Música, por favor
Maurice Ravel - Pavane pour une infante defunte
Hoje não vos falo de Eva. Ia contar-vos como, aos domingos, Eva mergulha no interior mais íntimo da terra, e, despojada, bicho da terra, animal inexpugnável, se recolhe como se rezasse ou como se revolvesse o solo, ou como se nem fosse gente, talvez pássaro, talvez lagarto, talvez flor ou, talvez, apenas um punhado de terra.
Mas a meio da tarde ouvi uma notícia que me tocou e deixou de me apetecer falar de Eva. Por isso, hoje vou contar-vos sobre um outro dia, há quase nove anos.
. § .
Estava um fim de tarde quente, agradável. Para se chegar lá passa-se por casas pequenas, muros, ruas e vielas, algumas um pouco íngremes.
É um local muito bonito, com uma vista desafogada, os jardins cuidadosamente planeados e mantidos. É um dos belos palácios portugueses, o Palácio Fronteira e um local que dignifica e incentiva a arte em Portugal (vidé a agenda cultural).
Parte do jardim do Palácio Fronteira |
Algumas pessoas circulavam por todo aquele elegante espaço. Gente das artes, essencialmente. Um agradável cocktail de fim de tarde; bebidas e apetitosos amuse-bouche eram servidos em bandejas que apareciam e desapareciam com eficiência e discrição.
Dom Fernando Mascarenhas, actual Marquês da Fronteira, o 12º, tinha encomendado a Paula Rego um painel de Azulejos para substituir o que se tinha perdido, um relativo ao Fogo e integrado no painel dos Quatro Elementos.
Lançava-se também o livro feito a esse propósito com ilustrações de Paula Rego e texto de António Tabucchi. Seres luminosos, ambos. Lá estavam.
Ele delicado, cortês, de uma quase desarmante simpatia, sorridente.
Ela etérea, divertida. Estava sentada numa cadeira de jardim e, às tantas, levantou-se, apalpou a saia, e ria-se com ar intrigado, 'está molhada mas eu acho que não fiz chichi'. Paula Rego, de olhar perscrutante e bem humorado, de uma simplicidade quase infantil.
Hoje fui buscar esse meu livrinho, objecto delicado, precioso.
Fogo em versão trilingue, português, italiano, inglês - Paula Rego e Antonio Tabucchi (Livro fotografado em cima de uma carpete de Arraiolos feita por mim) |
Escuso de vos dizer, meus amigos, que me sinto muito bem em lugares assim. A quietude, o vagar, as sombras que conferem intimidade aos espaços, a largueza de horizontes de jardins with a view, o som da água que tomba nos lagos, os cheiros que se misturam e que vêm das flores, das heras, dos fetos, das árvores e das mulheres perfumadas, as vozes baixas e reverentes, tudo isto me agrada mesmo muito.
Nesse fim de tarde havia ainda um resto de sol que iluminava Lisboa em baixo, até se perder de vista. E havia, também, portanto, aqueles maravilhosos recantos do jardim, onde azulejos, lagos, estátuas, flores, sombras, se encontram em perfeita harmonia, um ambiente de suave mistério ou, talvez, antes, uma leve e sofisticada magia.
E, por aqui, conversando, escritores, pintores, gente ligada a estes meios, gente silenciosa, discreta, vagamente sorridente, deambulavam com afecto e dignidade, num absoluto respeito pela natureza, pela arte, pelos outros.
E, por aqui, conversando, escritores, pintores, gente ligada a estes meios, gente silenciosa, discreta, vagamente sorridente, deambulavam com afecto e dignidade, num absoluto respeito pela natureza, pela arte, pelos outros.
Pedi que me autografasse o livro. Suave, sorridente, Antonio Tabucchi mostrou a sua bela caligrafia, escrevendo a dedicatória:
Fará nove anos daqui por pouco tempo: 'Para a ...., felicidades' , a bela assinatura e a data |
Pedi também a Paula Rego que assinasse o livrinho, um dia mostro-vos a sua caligrafia. Mas hoje, aqui, o espaço pertence ao gentil italiano, ao italiano da voz suave, da postura suave, ao italiano que tanto amava este nosso país.
Una notte indimenticabile - a história em italiano de Antonio Tabucchi e as imagens em fogo de Paula Rego |
Por dentro, o Palácio é muito belo, bem cuidado, e tem zonas de sombra e recato e tem grandes janelas por entra a luz e tem salas que se ligam a salas que se ligam a salas e tem o odor antigo dos locais em que a vida se detém com vagar. Mas, naquele dia, apenas entrei para cumprimentos porque o que se passava, passava-se cá fora, nos magníficos jardins.
'Os teus encantos não caem nunca, és como o mar que cresce às ondas, cresce do vento, mas da água nunca' palavras de Antonio Tabucchi no final do conto. |
Mas isto foi numa outra tarde, uma tarde quente como a deste domingo, uma tarde amena em que o sol se punha, dourando Lisboa.
Porque este domingo, justamente também em Lisboa, aos 68 anos, Antonio Tabucchi, o italiano suave que tanto amava esta cidade suave, viajou a caminho do seu nada de nada, a caminho de si próprio, ou dos seus sonhos, que não acabam nunca.
. § .
Hoje no Ginjal e Lisboa, a love affair dou início à semana dedicada a Mendelssohn e acompanho com Herberto Helder, um poeta que canta como ninguém a doce e inocente demência, coisa de que gosto de falar, como terão oportunidade de verificar. Convido-vos a irem até lá espreitar.
. § .
E tenham, meus Caros, uma boa semana.
Uma bonita homenagem.
ResponderEliminarTenho inveja desse livro. Quem me dera ter um igual.
Um abraço
Cruel a morte
ResponderEliminarLentamente
Vem cruel a morte
Em ondas de mar crescente…
Por vezes,
Entre paredões
De físicos e químicos
Brinca com avanços e recuos
Num marear definido
De quem tão bem
Conhece o certo destino…
Fraca a carne
Mesmo que forte o homem…
Évora, 2012-03-26
J. Rodrigues Dias
Qeurida Jeitinho:
ResponderEliminarAntonio Tabucchi, o Italiano que amou Portugal, como alguns portugueses não amam. A ele, em grande parte, se deve a divulgação noutros países, de Fernando Pessoa.
Nunca falei com ele, mas achava-o simpático. Paz à sua alma. A Obra, fica. Só conheço o Palácio Fronteira, por fora. Se o interior é tão belo como o exterior, deve ser um sonho.
De Paula Rêgo, prefiro não dar opinião. Diz-me pouco.
Hoje estou um pouco a correr. Como já lhe disse, tenho cá o neto.
Beijinhos
Mary, no papel de avó.
tempo para homenagear tabucchi lendo ou relendo os seus livros, talvez o nocturno indiano na excelente tradução de maria emilia marques mano, que foi sua assistente em pisa, na universidade;
ResponderEliminarou o requiem, belissimo livro, escrito directamente em português; ou o sustenta pereira, tambem em boa tradução do tradutor/pintor gaëtan lampö, se não erro; ou talvez algum livro dele que não se tenha lido ainda.
são interessantes os titulos que tabucchi deu aos seus livros: a gastrite de platão, a linha do horizonte, é cada vez mais tarde (para quê? não li), o tempo envelhece a correr, um baú cheio de gente, o de f pessoa, claro, etc
(tiro os títulos da wikypedia)
tabucchi era mais italiano ou mais português? era profundamente italiano, apaixonou se pela cultura portuguesa, casou com uma senhora portuguesa, naturalizou se português, morreu e ao que leio será sepultado em portugal.
Será que como o seu amado pessoa at tambem tem um baú cheio de coisas ou personagens, outros pereiras, damascenos e tristanos, que nos deixa?
Um belo trecho musical (Ravel) e umas belas palavras a proprósito de um grande Senhor (Tabucchi). Sobre Paula Rego...compreendo Maria.
ResponderEliminarE que belo tempo está, parece Verão! Há musicos e artistas que nos lembram o Verão. Ou a Primavera, ainda a começar.
P.Rufino
Cara UJM:
ResponderEliminarHá coincidências felizes, António Tabucchi, Paula Rego e a beleza dos jardins do Palácio de Fronteira. E uma bonita homenagem de UJM a um nome maior da literatura europeia.
É sempre com pesar que recebemos notícias de partidas e perdas. Agora, para homenagear Tabucchi, que se apaixonou por Pessoa, por Portugal e talvez pela luz de Lisboa, lembrança e o dever de ler.
Um abraço da
Leanor formosa e segura
Isabel,
ResponderEliminarObrigada.
Ontem quando ouvi a notícia fez.me muita impressão porque sempre achei uma ternura que uma pessoa de outro país gostasse tanto do nosso. E lembrei-me daquele maravilhoso fim de tarde, do sotaque dele, do sorriso.
O livrinho é muito bonito, uma edição fantástica, cuidada e, claro, para mim tem um valor especial porque tem logo a dedicatória de duas pessoas que muito admiro.
Enfim, as coisas são o que são, não é o que se costuma dizer?
Um abraço, Isabel.
Caríssimo J. Rodrigues Dias que vem com a sua alma de poeta e as suas precisas palavras para perfumar os espaços em momentos especiais,
ResponderEliminarMuito obrigada pelo seu testemunho que, aqui fica, sentido, melancólico.
Assim é a triste vida que se esvai, deixando cá, para trás, as palavras de quem as proferiu.
Continuará a marear, é certo, mas que pena que se vão indo tantos marinheiros, não é?
Mary, Big-Mamma Mary,
ResponderEliminarEspero que o pé e o joelho já estejam direitinhos e não doridos, espero que o cãozinho esteja bom e espero que tudo esteja certinho para que o neto esteja como um pequeno lorde, com as atenções todas disponíveis para ele, como merecem todos os queridos netos.
Aquela tarde, Mary, foi tão agradável, um ambiente tão agradável, eles uma simpatia, tudo tão afável e agradável, foi uma tarde que ficou gravada na minha memória.
Ontem lembrei-me logo daquele livrinho que é tão bonito.
(PS: Um dia ainda a vou convencer a ver a Paula Rego com outros olhos...)
Um beijinho, Mary e desfrute bem a presença do seu neto, encha-o de mimo que não há coisa melhor que os miminhos das avós.
Caro Patrício,
ResponderEliminarMuito lhe agradeço o incentivo que aqui deixa para que nos debrucemos sobre a obra deste italiano gentil que falava português com um acento doce e melodioso.
Ele amava Portugal, os portugueses, a língua portuguesa, os escritores portugueses - e era um fantástico conversador. Ainda hoje o ouvi na Antena 2, conversando com a Graça Morais. Dá gosto ouvir pessoas assim a conversarem, aprende-se sempre tanto, não é?
Era bom que tivesse muitos originais (um pelo menos sei que tem) e era engraçado que nos surpreendesse com personagens a saírem de uma qualquer arca, lá isso era...
P. Rufino,
ResponderEliminarGostos não se discutem, não se explicam, não se forçam - eu sei. Mas, tal como no caso da Mary, tenho pena que veja a obra de Paula Rego com um olhar tão diferente do meu. Eu acho-a tão fantástica. Mas, enfim, fazer o quê...?
Pois é, está o chamado 'calor de ananazes', tempo de verão, apetece pensar que já choveu.
E, com tempo assim, só me ocorre reggae e outras músicas para dançar na praia. (estou a brincar, claro...:))
Leanor, formosa e segura,
ResponderEliminarFelizes momentos sim, de facto, e a juntar ao feliz encontro de figuras luminosas num jardim luminoso, só mesmo aquela luz de fim de tarde quente, banhando Lisboa, banhando os jardins. E o ambiente... tudo aquilo mesmo inesquecível. Que pena que se tenha ido já, tão cedo.
Ficam, no entanto, as palavras. Por isso, para me despedir, em vez de palavras tristes me apeteceu usar as suas próprias palavras, escritas numa altura feliz.
Fica a sua obra, claro, e fica o nosso reconhecimento por ele ter dado tanto de si a Portugal.
Li de relance alguns comentários...
ResponderEliminarEu gosto da obra da Paula Rego, do pouco que conheço. É estranha, mas gosto. É forte, fala de realidades duras, não é?
Já estive duas vezes na Casa das Histórias e gostei imenso.
Tenha um bom dia
Isabel,
ResponderEliminarEu ao princípio não gostava da pintura dela. Agora acho o máximo.
Acho-a divertida, com um delicioso sentido de humor. Ela encena aquelas 'cenas' (passe a redundância), compra roupas, vestem-se para ela pintar e é a Lila, uma amiga, é uma filha, é o amigo e creio namorado, e todos se devem fartar de rir com as coisas que ela inventa. Depois há as obras temáticas que são fortes (como diz) como a série do aborto e que retrata a realidade dura do aborto clandestino.
É uma mulher de que gosto muito, como pintora e como pessoa.
Conhece a Paula Rego?
ResponderEliminarEstou a ficar cheia de inveja de quem é!
Brincadeira...
Mas a Pessoa Paula Rego, deve ser um encanto.
Não Isabel, infelizmente não. Ao vivo apenas estive com ela nessa tarde. Tenho é visto exposições, documentários, lido livros, etc.
ResponderEliminarTenho uma grande admiração por ela.
Somos duas a admirá-la...
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