domingo, julho 06, 2025

Galinha-choca

 

Os meus avós paternos tinham, no quintal, uma grande capoeira. Havia o recinto ao ar livre, cercado por uma vedação e havia umas casinha que comunicava com o recinto através de uma passagem em arco. Podia entrar-se directamente quer para o recinto, quer para a casinha. Ao recinto ia-se para limpar e lavar o chão, com agulheta, para pôr água fresca, para lhes dar milho ou sêmeas. Aí os meus avós nunca queriam que eu entrasse. Mas deixavam-me ir à casinha. Espreitava a ver se não estava nenhuma galinha e para ver se havia ovos na cestinha. Se havia, eu recolhia-os. E, por vezes, a minha avó fazia-me uma gemada, quer com ovo completo quer apenas com gema. Mexia bem com um pouco de açúcar. Adorava.

Se alguma galinha ficava choca e isso lhe era permitido, então a galinha tinha direito a tratamento vip. Mas muitas vezes não queriam, não sei porquê, e sacrificavam a pobre da galinha com banhos debaixo da torneira do quintal, a galinha tentando fugir, estrebuchando com todas as suas forças, e o meu avô ou avó agarrando-a com firmeza.

Mas quando a coisa podia ir adiante, a partir de certa altura a galinha era deslocada para a 'casinha', não a pequenina, anexa à capoeira, mas um anexo que também havia no quintal. Esse anexo tinha uma parte com ferramentas, muitas, algumas penduradas na parede do fundo, outras em bancadas. Tinha também uma parte em que estavam os produtos colhidos pelo meu avô na horta. Batatas em caixas no chão, cebolas entrançadas penduradas em réstias, algos também pendurados, entrançados, e uma coisa de que eu gostava imenso, tomates chucha, também pendurados pela rama, igualmente entrançada. Duravam todo o ano. A casinha tinha umas janelas pequenas pelas quais entrava pouca luz e a porta, que tinha uma janela também com portada, tal como as janelas, também não deixava entrar muita luz. Era neste anexo, à meia-luz, que a galinha chocava os ovos. E era ali que nasciam os ovos. Para mim era um sentimento misto: por um lado andava sempre naquela expectativa: já nasceram? estão quase? os ovos já estão bicados? Mas, por outro lado, aqueles pintos meio molhados, esquisitos, feios, meio apardalados, intimidavam-me bastante.

A minha avó não queria que eu andasse por ali a cirandar e não queria que eu fizesse barulho. Por vezes, ajudava-os a nascer. E pegava-lhes. Eu nunca consegui. Bichinhos assim, demasiado frágeis, sempre me fizeram muita impressão.

Mas o pior foi o que uma vez aconteceu. Creio que já o contei mas, como não tenho a certeza, arrisco a contar. 

O meu pai houve uma altura que também quis ter uma capoeira no quintal. Felizmente foi sol de pouca dura pois nem ele nem a minha mãe tinham o mesmo à vontade que a minha avó. Mas, enquanto durou, calhou uma galinha ficar choca. Não sei porquê, resolveram montar apartamento para a galinha, creio que nos dias antes do 'parto', num recanto da sala de jantar. Quando os pintos começaram a sair dos ovos, foi uma atrapalhação. Para mim, pequena, aquilo era uma preocupação. Intuía que os parteiros não tinham sabedoria para a situação. E eles não queriam que eu andasse ali de roda para não stressar a galinha e os pintos. Só que eu não resistia a espreitar. E, numa das vezes, dei com um dos pintos estendido e a esticar uma perna. Apesar de ser uma criança pequena, já tinha ouvido a expressão 'esticar o pernil' e percebia o significado. Então, em pânico, saí dali a correr fui ter com a minha mãe, mas, tão, aterrorizada estava, que mal conseguia falar. A minha mãe não percebeu a razão daquele pavor mas eu empurrei-a para a sala de jantar e, com esforço, lá consegui balbuciar que o pinto estava a morrer. A minha mãe também não era corajosa para essas situações mas lá foi espreitar. Os pintos estavam todos bem. Chamou-me. Mas, quando um dos pintos se espreguiçou, meio a dormir, esticando a pata, ela percebeu o que tinha acontecido.

Ao ver, no vídeo que aqui partilho, o pinto recém-nascido a cair de sono, lembrei-me disso.

E ao ver os pintos a quererem sair do ovo, voltei a sentir, mas a sentir vividamente, aquele susto e receio que sentia há mil anos, quando, pequenina, num compartimento quase sem luz, aguardava que o milagre do nascimento se desse.

Esta galinha mãe fala com os seus ovos – e eles cantam de volta! | BBC Earth

Já se perguntou como é que uma galinha ajuda os seus pintainhos a chocar? Conheça a Patricia, uma galinha anã de Pequim dedicada, que mantém os seus ovos à temperatura ideal e cacareja suavemente para guiar os seus pintos ao mundo.


Um bom dia de domingo

1 comentário:

  1. Recordar é viver, e esta descrição, parece uma adenda a outra anterior que fiz.
    Os meus avós maternos também tinham um quintal, anexo a um prédio sem agua e luz e cujo saneamento era uma pia na cozinha para tomar o café com cheirinho, ( como morávamos no r/c a nossa pia era exterior á casa,) em plena capital do que restava do império, perto de um palácio onde agora se finge jurar pela honra cumprir as funções confiadas, e perto do meu parque infantil que era um depósito de estrume a céu aberto, com 100m de comp. talvez 15m em média de largura e 2m de alt, (ou profundidade, pois nós - a canalha miúda- escalávamos a escarpa adjacente para ir á fruta na quinta de cima e saltávamos para o estrume quando os cães se aproximavam, ficando enterrados até ao meio das pernas, isto quando não batíamos de cara no estrume ) paredes meias com um rego de água feito esgoto e que desaguava num túnel de esgoto em direção ao tejo. O meu avô, que era almeida, ( recolhia o lixo com uma carroça puxada a mula) cujo local de trabalho era a 2-3km de casa, trazia sempre uma canga com 2 latas de restos que apanhava do lixo para alimentar a criação, que incluía galinhas, coelhos e até por vezes um ou outro suíno. Além dos bichos havia figueiras e uma horta que dava tudo. Não havia dinheiro mas havia comida. O meu avô morreu de tuberculose antes de eu nascer, e a minha avó teve de desistir do quintal, que o senhorio dividiu em 4/5 pequenos lotes de talvez 50 m2 pelos outros inquilinos do prédio. A minha avó ficou com um pequeno saguão de cimento, anexo, onde se fizeram pequenas capoeiras para meia duzia de galinha e coelhos, que eu tratava antes de ir para a escola ou quando comecei a trabalhar aos nove. Contava a minha avó que também faziam isso de levar um cesto com os ovos e as galinhas para o quarto, pois nem na cozinha podiam ficar pois as ratazanas tratavam deles. Nas cheias de 67, salvo erro, a padaria ao lado que tinha um forno a lenha e depósito de lenha que servia de resort para a bicharada, foi inundada e houve uma invasão dos quintais de tal ordem que os novos inquilinos que ficaram com os quintais perderam tudo para as ratazanas. Num outro quintal bem maior lá perto, onde tinham ovelhas, onde eu gostava de ir assistir á tosquia, até algumas foram mordidas. As nossas galinhas que estavam no saguão cimentado no lado oposto escaparam. Recordar é viver, e eu revivi agora esses tempos com esta sua descrição. M. LiNHO.

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