espíritos mais sensíveis devem precaver-se - é uma mulher livre que vai falar:
Surpreendentemente, o lugar em que o novo deveria encontrar um espaço propício para se impor foi ocupado, com grande alvoroço, pelo velho. Onde julgámos que podia haver sustentabilidade para o confronto, achamos uma artrose. Onde o suposto autor dispôs de um campo de edição infinito, desperdiçou-o para repetir, para imitar modelos falecidos. Assistimos, nos blogues, à subserviência, à poesia em vestidinhos de cambraia - a que os mais habilidosos põem rima, os menos põem uma prosa adolescente cortada aos bocadinhos, para fingir. Há evidentemente subversão na internet, uma gloriosa reescrita colectiva. Mas o assunto puramente criativo do indivíduo nem sequer estrebucha. Está deitado sobre a esterilidade realista e o fanado lirismo de janela. Pois tudo continua a ser a gasta, a vulgar linguagem. E os autores continuam a ser bem comportados e repetitivos, confundindo o seu pântano com o mar. Largaram o caderno e imaginam que assim se modernizam. Reproduzem, afinal, os encontros para o chá. (...)
O arcaico é intrinsecamente feminino. Tem essa força, essa multiplicidade de seios de grande deusa, a mãe mediterrânica, a mulher venerada, a matriarca. E a força do novo deve muito ao que ainda nos vem do subterrâneo, da humidade e da escuridão, daquilo que é redondo e que se deita. Não admira que em certas formas de vanguarda das artes haja mulheres, ainda quando tudo as empurra para trás. Que levem o quotidiano para o poema, que lhe intercalem certos palavrões. Ou que sejam abstractas na pintura. Isso não é, porém, o novo. É um atrevimento grupal, enquanto o novo é sempre singular. (...)
Na escrita, o novo pega na massa poética, assegurando que os ingredientes são os mesmos de sempre - a palavra, a prosódia, a rima, o lírico, a evocação e a invocação. Não pretende dar origem ao irreconhecível mas ao reconhecível que se estranha, à familiaridade estilhaçada. É a infiltração de uma desordem, de um descaramento. (...)
Apraz-me muito regressar, num texto novo, à palavra ainda não utilitária, ainda não serva, ainda não feita para passar mensagens. A uma palavra física, temível, que às vezes se atirava para matar. Nós já não praguejamos, já não tememos o malefício da palavra; vivemos, pois, imensamente aborrecidos. (...)
Grande texto. Dois livros cuja leitura me permito, pois, recomendar-vos.
<><><>
Aproveito para vos mostrar Hélia Correia falando do livro da sua vida, O Monte dos Vendavais de Emily Brontë. Interessante a forma estruturada e inteligente, muito apelativa, como ela apresenta o livro.
<><><>
E, para concluir, a Mísia cantando Senhora da Noite, um poema de Hélia Correia.
<><><>
Acabo com o último poema do novíssimo A Terceira Miséria
De que armas disporemos, senão destas
que estão dentro do corpo: o pensamento,
a ideia de polis, resgatada
de um grande abuso, uma noção de casa
e de hospitalidade e de barulho
atrás do qual vem o poema, atrás
do qual virá a colecção dos feitos
e defeitos humanos, um início.
(E não vos conto sobre o tema do livro para não estragar o efeito. Digo-vos apenas que é muito actual e que lê-lo é um enorme prazer. Abençoados os poetas.)
<><><>
Vamo-nos, pois, preparando para o início que um dia destes despontará por aí.
Até lá, meus Caros, desejo-vos uma boa terça feira.
há escritores que conhecemos bem de ver os seus livros nas livrarias, escritores com boas criticas e bom publico, escritores considerados entre os bons. helia correia é um deles mas nunca li nada dela. um romance adoecer despertou me a curiosidade, mas não me resolvi.
ResponderEliminaroutra escritor é rita ferro, resolvi me por fim a ler o seu e a menina quem é? não dei o tempo por perdido, umas memórias de infancia juventude e familiares divertidas e francas
talvez esta entrada me resolva a ler o adoecer de helia correia que desconhecia que tambem escrevia poesia.
e a proposito de poesia, estou curioso por um livro que vai sair com a poesia reunida de liberto cruz, são 55 anos de escrita poetica reunidos, uma vida.
h correia, então?
Cara UJM:
ResponderEliminarComo é motivante visitar este lugar!
De um simples e casual encontro com a escritora Hélia Correia, UJM faz uma motivante promoção à leitura não só da obra de Hélia Correia, uma grande criadora e com um universo singular, mas também à obra de Margarida Vale de Gato.
Hélia Correia fez-me recordar “O Número dos Vivos” romance de 81 onde a mulher, neste caso Maria Emília, ocupa o lugar de destaque na narrativa e o homem fica prisioneiro da sua ambição sabedoria e beleza.
Margarida Vale de Gato, que apenas conhecia de nome e de ter ouvido, algures, numa entrevista que o novo disco d’A Naifa, “ Não se deitam Comigo Corações Independentes” cresceu à volta da poesia de Margarida Vale de Gato.
Do muito pouco que conheço da obra de Hélia Correia e do que li pela espreitadela que dei ao Ginjal e Lisboa, mas que me aguçou o desejo, corroboro o que diz H.C., neste tempo em que ando imbuída do espírito de “Humilhação e Glória” de Helena de Vasconcelos, Não admira que em certas formas de vanguarda das artes haja mulheres, ainda quando tudo as empurra para trás.
Por fim, mas sempre muito boa a seleção musical!
Leanor pela verdura
Caro Patrício Branco,
ResponderEliminarHélia Correia, cuja poesia eu também não conhecia, tem neste livro uma escrita poética que me deixou verdadeiramente maravilhada. Aconselho, vai ver que vai gostar. E, lendo-o, verá a bela e inteligente narrativa que ali está. Não me apetece desvendar qual o tema subjacente, bem patente aliás logo na capa.
E gosto de a ouvir falar, é pessoa que não vai em superficialidades e que fala como se sorrisse.
Quanto a essa colectânea, pois já me deixou com a pulga atrás da orelha...
Há limpidez maior para nos aliviar da densidade depressiva destes dias pantanosos do que a que existe dentro da poesia?
Obrigada, Caro Patrício. Por aí já deve estar um verão a sério, não? Nada de chuva tal como por cá, não?
Cara Leonor pela verdura de livro debaixo do braço,
ResponderEliminarAinda não li esse livro da Helena de Vasconcelos. Com isto dos 2 blogues vejo o meu tempo de leitura tão reduzido...
E começo tardíssimo. São 10 e tal e ainda nem comecei, ainda estou a responder aos comentários. Às vezes tenho ideia de fazer tantas coisas, falar de pintores, de poetas, de coisas à toa ou recordações, ou inventar histórias, mas dá-me uma canseira tal que acabo por nem ter tempo.
Gosto imenso de saber coisas da vida de escritores, poetas, etc, gosto de ler entrevistas feitas com eles, correspondências, diários, gosto de perceber como pensam e como são as pessoas de cujas cabeças saem coisas diferentes.
Hélia Correia, como disse acima, surpreendeu-me com este livro de poesia 'A terceira miséria'. Parece uma criatura meio aérea, desligada, mas depois, quando fala e quando escreve, revela tal lucidez e tal acutilância...
A Margarida Vale de Gato tem uma poesia que também me agrada mas muito diferente da de Hélia Correia. A de Margarida é por vezes surreal e eu também me agrada esta escrita ou muito íntima, meia louca, ou meia ficcionada, livre.
Sobretudo gosto da escrita de pessoas livres.
E o texto de Hélia? Frontal, directo, lúcido. Uma mulher muito livre.
Eu gostava de ser assim. E gostava de ter mais tempo e não tenho.
Mas, enfim, ainda bem que agora não tenho, é porque tenho trabalho, sou abençoada. Um dia, daqui por uns anos, se tudo correr bem, logo tenho tempo para fazer o que gostaria de fazer, não é?
Obrigada pelas suas palavras (e sugestões de leitura).
Um abraço!
iritosuriteheCara UJM
ResponderEliminarGosto muito de Hélia Correia, a quem descobri quando escrevia na Máxima, que também a descobriu a ela e a premiou!
Tive foi dificuldade em perceber a forma como a entrevistadora pronuncia o nome Bronte( deveria ter um til, mas acabo de ver que o teclado iMac o eclipsou).iounic aseaAugna
Olá Helena,
ResponderEliminarVejo que também deve ter andado à bulha com aquelas palavras enervantes que o blogger inventou para pôr a nossa paciência à prova quando queremos deixar comentários. Eu já quase desisti de os escrever porque travo lutas horríveis e muitas vezes perco a paciência antes de conseguir. Digo isto porque aparecem umas palavras estranhas no princípio e no fim do seu comentário...
Brontë com trema no 'e' e creio que deve ser lido quase como um misto de 'e' e 'a' mudos. Creio...
Para além de uma boa escritora, a Hélia Correia também deve ser uma boa pessoa, não é? Deve ser uma pessoa pura, boa. Imagino-a assim.
A sua sorte, Helena, por conhecer directamente tanta gente interessante.
Espero que já esteja totalmente boa da sua saúde.
Um beijinho, Helena-Coração Independente.
Ó Jeitinho
ResponderEliminarDesta vez deu-me um ataque de riso ao ver os estranhos sinais que me antecedem e me finalizam.
Só pode ser o Relvas por eu não ter ficado na Moeda de Troika. Ou é o Passos que, à cautela, me vigia. Ou o Gaspar que julga que apoio o Álvaro. Ou o Google que entrou numa de extra prime.
Diga-me: foi só comigo ou já lhe aconteceu com mais alguém?
Helena, e eu também me fartei de rir porque ao ler aqueles caracteres fiquei ali a perceber se era uma palavra que tinha saído com as letras trocadas ou se era mesmo uma partidinha do Google. Concluí pela segunda hipótese.
ResponderEliminarJá aconteceu no outro dia a autora do blogue A matéria dos Livros que também escreveu um comentário com brinde.
Agora como é que palavras malucas que a gente escreve cá em baixo, numa caixa diferente da do comentário, se vão colar ao texto do comentário é que é um mistério...
E aquelas palavras em que agora esbarramos, às vezes aparecem de banda, metade tortas, metade pintadas de preto, letras esborratadas e coladas, uma coisa de fazer perder a paciência a um santo. Desespero.
Mas ouça, Helena,também pode ter razão, pode muito bem ser aviso da rapaziada do Relvas... Nunca se sabe...
E é isto Helena que eu tanto admiro em si: a graça que acha às coisas. É tão bom a gente achar graça a estas pequenas coisas e divertir-se e andar bem disposta. É meio caminho andado para se viver mais e se viver melhor.
Conservemos, pois, a vontade de rir!
Salvé, Helena!