quarta-feira, março 28, 2012

Eva compra mais uma empresa e dá um baile (por una cabeza, por supuesto)


Música, por favor


As Red Hiding Hood interpretam o tango Por una Cabeza




Ontem de tarde, depois de uma complicada recta final de horas de intermináveis e acesas discussões, pareceres contraditórios, a culminar um arrevesado processo que compreendeu uma due diligence cheia de surpresas, um project finance analisado na pior altura possível, avanços e recuos de toda a espécie, Eva fechou finalmente a compra de uma nova empresa. Um processo que se pretendia rápido, tinha acabado, afinal, por se prolongar por meses.


Com a sua determinação que não se desfoca nem por um segundo mas sabendo que uma transacção só é boa se for boa para todas as partes envolvidas, Eva garantiu protocolos vários, garantiu que não despediria ninguém, garantiu que iria expandir a fábrica, garantiu que iria dar formação a parte do pessoal, garantiu financiamentos, garantiu uma série de outros aspectos - garantiu, nomeadamente, que o negócio é atractivo e que o risco é contido e que, a verificar-se, será razoavelmente mitigado.

O que agora se segue será ainda complexo e Eva terá que pôr no terreno toda a estratégia que delineou para avançar com esta operação. Fá-lo-á já nos próximos dias pois não quer alimentar especulações ou angústias injustificadas por parte das pessoas que trabalham na empresa adquirida.

Contudo, ontem, ao fim do dia e antes de sair do escritório, já não tinha disposição ou cabeça para mais nada pelo que, a seguir, ligou para o galerista, perguntando se ainda daria tempo para se deslocar até lá para lhe mostrar o quadro de que lhe tinha falado. Este prontificou-se logo.

Todos os outros que com ela colaboraram nas negociações combinaram ir para os copos, jantarada, diversão. Ela não, tem pouca paciência para essas ruidosas comemorações. Estava feliz, sim - não apenas por ter concluído, e concluído bem, uma operação complexa mas, sobretudo, porque em vez de se tratar da venda de mais uma empresa a estrangeiros, tinha sido o inverso: uma empresa portuguesa a expandir-se, adquirindo uma empresa estrangeira - mas precisava de sossego, não de farra.

Passado pouco tempo já lá estava o galerista. Eva gostou. Era o que estava à espera, um típico Guilherme Parente (se é que é legítimo falar assim): colorido inocente, uma alegria simples, tudo aquilo de que ultimamente mais gosta de se rodear.

Guilherme Parente (Lisboa, 1940) - Não foi este que adquiriu mas foi um do mesmo género
Este: Técnica mista, 65x114 cm

O galerista é um homem simpático, culto, civilizado. Ficaram os dois à conversa durante um bom bocado. Era a forma de Eva se distender.

Quando estava para sair, a secretária assomou à porta do gabinete com ar um pouco amedontrado, quase com falta de ar. Que estava lá em baixo na recepção, em carne e osso, ‘o seu amigo de estimação’. Eva manteve a sua olímpica calma. ‘O próprio?’. A secretária mal falava: ‘Diz que sim’.

Eva riu-se. ‘Ele que suba; e leve-o aí para a sala do lado. Não precisa de o tratar mal. Pode perguntar-lhe se está com sede … e se ele disser que sim, diga-lhe que, para a próxima, beba antes de vir fazer visitas… [A secretária, enervada como estava, não achou graça nenhuma e Eva pareceu ir fazer-lhe a vontade]… ok, se ele disser que sim, vá buscar um copo de água ...e despeje-lho na cabecinha… Não? pronto, então deixe lá, dê-lhe à boquinha. E diga que, como não reservou hora, tem que ir ver se eu o posso atender. Diga-lhe assim, tal e qual’ e riu-se ainda mais ao ver o ar de censura da secretária. Sabia, obviamente que ela não iria dizer nada disto mas, enfim, só de dizer já Eva se divertia.

A seguir fez uma chamada, ‘Imagina tu, Miguel, quem é que me apareceu agora aqui, sem mais nem ontem…?’. Miguel disse qualquer coisa, ao que Eva se pasmou: ’Como é que adivinhaste…?! Eu acho uma coisa do além, um topete do caraças e tu achas natural...! Não é possível!’ e desligou, contrariada.

Mas foi contrariedade de pouca dura. Sentou-se. Abriu a gaveta de baixo da lateral da secretária, pousou os pés em cima do rebordo (já lhe doíam os pés, muitas horas em cima de tacõezinhos de agulha dão nisto: o rabo fica mais empinado, é certo, mas os pés, por amor da santa, os pés ao fim de muitas horas, quase não se aguentam) e assim, bem instalada, ligou aos filhos (todos os dias, haja o que houver, telefona a cada um para saber se está tudo bem). E, nessa altura, toda ela se desfazia em maternal doçura, o coração nos lábios, os olhos destilando mel - assim é Eva quando fala com os frutos do seu ventre.

Depois de um dia complicado, apenas aligeirado pelo oásis da hora de almoço, depois de falar com os filhos, eis que Eva estava agora verdadeiramente tranquila.

A secretária assomou de novo à porta, ar afobado. Sem dizer nada, com a cabeça fez sinal que o artista principal já estava instalado e mostrava preocupação por Eva não dar mostras de o ir atender. Eva riu-se: ‘E já lhe deu banhoca?’. A secretária, assustada, não fossem as paredes ter ouvidos, fechou logo a porta.

Eva viu as horas. Caraças, a uma hora destas é que este parvalhão me aparece! E sem aviso…! Que falta de educação!

Depois tirou o espelhinho da gaveta. Tirou o baton da carteira e retocou os lábios. O cabelo estava bem, tinha-o voltado a apanhar, e o ar despenteado fazia parte do look. A seguir foi à casa de banho, na calminha. Só depois, com vagar de pantera, é que abriu a porta e entrou na sala. O artista deu um salto, armado em cavalheiro. Fez gesto de quem ia, quiçá, ao beija mão, no que foi interrompido com gentileza (ainda me baba a mão, credo...!, pensou). Eva deu-lhe antes, por sua iniciativa, um vigoroso aperto de mão. Mandou-o sentar e sentou-se à cabeceira, afastada da mesa, pernas traçadas na sua direcção, mas absolutamente decentes. O outro engoliu em seco, tentou evitar a visão das pernas e concentrar-se nela, na cara - na cara, (não no decote).

Eva, disse então, com ar caridoso, como se estivesse a atender um pobrezinho que lhe tivesse aparecido à porta, ‘Então, diga lá… em que o posso ajudar…?’. Reparou que o artista engolia de novo em seco.

‘Fui informado do sucesso do negócio, queria vir cumprimentá-la, está de parabéns' e simulou um ar feliz como se o sucesso fosse também dele, ou como se solidarizasse na vitória. Eva fez-lhe uma negaça em pensamento mas sorriu: ‘Ah, muito obrigada. Mas tenho que admitir: foi sobretudo uma vitória do governo, não lhe parece…?’. Ele fez um sorrisinho amarelo, era seguramente o que lhe convinha, mas não ousava admiti-lo, nunca se sabe que reacção a fera teria, já estava a perceber-lhe uma indisfarçada ironia na voz e no ar. Fez-se, então, de inocente e, com prudência, galanteou :  'Ah, não, o governo não teve nada a ver com isso, o mérito é todo seu’.

E, então, colocou a mãozinha, certamente transpirada, em concha, sobre o pescoço.

Eva sentiu-se quase ofendida, e pensou: ‘Então mas não é que este sujeito é completamente parvo…?! Como se eu não estivesse fartinha de saber…?! Está cá com uma sorte…!’ mas sorriu, inocente, como se não tivesse percebido o sinal, ‘Está a sentir-se mal…? Desaperte a camisa’.

O sujeito ficou seriamente atrapalhado, o porte sereno de Eva desarmava-o, as reacções sempre imprevistas ainda mais: ‘Não, estou bem, é este calor’. Eva deu uma gargalhada: ‘E ainda dizem que as mulheres é que sofrem horrores com os afrontamentos da menopausa… Aqui está fresco, não está calor nenhum. É o seu termostato, meu Caro, é o seu termostato, isto quando se passa dos cinquentas é o diabo...’

Ele, inibido e sem lhe ocorrer resposta a um dislate deste calibre, olhou para os pés, já sem saber que rumo dar à conversa. Eva seguiu-lhe o olhar e, ostensivamente, como se estivesse intrigada, pôs-se também a olhar para os pés dele, o que o deixou ainda mais atrapalhado.

E sorrindo, com ar de quem faz a observação mais banal deste mundo depois de lhe observar os pés: ‘Aqui está fresco mas lá fora está quente, parece que estamos no verão, sabe, já não está tempo para esses seus sapatos de inverno…’. E ele já quase escondia os pés debaixo da cadeira. E, num ápice, passou a mão na testa, suava que não era brincadeira nenhuma.

Eva, prosseguiu. ‘Mas, então, meu Caro, ao que vem? Conte-me, então’.

Ele, completamente sem jeito, os pés enrolados para baixo da cadeira, limpando disfarçadamente as mãos nas pernas, ‘Vinha mesmo só para lhe dar os parabéns’. E Eva, já só a querer folia: ‘Ah, que querido! Tão simpático! Obrigada. É amoroso da sua parte…’ e sorriu, fingindo uma afectação de tia, coisa que, de facto, estava longe de ter. 'E mais nada...?', insistiu. E ele, que não, que era mesmo só isso.

Eva, então, dando a conversa por terminada, levantou-se, fez o gesto de o acompanhar à porta e ele, obedientemente, lá foi.

Quando estava já quase a despedir-se, Eva falou como se lhe tivesse ocorrido: ’ …Ah, olhe, daqui por algum tempo, quando você estiver disponível das suas actuais funções…’ ele sorriu, agradecido - depois de tudo, não estava agora à espera deste agrado - e Eva continuou, ‘e quando eu tiver necessidade de ter alguém experiente e de confiança…’ e ele sorria, venerando e obrigado, e ela concluía: ‘vou ver se arranjo alguém que seja o seu oposto…’ e deu uma gargalhada. Ele ficou sério, sentiu-se gozado.

Eva deu-lhe uma palmadinha no braço, e com ar maroto, fingido: ‘Estava a brincar…’ e ele fez um sorrisinho completamente amarelo-limão, já azedo, completamente arrependido de lá ter ido.

Quando já ia a caminho do elevedor, Eva ainda se lhe dirigiu, ‘Anda com má cara. Acho-o caído… Veja lá… Ou então é o fato que não lhe assenta bem, sei lá… há qualquer coisa em si, não sei…’ 


Quando ele se enfiou no elevador, Eva olhou a sua secretária, amiga de longa data, e viu que ela estava completamente mortificada. Com ar traquinas, Eva entrou no gabinete, e, fechando os olhos, riu-se de gosto, divertida. Grande dia.

A seguir foi apanhar a carteira e as chaves do carro, avançando em passo de dança. Parecia dançar o tango com um parceiro imaginado. Sensual, vitoriosa, toda ela requebros e sorrisos. Não se sabe em quem estaria a pensar mas concluíu, provocadora: 'Me aguarde...'.

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Como hoje não há poesia por aqui, convido-vos a irem ver uma lírica especial ali para os lados do meu Ginjal e Lisboa, a love affair. É Fernando Assis Pacheco e a su'A Musa Irregular. Esta semana, claro, tudo acompanha com a grande música de Mendelssohn.

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E tenham, meus Caros, uma bela quarta-feira!

4 comentários:

  1. Cara UJM:
    Gostei desta Eva, que todos os dias telefona aos filhos, profunda e carinhosamente maternal.
    Eva, cada vez mais surpreendente! Cruel e sarcástica, quando lhe invadem o território lança centelhas pelos poros.
    O amigo compreendeu que aquela mulher não era um joguete, nem estúpida como imaginou. Acreditara que entrava por ali dentro e encontrava à sua disposição um passatempo para afastar o tédio da sua vida folgada. Acreditara que encontrava uma mulher felina que faria explodir a chama do coração, mas surpresa … ! encontrou um coração de toucinho daqueles que só derramam sebo … e subitamente as contrações no estômago ameaçaram o vómito e, vexado, corado saiu desabridamente.
    E na placidez da noite, do lado de lá da linha uma voz meiga: “ Houve crueldade a mais… a mulher que gosta de poesia devia ser mais generosa, porque a missão do poeta é a indulgência”
    E Eva respondeu: “Tenho um decote pousado no vestido e não sei se voltas,
    mas as palavras estão prontas sobre os lábios como
    segredos imperfeitos ou gomos de água guardados para o verão.”
    (…) Maria do Rosário Pedreira

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  2. Caro(a) Anónimo(a),

    Gostei do poema da Maria do Rosário Pedreira. Aplica-se perfeitamente a Eva.

    Percebo a observação de crueldade. Assim é, de facto, Eva. Mas é mais forte que ela.

    Aquela figura que a foi visitar é, penso eu, a mesma que Eva encontrou na recepção, no outro dia, é alguém que se move onde se move o dinheiro.

    E talvez não saiba o significado do gesto que ele fez, o da mão em concha sobre o pescoço. É um gesto de identificação maçónica. Eva fingiu não o perceber porque lhe custa admitir que o outro, que ela acha abaixo dos mínimos, também o seja.

    Assim é a vida múltipla de Eva.

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  3. Cara UJM:
    Só agora li o seu comentário e agradeço a explicação sobre "o significado do gesto..." que desconhecia de todo. Tanta coisa se aprende por aqui.

    Abraço da
    Leanor formosa e (in)segura

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  4. Pois, Leanor, calculei que fosse mas não quis ousar designá-la não fosse o 'anonimato' ser intencional.

    E calculei que não conhecesse o significado do gesto e até penso que, provavelmente poucas pessoas conhecem e, por isso, provavelmente a maioria das pessoas que leram, não deve ter percebido bem o sentido da coisa. Mas não quis ser mais explícita. (Os 'irmãos' prezam muito a reserva, evitam ser explícitos...)

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