terça-feira, agosto 27, 2024

Caro Leitor, não se assuste. Não fuja. Isto não tem que meter medo.
Vou falar, mas muito ao de leve, em Ser mortal

 

Sempre tive pavor da morte. Nunca consegui ver, ao vivo (passe o disparate da expressão neste contexto), nenhum morto.

Há pouco tempo uma amiga contava que, quando a mãe tinha morrido, tinha resolvido que ela iria (ora aqui está outro verbo desajustado neste contexto pois nenhum morto 'vai', quando muito 'levam-no') vestida com uma camisa de dormir branquinha com rendinhas. Depois resolveu mandar fazer uma bandelete com florzinhas para a mãe levar no cabelo. Diz que o pai, quando viu a mãe, disse que ela estava mesmo bonita assim. Perguntei se ela tinha conseguido ver a mãe, Disse que sim, claro. Corajosa.

Também nunca gostei de conversas sobre a morte. 'Ai que mórbido', sempre disse quando o tema deslizava para esse buraco (desculpem o mau gosto da expressão). Fugia a sete pés de conversas sobre doenças terminais, sofrimentos atrozes, estados de quase morte. Parece que tinha medo de ter medo, tinha medo de ficar a pensar no assunto e ficar aterrorizada.

Por isso, morreram-me pai e mãe sem que nunca nenhum de nós tivesse falado em vontades relacionadas com o seu fim. Quer dizer, o meu pai pedia muitas vezes para o deixarmos morrer. Mas ficávamos chocadas, não queríamos que ele dissesse isso, parecia quase coisa de mau gosto (olha que coisa mais estúpida de eu agora dizer). Mas quando ele, coitado, infeliz até à última das suas células, queria que o deixássemos desistir, eu era parva até dizer chega, dizia para ele não dizer isso, dizia que ele estava confortável na sua cama, não tinha dores. Burra, mil vezes burra. Como se estar numa cama (embora sem dores) fosse motivo suficiente para se querer viver.

Mas eu não estava preparada nem fui formatada nem aconselhada nem nada para lidar com uma situação assim. Apegamo-nos à vida daqueles que amamos e não os queremos deixar desistir. Nem paramos para pensar que, com isso, estamos apenas a querer que sofram mais.

Nunca me passou pela cabeça ter uma conversa assim: 'A sua vida vai disto para pior. Por isso, vamos falar francamente. Como gostaria de viver daqui até morrer?'. Nunca. Nunca. Nem teria coragem. Parece que estaria a assumir que admitia que ele fosse morrer. E, assumindo, poderia parecer que estava a desistir. 

Fui muito cobarde. Fingi até ao fim que ele teria razões para estar bem, que não deveria querer desistir. Se calhar, por isso, por me saber frágil, nem ele, nos seus momentos mais lúcidos e deprimidos, foi capaz de me dizer para deixar de ser parva, para cair na real, para assumir de vez que ele era mortal e que merecia poder ter uma palavra sobre como queria viver os seus últimos tempos.

Sobre a minha mãe, ainda foi mais traumático. Estando obviamente moribunda, nunca consegui deixar transparecer que sabia que ela estava por dias, nunca fui capaz de ajudá-la a enfrentar a sua mortalidade. Ela não queria morrer. As enfermeiras diziam que ela chorava e pedia para não a deixarem morrer. Eu ficava transida de medo que ela me pedisse isso a mim pois não saberia o que dizer, seria um sofrimento insuportável para mim pois, deixando que ela percebesse o meu sofrimento, provavelmente fá-la-ia sofrer ainda mais.

Quando a psicóloga da ala dos Cuidados Paliativos me chamou para falarmos, nunca cheguei a perguntar como, perante uma pessoa moribunda, devemos comportar-nos. Eu gostava de ter tido coragem de dizer: 'Vai morrer em breve, mãe. Toda a gente morre. Não é uma fatalidade morrer. Estamos a fazer de tudo para que sofra o menos possível. Não tenha medo, mãe. Não vai custar. Pode ir em paz que eu cá me arranjarei, não se preocupe comigo.' Claro que não tive coragem. Nem de longe nem de perto. O meu comportamento foi o mais oposto disto. Dizia: 'Está com melhor aspecto hoje. Não chore. Já esteve pior, está a melhorar. Tenha esperança'. 

Saía de lá arrasada. Não apenas me era doloroso até ao limite por vê-la assim como vinha atordoada por intuir que a minha cobarde atitude não seria a mais indicada. Ficaria ela mais tranquila se soubesse que eu iria aceitar bem a sua morte? Não sei, não faço ideia.

Já lá vão sete meses que a minha mãe morreu e quatro anos o meu pai. E continuo a achar que a forma como lidei com a sua finitude e com os momentos que precederam a sua morte foi pouco racional, muito dolorosa e que, para eles, não sei se foi a mais adequada ou se queriam também ter agido de outra forma e não o fizeram para me poupar ou porque não venceram os seus próprios medos.

Penso hoje, e penso cada vez mais, que a forma como toda a vida fugi do tema da morte e como fui poupada a isso, não faz sentido. Eu deveria ter estado melhor preparada.

No mês em que a minha esteve internada, às portas da morte, eu vi dezenas de vídeos em que médicos, enfermeiros ou doentes falavam da pré-morte. A minha família achava que eu, ao querer saber mais e mais e mais, estava a auto deprimir-me, corria o risco de ficar passada. Mas não. Estava apenas a querer adquirir algum conhecimento sobre algo para mim totalmente desconhecido. Mas não me serviu de nada. Continuei assustada, sem saber se devia assumir perante a minha mãe que sabia o que se passava ou se devia manter aquela atitude palerma de parecer optimista.

Uma outra coisa em que tenho pensado muito é na fobia e na aversão que a minha mãe tinha a medicamentos. Temia os efeitos secundários, achava que lhe faziam pior do que a doença em si. Por não tomá-los esteve duas vezes internada, o que, curiosamente, ela aceitava bem. Era como se ganhasse uma vida adicional. Pelo contrário ficava deprimida, assustada, aterrada, infeliz quando era convencida a tomar os medicamentos (e não sei se os tomava pois arranjava maneira de nunca ninguém ver). Mas não deveria eu ter respeitado a sua vontade e aceitado pacificamente que a minha mãe não queria tomar medicamentos? Só fico na dúvida pois ela não queria tomá-los porque preferisse morrer. Não. Ela queria viver. Queria era viver sem tomar medicamentos. E isso, em meu entender (e dos médicos), não era possível. Só que nunca houve a coragem de ter uma conversa franca em que num dos pratos da balança estivesse uma decisão consciente de encurtar a vida, embora vivendo a seu gosto, sem medicamentos, e no outro prato a decisão de tomar medicamentos e viver aterrada com os efeitos secundários.

São questões complexas. Ter conversas deste tipo exige preparação, coragem.

De uma maneira ou de outra todos teremos um dia que passar por situações assim ou com pessoas que nos são queridas ou mesmo connosco. Um dia, esperemos que longínquo, seremos nós a estar nas últimas. E, pelo menos pela parte que me toca, gostaria de ter a coragem de falar abertamente nisso com os meus, gostava de poder ajudá-los a enfrentar a situação da melhor forma melhor possível. 

Por exemplo, custa-me pensar que um dia, estando eu ainda lúcida e com vontade de viver, alguém possa decidir por mim que já não posso viver em minha casa, que tenho que ir para um depósito em que os velhos e os incapacitados passam os dias em cadeiras de rodas, a dormir de boca aberta, sem um único propósito de vida. Ou que, perante um cenário complicado, alguém me force a estar acamada, de fraldas, entubada, sem voz activa para coisa alguma.

Ou seja, é um tema que é bom que seja falado, discutido, que deixemos cair os tabus, que sejamos capazes de enfrentar os nossos medos, que conversemos, que troquemos experiências e opiniões.

Finalmente acabei o 'Ser Mortal' de Atul Gawande, médico. É um livro que gostei muito de ler. Fala da sua experiência pessoal e do que tem pensado e estudado sobre o assunto. O livro tem uns anos e os vídeos que aqui partilho também. Contudo parece-me que a realidade é ainda a mesma do que tudo ali se diz.

Dr. Atul Gawande on what we should .be asking in end-of-life care

Dr. Atul Gawande helped transform the conversation about aging and death in his book, "Being Mortal: Medicine and What Matters in the End." The book spent 85 weeks on the New York Times Best Sellers list and is now available in paperback. Dr. Gawande, a surgeon at Brigham and Women's Hospital in Boston, joins "CBS This Morning" to discuss the importance of focusing on how someone wants to live at the end of their life -- not just how to keep them alive.


When Should Dying Patients Stop Treatment? | Being Mortal |

Why is it so hard for doctors to speak openly with their terminally ill patients about death as the end nears? Dr. Atul Gawande, Boston surgeon and author of the best selling book "Being Mortal" had a remarkably candid and intimate conversation with the widower of a deceased patient and apologizes for offering false hope in the end. 

It's the story of Sara Monopoli who was diagnosed with Stage 4 lung cancer during the 9th month of her pregnancy at the age of 34.

Desejo-vos um dia bom
uma vida longa e feliz

Sem comentários:

Enviar um comentário