segunda-feira, junho 20, 2011

Aqui, in heaven, Jeanne descansa enquanto Modigliani a olha, Eugénio de Andrade e Herberto Hélder falam-me de amor - e eu penso em Pilar del Rio, a mulher que iluminou a vida de José Saramago

Acabei agora de ver a 2ª parte do filme José e Pilar. Estou emocionada. A imagem do casal no aeroporto, abraçados, Saramago quase amparado por Pilar del Rio, ele magro, cansado, andando a custo, fazendo uma festa na cabeça da mulher, o amor tantas vezes dito, tantas vezes demonstrado. Não consigo agora falar disso.

*

Esteve ontem, domingo, um dia de calor. À beira do verão as cigarras começam a ficar loucas, as flores, no pino do sol, ficam com um perfume mais intenso e só se consegue estar bem à sombra. Vou então para junto da grande figueira onde a sombra é acolhedora, fresca.

A árvore está pesada como uma mãe carregada de filhos, carregada de leite, mas, como um mãe, sempre disposta a acolher mais alguém que a procure. Aqui, neste recanto reservado e fresco, as mulheres podem estar à vontade e Jeanne, mulher amada, desejada, descansa, lânguida.  (Mais tarde, não conseguindo viver sem o seu Modi, um dia depois dele morrer, ela, grávida de 9 meses, voou para junto dele. Mas aqui, Amedeo ainda a pintava, nua, esguia, amante, dedicada).


É também aqui, nos bancos debaixo da grande figueira que Herberto Helder vem sentar-se e diz, em voz alta, palavras que já sei de cor, que já adaptei como se alguém as tivesse dito para mim, para Jeanne, para todas as mulheres que se abrigam à sombra desta árvore fresca e maternal: 'Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher - seus ombros beijarei/ dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro pescoço, de planta, /onde uma chama comece a florir o espírito - as coisas nascem de ti/ como as luas nascem dos campos fecundos o meu desejo traz o perfume da tua noite/ Beijarei em ti a vida enorme - e em cada espasmo morerei contigo'


E eu, que tanto amo as palavras, fecho os olhos, e peço que me diga mais uma e outra vez as mesmas palavras, 'beijarei em ti a vida enorme', 'as coisas nascem de ti' e eu, mulher, orgulhosa de ser mulher, sorrio, porque assim é, e reclino-me, um livro nas mãos, a máquina fotográfica sobre a mesa, junto a Jeanne:


E, então, chega Eugénio de Andrade, (les beaux esprits se rencontrent) pousa também um livro, refresca-se, bebe um copo de água fresca e diz:


'Foi para ti que criei as rosas, foi para ti que lhes dei perfume/ Para ti rasguei ribeiros e dei às romãs a cor do lume/ Foi para ti que pus no céu a lua e o verde mais verde nos pinhais/ Foi para ti que deitei no chão um corpo aberto como os animais', diz Eugénio com a sua bela voz, palavras que digo de cor, talvez sem grande rigor porque as adaptei a mim.

E Jeanne faz o mesmo, fingimos ambas que acreditamos que foi para nós que ele deitou no chão um corpo aberto para os animais. Sorrimos.


Depois, com as palavras que nos beijam junto ao nosso coração, sentimo-nos felizes. Jeanne, pudica, tapa os seios mas sorri, oferece-se ao seu amor. Esconde-se atrás das ramagens quando percebe que eu a fotografo. Mas sorri, não consegue disfarçar a sedução com que envolve Amedeo, o seu amor.

E eu sorrio também. Gosto de estar aqui in heaven. É boa a sombra desta grande árvore, serão bons os figos daqui por pouco tempo, e são abençoados aqueles que, com as suas palavras nos mostram outros caminhos, são abençoados aqueles que, com a sua obra, para sempre iluminam a existência dos que vêm depois, como nós, como eu, aqui à sombra desta figueira.

4 comentários:

  1. Devo dizer: é muito revelador e belo tudo isto.

    Parabéns!

    Jorge

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  2. Olá, Jorge,

    Obrigada pela visita e pelas palavras.

    O que escrevo é sempre sentido (seja num registo ligeiro, político ou pessoal) e, neste caso em concreto, quase me limitei a descrever um recanto em que me encanto [no local a que, aqui no blog, designo por 'heaven' porque, de facto, neste sítio sinto-me no céu, é um sítio à medida da minha imaginação].

    JM

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  3. Que bem me sinto neste blog JM...
    Hoje estive a põr em dia a leitura dos Posts dos últimos dias e sou sincera, aprendo sempre muito com o que escreve.
    Obrigada pela partilha.
    Parabéns!
    Lia

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  4. Lia,

    Gostei de ler as suas palavras, muito obrigada.

    Gosto que reconheça o meu gosto pela partilha pois se, por vezes, escrevo porque me apetece dar a minha opinião, noutras escrevo também porque gosto de partilhar o que sei (não é muito, mas quem dá o que tem...).

    Volte sempre, Lia.

    Um abraço,

    JM

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