quarta-feira, março 19, 2025

De facto, nunca se sabe...

 

Quando vejo o que já fiz fico espantada. 

Lembro-me sempre de quando um colega de trabalho veio a minha casa. Quando apontei as carpetes de Arraiolos (por exemplo, esta aqui ao lado) e disse que tinha sido eu a fazê-las, ele ficou espantado. Na brincadeira disse: 'Mas como? Quando vou ao seu gabinete, nunca a vi a fazer...'. Na realidade, chegando a casa sempre bastante tarde, tendo filhos, tendo jantar a fazer, levantando-me sempre cedo, como conseguia eu fazer aquelas grandes carpetes apenas à noite ou ao fim de semana, sendo que, ao fim de semana, íamos para o campo com toda a demorada logística que isso acarretava, lá andava nas jardinagens e noutras actividades, como conseguia...? E, no entanto, conseguia. Adorava fazer. E bordava a um ritmo impressionante.

Hoje fotografei duas colchas de crochet, uma das quais feita por mim (a que está aqui abaixo). Em que momento a consegui fazer, tão grande? Creio que a fiz ainda solteira. Ora, como se, durante a semana, estava por minha conta e muito longe de crochets, e se, ao fim de semana, tinha o meu namorado lá em casa? Custa-me a perceber. Mas a verdade é que a fiz.

Da mesma maneira quando vejo as dezenas, dezenas, muitas, muitas, telas que pintei. Como? Como consegui eu pintar tudo aquilo?

Talvez seja o mesmo espanto com que fico quando me ponho a seleccionar ou a tentar organizar textos que escrevi aqui (e no Ginjal & Lisboa, a love affair). Não sei como consegui escrever tanto, em especial quando a maior parte foi escrita estando eu a trabalhar de sol a sol, carregada de trabalho até à ponta dos cabelos. 

Olho para trás, para todas estas fases e espanto-me como se não fosse eu. Na verdade, não me lembro de qualquer esforço, nem tenho ideia de que fosse grande feito. Apenas sei que o fazia com prazer. E, em qualquer dos casos, apenas deixei de fazê-lo por não ter onde pôr o que fizesse, se continuasse a produzir. 

E não estou a falar de tudo, pois, por exemplo, também houve a fase do tricot. Fiz camisolas, casacos, até que chegou a Zara com malhas giríssimas e a bom preço e já não fazia sentido usar as minhas peças.

Mas o que, nisto, para mim é mais espantoso não é nada do que falei: o mais espantoso é que, durante todos esses anos, a minha actividade principal não teve nada a ver com nada disto. Era uma executiva, creio que bem sucedida, exigente, creio que uma boa profissional. Contudo, olho para trás e parece que pouco ficou. Do resto ficaram colchas, tapetes, pinturas. Mas das longas décadas de trabalho o que ficou foram memórias que com o tempo se esbaterão pois parece que tudo aquilo só fazia sentido naquele contexto, naquele tempo. Saída desse contexto, o que vivi parece que pouco ou nada interessa, nem a mim nem a ninguém.

De facto, nunca se sabe o que fica daquilo que é a nossa vida. 

Estou agora numa outra fase. 

Hoje fomos almoçar a um restaurante naquela zona da cidade de que tanto gosto, Alvalade. Felizmente arranjámos facilmente estacionamento e felizmente fomos muito bem servidos. E aproveitámos para passear e ver o pequeno comércio tradicional, de que tanto gosto. Mas o ruído da cidade, o trânsito, isso já nos incomoda um bocado. Parece que estamos melhor no nosso sossego, nas nossas insignificantes tarefas domésticas, respirando o ar puro, jardinando, cozinhando, passeando com o nosso cão. 

Aqueles tempos exigentes do traçado dos objectivos, das sempre difíceis avaliações, dos projectos complexos, das fusões de empresas, das grandes reorganizações, na negociação de grandes contratos internacionais, parecem coisas meio difusas das quais não sobrou prova, pelo menos nada que possa pôr no chão, numa parede, numa cama.

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Mountain Girl 

- Documentary Short Film

Award-winning (Silver Telly 2024 - Documentary Under 40 Minutes) inspiring mini-documentary about aging gracefully and overcoming the obstacles in life with an 80-year old retired fashion model (Vogue, Bazaar) and a star of a cult classic film "Manos: The Hands of Fate" (as Diane Mahree). 


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Dias felizes

6 comentários:

  1. Como a compreendo! Tantos anos de vida exigente, muito parecida ao que descreveu e, hoje, felizmente, a poder usufruir do aconchego da família, mesmo não tendo um momento de ócio, envolvida nas “ insignificantes tarefas domésticas” , como refere, e… uff… que alívio, já ninguém a tratar por “senhora dra.”! Muitos anos para si, com muita saúde, a dedicar-se às pequenas/grandes coisas da vida.
    Um dia bom
    Filo

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    1. Olá Filo!
      Tal e qual. Hoje, ao caminhar com um belo chapéu de chuva aberto, pensei: olha, afinal sempre ficaram boas coisas daqueles anos, chapéus de chuva, por exemplo. Quando havia encontros no inverno, às vezes ofereciam chapéus de chuva, grandes, fortes, resistentes.
      Agora, quando os meus filhos me falam das suas odisseias profissionais, penso que felizmente 'já estou fora'.
      Por exemplo, agora vim sentar-me aqui (são 19h). Estive a fazer sopa, a fazer um entrecosto guisado com favas (que ainda está a apurar). Não sei como me arranjo, sempre a fazer isto ou aquilo, parece que o tempo passa a correr, não é? Mas é bom.
      Abraço, Filo

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  2. Restaurante em Alvalade... abriu-me apetite. Ainda me lembro no Tico Tico escolher o bife e ser pesado,--bife ao kg--. Muito bom.
    Os Courenses também , aqueles minhotos são de primeira.
    Já agora, parabéns pela "Arraiolos" é lindíssima.

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    1. Durante anos almocei, várias vezes por semana, no Tico-Tico. Belos bifes. E belos croquetes.
      Ontem foi no Cobaia. Outra onda. Mas comida muito bem confeccionada. Um risoto de polvo que estava de comer e chorar por mais.
      Não conheço os Courenses, hei de averiguar.
      Bom apetite para o jantar, caso ainda não tenha jantado!

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