sexta-feira, julho 29, 2011

Quando eu era pequena queria ser administrativa, depois cabeleireira - hoje corto apenas alguns cabelos e podo árvores


A minha mãe, que agora está reformada, era professora.

Quando eu era pequena, de vez em quando, provavelmente nas férias, ia com ela receber o ordenado.

A esta distância posso fazer alguma confusão mas, do que me lembro, íamos primeiro à Delegação Escolar onde uma funcionária lhe entregava um papel (presumo que fosse o recibo de vencimento), com o qual íamos, de seguida, à Agência do Banco de Portugal na cidade.

Era um edifício muito bonito, com um belo soalho de madeira, sempre cuidadosamente encerado, reluzente e rescendente. Tinha umas grandes portas, uns balcões imponentes e uns funcionários que me pareciam as pessoas mais importantes do mundo. Lembro-me que a minha mãe entrava e eu imediatamente começava a falar baixo, cerimoniosa, e havia sempre pouca gente lá dentro, houviam-se os tacões da minha mãe no soalho. Ela dirigia-se a um balcão onde entregava um papel, presumo que o papel que lhe tinham dado na Delegação Escolar, o senhor consultava uns livros, escrevia numas folhas e dava uma ficha metálica à minha mãe. De seguida, ela dirigia-se para uma cabine resguardada, com um gradeamento dourado, com uns vidros, onde um senhor a recebia. Ela dava-lhe a ficha metálica, e ele dava-lhe o ordenado em dinheiro, fazendo-a assinar um papel e a minha mãe com um gesto que, na altura, me parecia solene, escrevia a sua bela assinatura, que mantém até hoje.

Tudo isto se passava com grande eficiência, e eu via os funcionários com um ar superior que, sem hesitações, se dobravam à esquerda e encontravam, nas estantes laterais ou nas gavetas das grandes secretárias, impressos com papel químico e depois entregavam-nos e voltam a recebê-los e inclinavam-se à esquerda e procuravam o carimbo certo no meio de tantos e, com vigor, assentavam-nos numa almofada de tinta e, de novo com vigor, carimbavam e, com isso, pareciam fechar um importante contrato.

Outras vezes, não sei em que circunstâncias, era preciso o selo branco e então o funcionário levantava-se, orgulhoso da sua importância e deslocava-se até a uma bancada em que estava o aparelho com o qual apunha o magnífico selo branco, um desenho sem tinta, só em relevo, uma coisa que parecia conferir grande importância ao acto.

Tudo isto me parecia exemplar e eu, na minha infância, durante algum tempo sonhei ser funcionária administrativa numa empresa para poder manusear com igual precisão impressos e carimbos.

Algum tempo depois todo este cerimonial se extinguiu e a minha mãe passou a receber o ordenado por transferência bancária e creio que até a Agência do Banco de Portugal foi fechada.

Entretanto uma outra vocação ia ganhando terreno. Gostava muito de acompanhar a minha mãe à cabeleireira. Era um sítio que me fascinava. Havia ali qualquer coisa de científico condimentado com intimidade, produtos fantásticos, frasquinhos em estantes, carrinhos com rolos, molas, redes, ganchos. E havia sobretudo a eficiência artística da cabeleireira no manuseio das tesouras.

Eu via fascinada como ela vestia as batas fininhas às clientes, colocava as toalhas, os grandes babetes, depois a rapidez quase mecânica com que cortava os cabelos, com uma mão ajeitava o cabelo, com a outra desbastava, dizendo que dava volume a umas clientes ou que retirava volume a outras. Falava com as clientes pelo espelho, e as clientes respondiam pelo espelho e havia sempre conversas sobre a família, sobre outras pessoas e juntavam-se lá pessoas amigas e riam, cúmplices. Muitas vezes, sem perceber, intuía que falavam de coisas 'picantes', riam e trocavam olhares a ver se eu teria ouvido.

Depois de cortarem, escadearem, acertarem as pontas, passava-se à parte da limpeza dos cabelos que tinham ficado presos na roupa, no pescoço, com um grande e macio pincel que tenho ideia que tinha um pouco de pó de talco. Depois era a sequência toda da mise, com o plix, com os rolos, com uma redinha e depois o secador. Depois, com o cabelo ainda quente, desenformavam-se os grandes caracóis que, seguidamente eram desmanchados com escova. Depois davam-se contornos, empessando algumas zonas, pondo laca. No fim vinha o espelho de pézinho para mostrar como tinha ficado por trás.


E sorriam contentes com a obra, a cabeleireira e a cliente.

E eu assistia a tudo isto com fascínio e grande atenção para aprender cada gesto, cada técnica, pois não tinha dúvidas de que era mesmo cabeleireira que eu queria ser.

Penteava todas as cabeças femininas que me permitiam. Amigas, a minha prima mais nova, passavam horas a serem penteadas, penteados artísticos que metiam tranças enroladas, caracóis, cabelos puxados para um dos lados. Fazia também grandes penteados à minha mãe e eu ficava toda orgulhosa quando íamos sair a seguir: era o reconhecimento de que os penteados que eu fazia não eram brincadeira de criança, eram mesmo a sério. Apenas não me deixava cortar, tinha medo que a minha mão falhasse e não houvesse remédio.

Quando os meus filhos começaram a ter cabelo que se cortasse, o que, face a esta vocação, aconteceu bem cedo, comecei a cortar-lhes o cabelo e, mais tarde, o meu marido também se tornou meu cliente. Claro que a mim própria também sou eu que corto e penteio (o que não é difícil dado que a minha farta cabeleira disfarça qualquer desacerto e dado que gosto de ter um ar despenteado)

Até os meus filhos serem bem grandes, fui eu que lhes tratei do cabelo. Mas chegaram à idade em que sentiram embaraço de dizer que não iam a cabeleireiro nenhum, que era a mãe que lhes cortava o cabelo e, para meu desgosto, perdi estes clientes.

Contudo, quando o serviço é de qualidade, a clientela volta e traz novos clientes. Ao meu menino mais crescidinho já sou eu que lhe corto o cabelo e ontem recuperei a minha cliente mais difícil, a minha filha.

Sentada numa cadeira à porta de casa, uma toalha sobre os ombros, e eu armada de pente e tesoura. Parecia que estávamos em Cuba ou cá, na aldeia mais recôndita, aqueles barbeiros de beira de rua. 

Parte do farto cabelo negro espalhado pelo chão depois do corte

Tem uma cabeleira farta, layers e mais layers de cabelo e, ainda por cima, habituada aos melhores cabeleireiros da capital, cheia de esquisitices, fez com que eu pegasse na tesoura um pouco a medo. Mas foi sol de pouca dura, que, comigo, a tesoura até parece que ganha vida própria: eu cirando à volta da cabeça e o cabelo vai caindo, e eu desbastanto, pondo a tesoura em ângulo de navalha para escadear na medida certa, deixando um corte equilibrado. Que prazer (... na volta devia ter mesmo seguido esta vocação).

No final, a cliente exigente viu-se ao espelho, rodopiou para se ver de todos os ângulos e decretou, ainda com um certo tom de incredulidade na voz:  '...está óptimo...'

Uffff.

Entretanto, enquanto não tenho mais cabelos para cortar, entretenho-me a podar as árvores, o princípio é quase o mesmo.

6 comentários:

  1. Wow!
    Há dois anos que não o corto!
    Jamais ousaria fazê-lo a mim mesma (excepto se resolvesse entrar para um convento ou me convertesse ao islão: coberta, a cabeça já não produziria esgares de susto.
    Agora já podia levar uma espontadela, já..., mas a preguiça! é tão mais simples prendê-lo e pronto!
    e depois, parece que nunca me cortam como quero! :(
    onde é que é aí o salon, mesmo?!...
    ;)
    Margarida, aka Estrela N.
    (a história, mais ou menos, está pelos links, se houver paciência para seguir o enredo...)
    Bom regressar aqui...
    Chuáck!

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  2. Olá.

    Contente de saber de si. Fiquei um pouco triste e intrigada com o desaparecimento do blogue de que tanto estava a gostar.

    O que lhe aconteceu? Diz para eu seguir os links... mas quais?

    Vejo que agora está restrito a quem tenha password de acesso e sinto-me excluída... Aliás, com esta dos links, sinto-me é info-excluída.

    Pode dar alguma pista? (mas que não seja nada de humilhantemente óbvio para eu não ficar a sentir-me totalmente burra por não saber por que link hei-de começar?

    Mas fiquei contente de a ver aqui, a tentar vez no salon.

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  3. Oops!
    Obrigada pelo alerta, de facto, com tanto 'vira-virou', este tinha ficado 'restrito', mas já pode aceder :)
    O outro, anterior, é
    http://criativemo-nos.blogspot.com/
    (o link está em 'isto anda tudo ligado' e a foto já foi identificativa do cabeçalho. Mudava muito, há referências sem fim..., era (é) a 'criatividade' em acção! ;)

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  4. Ok, já vi, já percebi. Não fazia ideia. Vou ver com atenção, recuando para ver como tem acompanhado 'l'air du temps'.

    Eu também tenho mais que um blogue (4, mais concretamente). Mas 3 têm tido um look estável mas este, Um Jeito Manso, já lhe mudei o facies vezes sem conta. Mudo as cores, a imagem de topo embora tentando preservar a identidade. Volta e meia, lá vai isto, cara lavada. Por isso percebo-a bem.

    Mas olhe, do pouco que conheço, gosto dos seus blogues, das imagens e da escrita.

    Bom domingo, Margarida!

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  5. :)
    thanks, mummy...

    nite-nite..., don't let the bad bugs bite!

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  6. Se soubesse a luta que tem sido para evitar as picadas das melgas... Verdadeiras perseguições nocturnas.

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