quarta-feira, janeiro 25, 2012

Moralismos numa hora destas? E outro plano de resgate para Portugal? ... O ano está a começar bem, está... Valha-nos a poesia de Golgona Anghel e a fotografia de Jeanloup Sieff


Andei na catequese até aos 9 anos.

Fiz a primeira comunhão quando devia ter uns 6 anos, aperaltada com um vestidinho curto, rodado, de renda branca e devia ir toda enfeitada de florzinhas (ou, então, era a capela que estava toda enfeitada de florzinhas e cheirava a rosinhas e a velas derretidas e a soalho encerado e eu adorava aquele cheiro).


Depois continuei na catequese até à comunhão solene à qual compareci vestida de freira, uma veste singela de um tecido espesso branco sujo, um cordão à cintura, um véu do mesmo tecido cobrindo o cabelo comprido. Vejo-me numa fotografia tirada por um fotógrafo profissional a olhar para o alto, de lado, aparentemente compenetrada. Mas lembro-me dessa sessão, de como me senti parvinha, a trocar de roupa para a sessão, o fotógrafo a querer que eu me empertigasse, a ajeitar-me pelos ombros para ficar a três quartos, a rodar-me a cabeça, a levantar-me o queixo (e tinha a mão fria, ele), e a minha mãe a observar, a querer que eu ficasse bem.

Enfim, momentos incompreensíveis da nossa existência.

De facto, nunca percebi nada daquela cena. Porque é que para a primeira comunhão ia radiosa, rendinhas brancas, vestidinho curto e para a outra já fui naqueles preparos, armada em ascética freira?

Mas a questão nem é essa, a questão é que nunca me identifiquei com o que lá aprendia. Era pequena e tudo aquilo me parecia forçado, muito drama para ser ensinado a crianças pequenas, muita culpa, muita punição. Já uma vez aqui falei nisso. Todas as sextas feiras íamos à capela (ou seria só em alturas especiais?) e tínhamos que nos confessar. E eu lembro-me de ficar sentada no banco cá atrás a puxar pela cabeça e a ver o que é que, daquilo que eu tinha feito, poderia ser considerado pecado – e achava que tudo era uma coisa pouco natural, sem lógica nenhuma, e depois, como desde pequena que tendo para a criatividade, chateava-me ter que ser repetitiva e, se na semana anterior confessava que tinha feito alguma maldade, na seguinte já me sentia compelida a descobrir algum pecado de natureza diferente. Depois, se tinha aprendido os pecados capitais, sentia-me ridícula por ir maçar o padre com minudências insignificantes em vez de aparecer a confessar coisa que se visse. E, então, ali ficava a dar a vez aos outros, contrariadíssima, a ver se, entretanto, me ocorria alguma coisa de que me sentisse culpada. 

Felizmente sou uma criatura destemperada e esse sentimento de culpa não deixou marcas dentro de mim.

Se tenho dúvidas, sopeso, analiso e aconselho-me antes de agir; se a minha consciência aprova, faço; se a consciência não aprova, não faço – é simples. Se verifico que errei, corrijo, se for caso disso, peço desculpa ao eventual lesado. Não pauto a minha actuação por preceitos radicados na culpa ou na potencial culpa ou no receio do julgamento por parte de terceiros (mesmo que os terceiros sejam Jesus Cristo e a Igreja católica).

Mas encontro sentimentos de culpa a toda a hora nas pessoas mais atiladas, provavelmente naqueles a quem a catequese produziu efeito.

Penso que grande parte do que se está a passar a nível das medidas para ultrapassar a crise radica aí. É como que um package punitivo. 

Quem fez dívida para além da conta tem que amargar de todas as maneiras possíveis e imaginárias: mais impostos, coisas mais caras, menos segurança, ameaças, medos, ou isto ou o apocalipse, arder no fogo eterno, e tem que rezar cem pais nossos e duzentas ave marias, ou seja, pagar mais juros, muito mais juros, e mais comissões à troika, e mais os ordenados de três mil assessores do governo e mais trezentas chibatadas todos os dias (tantas quantas as vezes que somos fustigadas com as aparições da Merkel ou, por cá, do Relvas, do Passos, do Gaspar, do pequeno Álvaro). Um kit punitivo, portanto. 


E as pessoas, coitadas, acríticas, aceitam arrependidas, esperam que após tamanho sofrimento venha o perdão.

Pois eu acho tudo isso uma carnavalada sem sentido. Mas uma carnavalada perigosa - e aí a coisa deixa de ter graça.

Quem pecou não foram os que estão a ser agora tão duramente penalizados. Quem pecou foram os especuladores financeiros, os políticos fracos e incompetentes que ao longo de anos e anos a fio não souberam governar os países, quem pecou foram os gananciosos que usufruíram de lucros fáceis e especulativos, tantas vezes criminosos. Quem pecou foram muitos dos que agora erguem bandeiras a favor dos cortes nos ordenados, nos subsídios, a favor da austeridade, da necessidade de despedir e penalizar os trabalhadores. E se muitos de nós pecámos foi por sermos tão submissos, aceitando ser governados e manipulados por tão fraca gente.

No dia em que a imprensa estrangeira refere que Portugal pode ter que recorrer a novo programa de ajuda, numa altura em que os juros alcançados atingem valores incomportáveis, numa altura em que o serviço da dívida sorve recursos que deveriam ser canalizados para a economia, num dia em que o FMI censura a forma como o Governo está a conduzir este processo mascarando o défice com medidas extraordinárias e pontuais e não efectuando medidas de fundo, num dia em que várias vozes se levantam no sentido de não se insistir numa austeridade que estrangula de morte a economia, transcrevo de um artigo de antes de ontem no Expresso: 

"Christine Lagarde, num discurso no Conselho Alemão de Relações Externas em Berlim, criticou esta segunda-feira 'uma tendência preocupante em diversos meios - de verem a política orçamental como um jogo de moralismo entre liberalidade e responsabilidade'.

Como conclusão, a directora-geral do FMI repete o seu conselho: 'medidas credíveis que impliquem e ancorem poupanças no médio prazo ajudarão a criar espaço para acomodação de crescimento hoje (sublinhado de Lagarde) - permitindo um ritmo mais lento da consolidação'.

Lagarde, num discurso que abordou extensivamente a situação na zona euro, considerada o 'epicentro' dos problemas, bem como o 'resto do mundo', salientou que estava nas mãos dos políticos evitar 'um momento do tipo dos anos 1930'. 'O que temos todos de compreender é que este é um momento de definição. Não se trata de salvar este país ou região. Trata-se de salvar o mundo de uma espiral económica descendente', referiu. 'Podemos evitar um tal cenário. Digo-o por uma razão simples: sabemos o que tem de ser feito', sublinhou ainda. Terminou citando o poeta alemão Goethe: 'Não basta saber, tem de se aplicar. Não basta querer, tem de se fazer'.

Tomara que ainda se vá a tempo.

[Face à gravidade do que está em jogo, não me apetece tecer comentários sobre o que para aí vai à volta dos dislates e da falta de jeito de Cavaco Silva. Não foi ele igual a si próprio? Claro que foi. Sempre foi assim. E quanto ao afastamento do jornalista Pedro Rosa Mendes, ao que por aí corre, a mando do inefável Relvas? Qual o espanto? Não é Relvas igual a si próprio? Quem não votou neles, não se espanta. Quem votou, porque se espanta?]

Adiante, meus amigos.

por Jeanloup Sieff

                                           (...)

                                           Quantas madrugadas,
                                           quantos passos,
                                           quantas vidas,
                                           quantos medos serão ainda precisos
                                           para que estas ruínas acabem de se despedir?


                                          (excerto de poema de Golgona Anghel in Criatura)

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Uma boa quarta-feira, meus Caros! 

E nada de desanimar que isto um dia destes vira ou este não fosse o ano do dragão (e consta que, por cá, o dragão até tem três gargantas: deve ser dos bons!)



10 comentários:

  1. Cara "Jeito Manso", embora sem interveniência, tenho lido todos os seus posts, desde que a descobri. Simplesmente adoráveis e oportunos.
    No que concerne ao de hoje, relembrou-me esses meus, então, belos tempos, que seria uma espécie de "Idade da Inocência", para uma criança que vivia na aldeia. Hoje, com as rajadas diárias de conhecimento e tecnologia, duvido que se possa apodar esta fase de absoluta "Idade da Inocência", mas continuo a acreditar na candura e inocência de toda a infância.
    Quanto à segunda parte do texto, já basta de tanto abuso por parte de FMI, agências de rating e quejandas politiquices de "papa-meninos"... acho que aqui não há idades para inocência.
    Um abraço de franca solidariedade.

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  2. Pôr do Soljaneiro 25, 2012

    Carissima Jeito Manso,

    Todos nós andamos fartos dos politicos deste País, nos quais a MAIORIA não votou.

    Estou farta de Relvas, o dossier Maçonaria começou com ele, que depois se eclipsou, numca se prenunciando.

    Estou farta de CS e da sua falta de poder de comunicação, da sua politica de "Charrinho Alimado"(prato algarvio de pescadores pobres), que na sua alimentação frugal, ele advoga, da sua candura, ou será outra coisa?

    Estou farta da nossa imprensa que só nos deprime, estou farta da Troika servir de desculpa para muitos se encherem e desviarem as atenções para que não se pense naquilo que se passa a nivel de nomeações na Sec.Est da Cultura, por exemplo.

    Desgraçado do Povo que não tem acesso à cultura e a quem lhes é retirado o respectivo Ministério.

    Os governantes destes País querem um povo inculto, como antigamente?

    Contudo não tenciono emigrar e lutarei para que os meus filhos consigam não o fazer.

    Haja paciencia e saude.

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  3. Amiga Jeitinho:
    Isto hoje tem muito que se lhe diga.
    Terá que ser dividido por partes.
    Na 1ª, fala a minha amiga, da sua 1ª comunhão, vestidinha de rendas e floresinhas. A minha foi igual. Com 6 anos, acreditando em tudo o que me meteram na cabeça, embora sem perceber nada, lá fiz a comunhão, tendo um cuidado enorme, para não tocar nos dentes com a hóstia, para não ferir Jesus, o Jesus em quem ainda creio, embora de forma diferente. Acredito nele, como homem bom, que quis mudar o mundo e, acabou pregado numa cruz.
    A comunhão solene, foi diferente da sua. Parecia uma noiva e ainda acreditava em todas as balelas que me diziam. Foi a única vez que me vesti de noiva, porque quando casei, estava grávida de 5 meses e, já não acreditava que os meninos eram feitos, por obra do Espírito Santo. Um dia mostro-lhe a foto da solenissima comunhão.
    Quanto à trupe "Cavaco, Passos, Relvas" e afins, penso que eles não foram para lá sozinhos.A maioria dos portugueses votou neles. Estes, devem aguentar pianinho. Mas os outros, nos quais me incluo, que hão-de fazer? Gritar orgulhosamente que não votaram neles, que não estão para pagar as asneiradas dos outros? Só se for para desabafar, porque também não resolvem nada.
    Resumindo, amiga. Resta-nos a poesia e a fotografia, como diz e eu subscrevo.
    Beijinhos
    Maria

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  4. Ou imoralismos mascarados de moralismos?
    Já não há capacidade para aguentar mais desnorte, mais desrespeito, mais...

    Verticalidade, honestidade, respeito, consciência/noção do que deve ser serviço público?
    Existirão, ainda, estes valores?

    Esperar dias melhores? Alimentemos a esperança!...

    Faço minhas as suas palavras. Leiamos Golgona Anghel.

    Abraço.

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  5. Olá DBO,

    Muito obrigada pelas suas palavras e gosto de o ver por cá, falando.

    Eu também ainda acredito na inocência mas ela é retirada às crianças e aos jovens tão cedo...

    Agora só se ouvem os jovens a dizer que têm que se ir embora e tenho vários amigos cujos filhos estão a partir. Custa-me tanto isso.

    Isto está tudo a caminhar rapidamente para a insolvência (juros a mais de 18% tornam o volume da dívida insuportável e esvaziam a economia).

    Custa-me até a falar nisto aqui. Vamos ver o que me ocorre escrever hoje para não assustar muito as pessoas, porque a situação está mesmo de susto.

    Retribuo o abraço que muito sinceramente agradeço.

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  6. Cara Pôr do Sol,

    Mas tirando o Sec Estado da Cultura e o Paulo Portas e talvez a ministra da Justiça vê mais alguém no Governo que saiba vagamente o que é a cultura? Alguns mal sabem falar... O que se passa na cultura é um vexame, tem razão.

    E, se ler o que escrevi no comentário anterior, nem sabe o receio que algum dos meus filhos tenha alguma vez que emigrar por necessidade... Nem quero pensar nisso. Pensar que um País rejeita os seus jovens é, para mim, uma coisa atentatória, revolta-me.

    O disparate que é esta governação quase me envergonha. E preocupa-me muito porque acho que nem dão conta da gravidade dos disparates que cometem.

    Quantos aos charros alimados conheço muito bem. Costumava até comer mas mais pequenos, a minha mãe, que é de ascendência algarvia, chamava-lhes pelins (ou plins?) eu gostava imenso. A ver se um dia destes faço, já nem me lembrava disso e eu gostava tanto.

    Olhe, gostei mesmo de ler este comentário, por todas as razões e até por me lembrar de uma coisa boa de que me tinha esquecido...

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  7. Oh, Mary on the rocks,

    O que eu me ri consigo. Sabe que aos 5 anos fui de anjinho ajudar na festa da comunhão dos outros mais crescidos e, para treinar, puseram-me uma hóstia na boca e disseram que não se podia mastigar porque era o corpo de nosso senhor e eu andei mais de uma hora sem falar, com a hóstia quase colada ao céu da boca e não conseguia falar não fosse morder o nosso senhor, até que desatei num pranto, impotente perante a situação.

    E também me lembro de a minha mãe se estar a aconselhar quanto ao fato da comunhão solene, se devia ir de noiva, se de freira. Optou pela freira, imagine-se. Tomara que tivesse ido de noiva, para ser como a Maria... é que também não me vesti de noiva, nunca me vesti de noiva.


    Quanto a esta 'cena' toda, é uma maçada tudo isto, esta gente que por aqui anda a dar cabo do país e da esperança de todos nós.

    Um beijinho, Maria!

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  8. Cara Teresa Santos,

    Tem toda a razão? Geralmente quem mais atenta contra a moral, é quem mais se bate com moralismos de fachada.

    Todos os dias se sabem de mais descaminhos, de desnortes, de eventuais novas medidas de austeridade, de mais subidas de juros, de pessoas que não se tratam porque não têm dinheiro para os medicamentos ou para pagar aos bombeiros para as levarem ao centro de saúde ou hospital. Isto choca-me de uma maneira...

    Isto um dia vai ter que mudar, mas mudar muito!

    Um abraço!

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  9. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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  10. Caro UJM

    Os juros que se está a referir são os juros do mercado secundário e que, portanto, não têm impacto directo no serviços da dívida, no curto prazo. Com isto, não estou a retirar importância a esta subida. No entanto os seus impactos são um pouco diferentes…

    Ou seja, o mercado secundário é o mercado onde se transacciona dívida dos países, ou seja, é onde quem comprou dívida aos países (mercado primário) vende essa dívida a terceiros….

    No fundo, é um indicador importantíssimo da confiança e credibilidade que os mercados dão às políticas económicas e financeiras dos países.

    No entanto, se o financiamento do estado está assegurada, no curto prazo, pelo programa da Troika (pelo menos é suposto estar…..por isso é que eles, a Troika, está sempre a fazer reavaliações……, se tudo correr como planeado Portugal só volta ao mercado em 2013…), o financiamento do sector privado (leia-se banca) não está, pelo menos directamente…

    No curto prazo a subida destes juros dificulta ainda mais, se é que isso é possível, a vida do sector bancário, restando a estes o BCE…..

    No entanto, como os bancos têm que aumentar os rácios de capital (os famosos Tier 1 e Tier 2) o financiamento que o BCE está a fazer aos bancos portugueses nunca chega à economia real….

    Ou seja, é o velho ditado da manta… “se cubro os pés, destapo a cabeça!”

    Enfim, não são de facto boas notícias, e o pior é os sacrifícios que estamos a fazer parecem não estar a surtir efeito.

    Temos que perceber que paralelamente a uma política de contenção de custos (recuso a tentar perceber essa da “austeridade”…. um dia explicarei porquê… ), temos que ter uma politica de desenvolvimento e crescimento económico, em que a principal função do estado não é o de investidor “puro e duro”, mas o de criar condições para o crescimento…… mas isto já é outra conversa…..

    Fica para a próxima!

    Mais uma vez, óptimo post!

    JHMP

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