sábado, fevereiro 04, 2012

I'm a bird girl. Recebam estas minhas palavras que voaram até vós.


Música, por favor.

I'm a bird girl - Antony and the Johnsons

Chego com um vestido leve em fúcsia envolta numa longa écharpe preta mas não é para casa que me dirijo. Saturada de festas de sociedade, de palavras fátuas e sorrisos indestrutíveis, penso que só a água me poderá limpar de tanta vacuidade. 

Rente à água, respiro. Fecho os olhos. Respiro, reabro-os, hesito. Aspiro longamente, fecho os olhos, hesito. Pouso a écharpe na beira, descalço-me, uma última hesitação, uma última respiração. 

E então, lentamente, mergulho. Deixo-me deslizar devagar na vertical. Fico submersa. Sinto os cabelos a flutuarem e, depois, a descerem comigo. 

Woman under water by Annie Leibovitz

Deixo-me ficar. Limpa, livre. Abro os olhos. A água é azul e o meu corpo abandona-se. De braços abertos, soltos na água, quase como se estivesse reclinada, descanso, tão bom, que sossego, nem um sorriso forçado, nem um beijo forjado. Apenas eu no silêncio livre da água. 

Depois sinto que o meu corpo quer flutuar. Deixo que a água me traga à superfície, lentamente. Abro os olhos. Um vasto céu azul inunda-me o olhar. Está frio e eu flutuo na água fria, mulher livre, nadando na água azul.

A seguir saio, a água escorre pelo meu corpo. Respiro fundo, olho o céu. Ainda há um resto de sol mas está frio. Avanço devagar. Um pássaro passa riscando o espaço com o seu grito de liberdade. Olho-o. Dispo o vestilho molhado que se cola ao meu corpo, gelando-o. Procuro a écharpe de mousseline preta e, quando a encontro, envolvo-me nela. Continuo levada pela aragem fresca e limpa. Mais à frente está uma rocha grande suspensa sobre a ravina. Vou até lá e ali fico suspensa, respirando o ar puro apenas habitado por velozes pássaros, incertos habitantes. Sinto o ar frio e agora já azul escuro no meu rosto. Olho as copas das árvores, olho a montanha negra ao longe, reparo que ao fundo, algures no vale, um fio de fumo desenha ligeiros traços brancos no ar. A écharpe esvoaça em volta do meu corpo, que sensação tão boa.

Maureen Flemingpor Lois Greenfield

Aspiro o ar frio e silencioso, fecho os olhos devagar, avanço, livre e limpa, solto a vaporosa mousseline e prendo-a com as mãos, abro lentamente os braços e salto no espaço. 

E então começo a voar, o transparente tecido ondulando como um véu, como umas asas leves e belas, e voo, mulher livre atravessando os espaços. Uma grande ave de brilhante plumagem negra que desliza, que se vira, que plana no ar, liberta de peso, liberta de sombras.

Depois deixo que o vento me traga de volta e, satisfeita, saciada, pouso, arfando, sorrindo.

Maureen Fleming por Lois Greenfield

Só então regresso a casa. Visto-me, agasalho-me. Sento-me aqui, feliz, apaziguada. Fecho os olhos, respiro. Sou uma mulher feliz. Começo, então, a escrever-vos. E escrevo palavras que, de imediato, se soltam no ar, pequenas aves de transparentes plumas negras que atravessam a noite, livres, tão livres. Transportam a minha respiração. 

Deixem-nas pousar aí, perto de vocês, estão quase a sair do vidro, estão já aí por trás. Depois, quando aí pousarem, talvez no vosso colo, sorridentes, sintam-nas, ouçam como respiram as minhas palavras caprichosas que atravessam os ares para chegarem até vós. 

E agora fechem vocês os olhos. Estou quase eu aí, também, ao vosso lado. Fechem os olhos. 

Leah Stein por Lois Greenfield

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PS: Só agora me me ocorre que já nem tenho idade, nem está tempo para andar por aí a voar e, ainda por cima, com o cabelo molhado. Tomara não tenha apanhado um resfriado. Já agora, se puderem, vão preparando um chá bem quente para quando eu chegar, está bem? Obrigada. De lúcia-lima, se puder ser.

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Tenham, meus Caros, um belo sábado. E agasalhem-se que está um frio das sibérias.

8 comentários:

  1. O chá está pronto. Venha quando quiser.

    Estes textos que nos oferece, sobre a noite e as mulheres nocturnas, são muito bons! Já pensou em criar uma etiqueta específica, para podermos ler vários de seguida?

    Mais uma vez, Bom Fim-de-Semana!

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  2. Cara UJM:

    Muito bonito. Um arejamento de purificação. Até sinais de negro, "Negro" que é o meu título de hoje.

    J. Rodrigues Dias

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  3. Querida Leitora de A Matéria dos Livros,

    Não diga duas vezes que eu saio por aqui voando e vou pousar no beiral da sua janela... Que bela conversa em roda de um chazinho haveríamos de ter.

    Quanto a isso que diz, pois... Sabe que eu sou mais de desatar a escrever e nem um bocadinho de sistematizar, organizar, etc. Nada, não tenho paciência. Esgoto o meu próprio tempo de antena com o acto de escrever.

    E depois como fazê-lo? Já escrevi tanta coisa, como descobrir e catalogar? Não consigo...

    E a complicação ainda é maior. é que as minhas mulheres nocturnas são indisciplinadas como eu. Ora vêm aqui até ao UJM, ora andam rente ao rio, pelo Ginjal. Ainda esta semana por lá andaram.

    Precisava de ter alguém me ajudasse nisso (e nas fotografias) mas ainda não consegui arranjar um secretário à maneira...:)

    Obrigada, de qualquer forma, pela sugestão, vou ver se 'cravo' alguém para me ajudar nisso que isto está mesmo a pedir uma organização.

    Um beijinho, Leitora!

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  4. Caríssimo J. Rodrigues Dias,

    Muito obrigada. Gosto muito de escrever (como dá para perceber) mas há dias em que os dedos têm a sua própria 'agenda', vão, voam, e eu vou de gosto atrás deles. Depois é um prazer encontrar fotografias e músicas para ilustrar as palavras, descubro coisas giríssimas (eu, pelo menos, assim acho).

    Já lá estive a ver o seu vestido negro. Que jeito que ele teria dado à mulher que por aqui ontem andou a voar apenas com uma écharpe...:)

    Gostei imenso do seu poema. É musical e poético (e cinematográfico).

    Bom sábado.

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  5. Jeitinho amiga
    É sempre tempo de voar, de mergulhar na água. É sempre tempo de sonhar.
    É sempre tempo de um bom chá de lucia-lima, bem quentinho.
    Está pronto. Não demore, para que não arrefeça.
    Beijinho
    Maria

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  6. Jeitinho manso minha linda
    Não há melhor que uma constipação por sonhar.
    Tenho aqui a lucia lima fresquinha, apanhada no meu quintal.
    E uns scones no forno, uma receita especial.
    A lareira está acesa. Toque duas vezes e será o seu sinal!

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  7. Dear Mary,

    Tão querida sempre. Daríamos uns belos voos as duas, não é?

    Há dias em que me apetece mesmo voar, ser absolutamente livre e, na água, de facto, adoro deixar-me ir para debaixo de água.

    Então, vá deixando o chá aí quentinho que um dia passo por aí. saio a voar e vou aí ter.

    Um beijinho, Mary.

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  8. Olá, Menina Leninha!

    Que boa visita a esta hora. Eu aqui a pensar no que vou escrever e a menina a desafiar-me para um chá cheiroso, uns scones especiais e uma lareira acesa... Que bela converseta que teríamos...

    Ah que me ficou mesmo a apetecer. Daqui é só atravessar o rio e estou logo aí, uma gaivota faz isto num minuto. Eu devo levar um pouco mais, não estou tão treinada.

    Mas ainda vou mas é pôr a chaleira a aquecer a água e fazer um chá de pacote, que não tenho ervinhas do meu quintal.

    Mas olhe, minha Amiga, fico grata pelas suas palavras tão queridas.

    Um beijinho, Helena.

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