Acontece que, por vezes, tenho que me depurar. Afasto de mim as análises económicas, os artigos financeiros, os textos sobre política, ou sobre a actualidade que me desilude. Em dias assim, apenas o mar bravo do oceano, a água fresca do rio ou a terra bravia me sossegam.
Este fim de semana estive outra vez in heaven.
Agora que escrevo, já é quase uma da manhã, e já estou de volta à cidade, aqui nesta torre perto do céu, e a terra pedregosa está longe - mas sempre tão perto, tão dentro de mim.
São assim os grandes amores a quem tudo se perdoa, por quem ansiamos quando estamos longe, que guardamos amorosamente, com todo o carinho, quando nos afastamos. Sempre dentro de nós.
Tantas vezes aqui já vos falei da pequena parcela de terra que um dia me acolheu, me escolheu. Já vos contei: não está cuidada, não é arável, é selvagem, indomável. Dela nascem grandes pedras, mato selvagem que não tento controlar. Mas nela me abrigo, com ela me encanto como se fosse amor de primeira descoberta.
Por ela ando devagar, respiro o cheiro a terra molhada, odores femininos que vêm do seu ventre, afago os pinheiros que exalam um cheiro doce, olho com ternura as pequenas flores lilases que despontam no alecrim e que atraem as abelhas que as beijam, enredadas, fotografo os refegos das minhas árvores como se fossem dobras nas perninhas gordas dos bebés, sorrio com o charme de maravilhosos líquenes, tanto tempo a olhar, a cheirar, a sentir.
E, então, penso que amo esta terra como se fosse gente, e começo a descobrir formas femininas e formas masculinas, e olhos que me olham, meigos como olhos de animais, e braços que se abraçam e quase me emociono ao pensar: esta é também a minha gente, a gente que tão carinhosamente me acolhe.
Fiz um estufado ao almoço. Tinha um bocado de chambão e estufei-o. Cebola abundante, azeite, um pouco de vinho tinto. Quando a carne estava macia juntei um pouco de água e batatas, cenouras, batata doce, ervilhas, um ramo de alecrim. Rescendia. Ficou saboroso, apurado.
E, enquanto estava ao lume, o odor a cozinha e a casa acolhedora e quente, saía pela chaminé e eu andava lá fora, a percorrer os caminhos mil vezes percorridos, e ao cheiro a campo juntava-se o cheiro a cozinha e eu pensei, como sempre penso que aqui, in heaven, eu sou uma mulher mais completa e que esta é a terra à qual eu pertenço inteira.
Reflexo do céu e do grande e cheiroso cedro num espelho de chuva |
Tronco de pinheiro que me olha, humano, compreensivo |
Ramos de azinheira que se abraçam, que me abraçam - e por detrás um dos pássaros de grandes asas que habitam este espaço |
Abertura do corpo da terra, vulva quase secreta, inexpugnável esconderijo |
Mulher deitada em fundo e, a zelar por ela, pinheiro de cujo forte tronco sai uma pinha quase fálica |
Respiremos fundo, aspiremos o ar tão puro que existe ainda dentro de nós, revigoremo-nos, tentemos ser felizes.
Com um sorriso vos desejo, meus amigos, uma bela semana! E aproveitem a vida em cada pequeno instante.
Sei exactamente do que fala, Tá. Conheço-lhe o sabor, os tons e os frutos, os verdadeiros donos que por lá fazem casa e encerram o círculo da vida. Só que cultivo azeite, mel, cortiça e vinho; tenho de limpar o mato - malditos incêndios! - mas lavo a alma que sai renascida. Sei do que fala, se sei...
ResponderEliminarJeitinho amiga
ResponderEliminarQuanto mais a leio, mais gosto. A sua maneira de ver a natureza é tão semelhante à minha que, nem precisava das legendas, para "ver" o que descreve. Amo a natureza e Ela é Mulher. É ela que pare tudo o que necessitamos. Gostei particularmente de um parágrafo seu:
"Dela nascem grandes pedras, mato selvagem que não tento controlar. Mas nela me abrigo, com ela me encanto como se fosse amor de primeira descoberta.
Por ela ando devagar, respiro o cheiro a terra molhada, odores femininos que vêm do seu ventre, afago os pinheiros que exalam um cheiro doce, olho com ternura as pequenas flores lilases que despontam no alecrim e que atraem as abelhas que as beijam, enredadas, fotografo os refegos das minhas árvores como se fossem dobras nas perninhas gordas dos bebés, sorrio com o charme de maravilhosos líquenes, tanto tempo a olhar, a cheirar, a sentir."
É isto que sinto, sem tirar nem por.
Obrigada pelas fotos. Deram-me a imagem, os cheiros, até o aroma do almoço senti. E ontem, por acaso, fiz carne estufada (chambão, claro), temperada com vinho tinto e tudo. Só não tinha batata doce.
Beijinhos amiga
Maria
Tal como Paulo Abreu e Lima também percebo do que fala. De quando em vez pisgo-me para umas serranias, ali perto de Seia, numa pequena aldeola onde temos uma casa grande de família, e por ali fico a recuperar energias para labuta da cidade. E ali dou azo à imaginação culinária, passeio a pé horas a fio (muita gente que conheço é incapaz de penetrar pelo campo a dentro e não entendem esta minha atitude)por aqueles bosques e florestas, saboreando o odor do campo, das matas, dos pinhais, ouvindo os passaros, falando com as gentes locais, gente simples e boa e quando regresso, o que eu gosto de ver e sentir o cheiro do fumo das lareiras, a sair das chaminés das casas.
ResponderEliminarJá a gora, essa iguaria de que nos fala foi, imagino, acompanhada de um bom tinto?
Vejo que gosta e muita da vida. Do muito bom que ela nos pode proporcionar. Mas nem toda a gente a sabe, verdadeiramente, desfrutar. Mais fica para a merenda, como diziam os nossos antepassados! Gozemos nós, aqueles que o sabem fazer.
P.Rufino
Cara Um jeito manso:
ResponderEliminarOntem saí da terra, da sebe e do resto e fui à cidade. Foi bom, que vi sorrisos, mas voltei à terra. Conheço da terra a textura, os cheiros, sementes, o que nos dá. Tenho pena que muitos não conheçam, que seriam menos ignorantes.
J. Rodrigues Dias
Essa é a terra
ResponderEliminarsempre mãe
sempre aconchego
que se renova e cresce em amor
e apego
essa é a terra
é solo amado
solo também no coro das vozes
feitas de um infinito
desejado
a casca dos teus pinheiros
os fungos de veludo
intimidades
chapéus parisienses
provocadores do olhar
cheiram a campo
mas também a luxo
a "verdes anos"
e a maturidade
são imagens dessa tua terra
eu sei
podiam ser tudo
até "fundo do mar"...
Paulo,
ResponderEliminarFico contente por saber que é homem das coisas da terra, dos cheiros, da natureza. Fazia-o um urbano incondicional, veja lá.
Mas da forma como fala agora, vejo que me enganei (um pouco).
E que orgulho deve ter nos sabores das suas coisas, não? E como deve gostar de andar a ver os sobreiros, a tocar-lhes a pele, não?
Que engraçado. Vou reler o que escreve a esta nova luz.
Mary,
ResponderEliminarÉ engraçado o amor que a terra nos desperta, não é? Eu que nasci e vivo na cidade, tenho um tal amor por aquele meu bocado de terra. E cada vez gosto mais de sentir os cheiros e os sons do campo, as cores, as texturas.
Fico contente de ter sido capaz, com as minhas palavras, de transmitir um pouco o ambiente sadio do campo.
PS: Experimente juntar batata doce, os guisados ficam óptimos.
Beijinho.
Caro P. Rufino,
ResponderEliminarTem graça como os ares do campo atraem tanto os urbanos.
É tão bom entrar no campo, observar a natureza na sua evolução, ouvir os pássaros, sentir a neblina ou o entardecer, os cheiros, os fumos das queimadas ao longe, a terra macia de musgos e folhas ou pedregosa, bela. é tudo tão bom, tão reconfortante.
Eu gosto muito da vida e dou graças por ser capaz de amar cada pequena coisa. Deleito-me com cada pequena coisa e gosto imenso de falar com as pessoas simples (as pessoas sofisticadas ou demasiado eruditas cansam-me; uma tarde numa festinha social e fico cansada, cansada; mas posso andar kms ou trabalhar durante horas e fico na maior).
Claro que o estufado foi acompanhado com um belo tinto frutado, macio. Castelão com um pouco de Touriga e Cabernet Sauvignon, um bouquet fantástico.
Gozemos a vida, pois claro!
Caro Autor de Traçados de Nós,
ResponderEliminarTem graça, consigo o movimento é ao contrário. Sai do campo para ir à cidade.
Diz que vê sorrisos - mas olhe que no campo as pessoas sorriem mais. O que há é mais gente.
Olhe, aqui para as minhas bandas, tanta gente, longas filas de carro, tanta gente em todo o lado, uma canseira.
Chego ao fim de semana e só me apetece isolar-me, descansar.
PS: No campo há um sossego diferente especialmente para quem, como é o seu caso, precisa de tempo para destilar as palavras que lhe saem tão despojadas, tão límpidas.
Querida Era uma Vez,
ResponderEliminarLi e fiquei emocionada com o poema, tão bonito, tão apropriado, tão meu, tão eu.
Como lhe acontece uma coisa assim? Sai de improviso? Ou faz e corrige, e volta atrás até sair assim, tão fantástico?
Li quando estava, há pouco, em casa do meu filho, li-o em voz alta e ficámos todos uns segundos calados, tão inesperadamente tocante foi.
Muito lhe agradeço, muito mesmo.
E anote-o aí nos seus arquivos para ir para o seu livro. Tem que ser.
Obrigada e um beijinho meu e da parte da família que mo ouviu ler.
Querida jeitinho
ResponderEliminarQuando a "provocação" é tão boa...tudo sai naturalmente, tão rápido como um texto em prosa. No final,um pequeno jeitinho com uma ou duas palavras como os pintores fazem antes de dar o quadro como acabado.
Mas hoje...tenho uma lagriminha ao canto do olho por saber que partilhou com os seus meninos.
"Tá certo" afinal eu também partilho os meus meninos consigo.
Que Deus os proteja a todos!
Faltou dizer uma coisa:
ResponderEliminarNa casa da nossa amiga de Paris está uma coisa gira e oportuna sobre maçons e opus dei.
Acho que vai achar graça.
Abracinho.
Obrigada pelo acolhimento.
ResponderEliminarGosto de escrever, mas sobretudo de ler e hoje este seu post completou o meu dia.
Transportou-me a terras minhotas e quase lhe senti os cheiros, os fumos, o musical do riacho que desliza procurando destino.
Na azafama da vida esquecemo-nos de olhar para a Natureza que nos vai dando de tudo e tão só vai ficando.
Parabens, mais uma vez e obrigada pelo estufado.
Amiga Era uma Vez,
ResponderEliminarGostava que tivesse visto a reacção deles (alguns pouco dados a poesia): calados, admirados, a acenarem que sim, que tinham gostado.
E já lá estive, que actual, que divertido - o que aqueles juntos se devem divertir!
Pôr do Sol,
ResponderEliminarJá são quase 2 da manhã, não tarda tenho que estar a pé e acabei agora de escrever o eu textozito de hoje.
E, antes de me ir deitar, nada como ver um comentário tão simpático que me lembra o pôr do sol lá na minha terrinha, que fica tão linda quando o sol se põe nas montanhas ao longe.
Fico contente que partilhe este gosto pelas coisas simples desta vida, coisas da natureza e do dia a dia.
Um abraço e só lamento é que, aqui pela net, não dê para partilhar cheiros - porque o meu estufadinho estava mesmo cheiroso.
Cara Amiga:
ResponderEliminarUma pequena explicitação sobre "aqueles" sorrisos. São sorrisos de um botão pequenino em flor, que fazem um homem, e uma mulher, renascendo, viver eternamente...
J. Rodrigues Dias
Tinha deixado comentário a este post?
ResponderEliminarNão entrou?
Se não, não me restam quaisquer dúvidas que a blogosfera embirrou seriamente comigo.
Abraço
Olá Teresa Santos!
ResponderEliminarNão senhora, a blogosfera não embirra consigo. O seu comentário foi escrito relativamente ao post abaixo e a ele respondi lá. Por acaso, ao lê-lo fiquei na dúvida se não se referiria a este.
Mas foi lido, está lá, sim senhora.
Por isso, pode continuar a escrever que aqui nada se perde...!
Caro J. Rodrigues Dias,
ResponderEliminarAh, percebo-o. Eu também tenho a sorte de me ver renascida, rodeada de sorrisos, três florzinhas pequeninas, que me enchem de uma imensa alegria, não apenas por elas e por mim mas também porque vejo as flores, das quais os botõezinhos nascem, felizes e realizadas.
Apesar do meu erro fico mais tranquila...
ResponderEliminarAbraço.