Estive ocupada todo o dia, sem receber telefonemas. À
hora de almoço vi que tinha, entre as chamadas não atendidas, duas da minha
amiga, duas do marido. Contudo não deu para ligar de volta.
Apenas ao fim da tarde pude devolver algumas e comecei
por ela – estava cheia de curiosidade, eu. Esta minha brincadeira tem perigos
vários e nem toda a gente tem estômago para digerir a gracinha.
Música, por favor
Para Elisa - Beethoven
Mas ela continuava no mesmo registo, solta, inocente, ‘então ontem gostaste do sítio. É giro, não é?’. E eu pensei cá para mim, ‘mas querem lá ver que agora deu em pomba-lesa..? Então, depois do que eu relatei, aquilo a que ela prestou mais atenção foi à descrição do local…? Mamma mia…!’.
Mas entrei no registo, ‘há quanto tempo está aquilo ali, que eu nunca tinha ouvido falar?’, que ‘está muito agradável’, que ‘as bolachinhas com sementes estavam uma delícia’, 'as de gengibre também, tens razão', que ‘o chá era muito bom’, que ‘nunca tinha experimentado aquela mistura’ (lembro-me lá eu que chá é que bebi!) e ‘quem são as donas daquilo?’, e contou-me que eu as conheço (e eu sei lá de quem é que ela estava a falar!) mas, enfim, converseta simpática de fim de tarde. Até que, finalmente, a voz fica outra, quase adolescente, e me diz ‘O que achaste dele? Já sei que achas giro, que achas que cheira bem, que achas que é um sedutor, que achas que a voz é boa para dizer poesia, já li isso tudo… mas, de resto, conta lá…’.
Fiz uma pausa, respirei, o que havia eu de dizer? Mas,
enfim, ‘olha, não tinha esta ideia dele, costumo vê-lo na televisão a
invectivar o capitalismo selvagem, a apresentar propostas num tom sempre super
engagé, não me passaria pela cabeça que afinal houvesse ali uma alma de poeta,
sei lá, olha, fiquei muito admirada, que queres que te diga…?’. E ela: ‘Pois,
já viste, quem vê caras não vê corações, não é? Ao princípio também fiquei
admiradíssima. Um espanto. E tenho aprendido imenso com ele, tem uma cultura
fantástica, e tem-me incentivado como tu nem imaginas’ e a voz era de devoção.
‘Incentivado como?’, perguntei, ‘incentivado a fazer o
quê?’
‘Mas, olha, é que nem ias acreditar!’ e riu. Depois, sem
pausa, mudando de assunto: 'Não pode com o meu marido; aliás, quando se refere a
ele é o vendido do teu marido, o chinês, o botões de punho. Farto-me de rir’ e
eu outra vez sem saber o que dizer. Do outro lado, ela ria. Quando eu ia
começar a tentar perceber ‘…mas olha lá, afinal…’, interrompeu-me, ‘olha,
linda, vou ter que desligar… adivinha quem me está a ligar…?’
Beijinho, beijinho.
A meio do telefonema tinha-me levantado e tinha falado a
olhar pela janela. Quando a chamada acabou, deixei-me cair na cadeira. ‘What
the hell…!?’, interroguei-me.
Bebi água, respirei, olhei lá para fora e liguei então para o chinês (esta é boa…!)
Muito seco: ’Sim, diz’ e eu ‘digo nada. Estou apenas a
responder às tuas chamadas’.
Como se acordasse, ouvi-o a respirar fundo, pausa, pausa,
como se estivesse a ganhar fôlego, e então ouvi-o a cantar:
A Nau Catrineta - Fausto
[‘Lá vem a nau Catrineta/ que tem muito que contar/ouvide,
agora, Senhores/ uma história de pasmar. Passava mais de ano e dia/ que iam na
volta do mar/ Já não tinham que comer / já não tinham que manjar’ (...)]
Desatei-me a rir: ‘Engraçadinho..! Fausto? Almeida
Garrett? Mas que bem...’ e ele a rir também: ‘Já que ficaste derretida com o diseur... eu
faço ainda melhor, até canto…! Mas olha lá, por falar em não ter que papar,
então ontem foste conhecer a bicha?’
‘O quê?!’, quase gritei.
‘Ouviste bem. Queres ver que não percebeste…, a bicha, a grande amiga da minha mulher. Andam sempre as duas a fazer programinhas juntas, ele é leituras de poesia, ele é concertos de fim de tarde, ele é bailados, acho que a bicha gosta muito de ballet, já para não falar nas longas conversas ao telefone às tantas da noite…, nem sei até se não vão ao cabeleireiro juntas…’
‘Ouviste bem. Queres ver que não percebeste…, a bicha, a grande amiga da minha mulher. Andam sempre as duas a fazer programinhas juntas, ele é leituras de poesia, ele é concertos de fim de tarde, ele é bailados, acho que a bicha gosta muito de ballet, já para não falar nas longas conversas ao telefone às tantas da noite…, nem sei até se não vão ao cabeleireiro juntas…’
‘Estás parvo. Só pode. Bicha?! Não estás bom da cabeça’,
respondi-lhe.
Conheço-lhes os tiques. Para começar, dão-nos sempre uma
espreitadela corpinho abaixo, não com ar de quem está interessado mas para
verem o que a gente traz vestido. Bicha?! Nem pensar.
Mas ele ria-se, ‘Estou a dizer: bicha, bicha. Aliás, aquilo lá está cheio delas.’
Mas ele ria-se, ‘Estou a dizer: bicha, bicha. Aliás, aquilo lá está cheio delas.’
‘Aquilo lá…?!
De que é que estás a falar?, eu sem perceber.
‘Sim, mais do que uma organização política aquilo lá é o
braço esquerdo da ILGA, ou da LGBT ou lá como eles chamam àquilo, elas umas
sapatonas, eles uma bicheza, intelectuais, reivindicativas, azedas.’
‘Estás parvo, credo. Conservador, preconceituoso, que
horror, cada vez estás pior, agora até homofóbico, que coisa...!’, e rematei: ‘Nem sei como é que a tua mulher ainda tem
paciência para te aturar’.
Riu-se: ‘Nem eu. E, olha, tomara que não...’
‘Não percebi. Tomara que não o quê?’, perguntei-lhe. Esta
gente tem o condão de falar por meias palavras, que chatos.
Mas já ele mudava de conversa: ‘Olha, ontem tive um
jantar e depois os tipos não quiseram ir logo para o hotel, quiseram dar uma
volta a pé. Entrámos numa livraria e vi um livro de que vais gostar. Amanhã ou depois passo por tua casa para o deixar. Pode ser?’
‘Podes. O que é?’
‘Nada de mais, logo vês’. E depois, voz sisuda: 'Escuta. Esta conversa não pode, obviamente, ser reproduzida. Estás a ouvir? Senão ainda me aparece aqui, na companhia, a bicha a desafiar para um duelo. Ouviste? Estou a falar a sério. Acho que já chega de te armares em menina má. Desta vez, por favor, não o faças, estás a ouvir? Mas olha, se te queres meter com as duas, põe lá um clip com aqueles gajos que dançam ballet vestidos de mulheres.'
Beijinho, beijinho. Fim de chamada.
E eu fiquei ali a rebobinar o filme de ontem e de todas
as vezes que vi o caviar gauche na televisão. Bicha?
No way. Deve ter sido ela que inventou esta para o despistar.
Só pode.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
E, portanto, para te fazer a vontade, meu amigo, aqui deixo a oferta, em teu nome, para a tua mulher e para o sedutor e interessante diseur (qual bicha, qual carapuça!)
Lago dos Cisnes - Les Ballets du Trockadero
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(E, já sabem, estas peripécias encontram-se arrumadas no separador 'Folhetim' que, caso queiram ler de seguida, poderão seleccionar aí ao lado à direita, lá para baixo)
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Tenham, meus Caros, um belo sábado. E divirtam-se, está bem?
Há sempre uma justificação, uma desculpa... , para a "boa consciência", ou para manter as aparências ... neste caso será a da sua amiga ou a do marido?
ResponderEliminarJeitinho Manso:
ResponderEliminarMeu pai dizia uma velha história que, cada vez é mais actual: "Que a minha mulher não me engane. Se me enganar, que eu não saiba. Se eu souber, que não me rale". Esta de o marido chamar Bicha, ao outro, cheira-me a: "Não me rale". Por outro lado, também a mulher ter inventado a história da "Bicha", para manter o marido na santa ignorância. Depois de ver o "Pas de quatre" do Lago dos Cisnes, lembrei-me da advogada.
Ai meu Deus que confusão na minha cabeça! Confusão? Hipócrita, é que eu estou a ser. A história está a ficar clara. "Pas-de-Quatre", claro.
Beijinhos
Maria
O folhetim está mesmo a tornar-se empolgante! (Já receava que tudo se resumisse a um simples "affair"...)
ResponderEliminarCaro(a) Anónimo(a),
ResponderEliminarTem razão, todos nós tentamos sempre encontrar uma justificação que nos ilibe dos 'maus' motivos que nos levam a fazer (ou a não fazer) as coisas.
Não sei se é a mesma pessoa que ontem se referiu ao amigo da minha amiga como o 'diseur'. Se foi, quero agradecer-lhe e, como terá visto, usei a expressão no texto.
De facto, assenta-lhe como uma luva: quer quando se exprime na política dirigindo-se às massas ou à comunicação social, quer em privado, dizendo poesia, ele 'diz' muito bem.
Obrigada, volte sempre.
Olá Mary,
ResponderEliminarPois, sábia a história que o seu pai dizia.
Quanto a isto que vou sabendo deste casal meu amigo, que eu julgava que conhecia tão bem, se quer que lhe diga, ainda não percebo bem o que se passa ou, sequer, se se passa alguma coisa; mas o grande executivo, tão racional e tão frio, não é tão frio assim, a mulher que me parecia tão dócil e conservadora, afinal parece que tem vida própria.
Vamos ver, também estou curiosa.
Beijinhos, Mary!
Ele e a advogada? A mulher e o esquerdista? Não sei de nada, estou a ver se consigo perceber
Olá Leitora de A Matéria dos Livros!
ResponderEliminarA cada dia que passa também eu fico mais curiosa com o que vou descobrir. Às tantas não descubro nada - porque todas as pessoas têm faces menos visíveis e isso não é nada de especial.
Mas que me ando a divertir lá isso ando... Tomara que descubra alguma coisa de imprevisto porque se fosse apenas um executivo a ter um affair com uma advogada, não tinha grande graça (a menos que o dito executivo fosse um homem super conhecido e, no meio da paixão, desatasse a fazer coisas malucas - mas acho que não é o caso...)
Bom domingo, Leitora!
Cara Jeitinho Manso,
ResponderEliminarPois é. Se não chover brevemente ficaremos todos assim.
Andam particulas toxicas no ar e a mutação é certa.
E, a cada um sua particula.
A sua amiga abandonou a crisalida e saiu por aí voando entontecida por uma luz diferente, vivendo uma nova vida, qual borboleta exótica
O marido complacente agradece a conveniente companhia do diseur, que o deixa livre.
A advogada(será?) apanhou com uma particula das mais pesadas e está um pouco confusa.
Mas a particula que atingiu o gauche caviar é das mais perigosas, gruda e suga e se não chover brevemente este concerto a quatro maos vai desafinar.
E nós vamos aguardar com curiosidade.
Boa noite e boas inspirações.
Pois é, Caríssima Pôr do Sol,
ResponderEliminarNão chove, parece que estamos na primavera, os espíritos soltam-se e cada um vai vivendo a sua vida à medida do que pode, do que sabe, do que consegue.
Ainda não consegui perceber o que há entre ele e a advogada, bem como também ainda não percebi se a minha amiga é uma pessoa que vive num limbo incerto, tendo que aparecer socialmente, sorridente e, por outro lado, sentindo m vazio na sua vida; e também agora fiquei baralhada com o diseur, uma estampa de homem, com uma bela voz, culto e bem vestido, não percebi se há ali romance ou apenas uma amizade cosmopolita.
Não sei mesmo.
Mas, à medida que for sabendo, vou contando. Esta brincadeira (arriscada) dá-me gozo.
Obrigada, uma vez mais, pelo incentivo.