quinta-feira, junho 27, 2024

Adélia Prado, o feliz Prémio Camões 2024

De vez em quando fico mesmo contente com o Prémio Camões do ano. Este ano foi uma dessas escolhas felizes. Como bem sabe quem por aqui me acompanha, Adélia Prado tem uma voz que muito me agrada. Gosto de escritas desarrumadas, espontâneas, em que as vísceras e as mãos e tudo fala para que as palavras se ajeitem, seja em prosa seja em poesia. Parece que escreve o que lhe ocorre, sem preocupação em 'fazer bonito'. Se calhar até é uma escrita burilada, não faço ideia, mas sente-se que as palavras vieram motu proprio, ninguém as chamou. Escolheram-se umas às outras, e imagino que ela pare para perceber se fazem sentido e, se à primeira vista, parecem não fazer, acredito que ela as deixe lá estar na mesma pois, se não faziam sentido, passarão a fazer.

Já aqui o tenho confessado. De leitora assídua de poesia, agora ando mais distante. Parece que, na actualidade, a poesia perdeu a genuinidade, perdeu o viço, há muita banalidade, muita coisa disparatada sem ponta por onde se pegue.

O meu marido, pouco ou nada dado a poesias, há pouco ia a passar e ouviu na televisão a notícia do Prémio Pessoa. Perguntou-me: 'Essa não é aquela de que gostas muito?'. Disse-lhe que sim. Ele confirmou: 'Uma que escreve umas coisas que não fazem sentido...?'. Confirmei. 

Justamente. A beleza de uma escrita assim está na capacidade de escrever o que os outros não dizem, na originalidade de escrever o que a mais ninguém ocorreria dizer, ou, pelo menos, dizer dessa forma.

Tenho na minha secretária um livro dela. Tenho na mesinha ao lado do cadeirão que está ao lado da janela uma pilha de livros e um deles é dela. Tenho no parapeito da janela ao lado do sofá em que estou outra pilha de livros e um deles é dela. De vez em quando parece que sinto vontade de ler uma coisa inédita. É que posso ler muitas vezes o que ela escreveu que me parece sempre inédito.

Que Prémio Camões tão bem dado, tão feliz.

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No meio da noite

Acordei meu bem pra lhe contar um sonho:
Sem apoio de mesa ou jarro eram
as buganvílias brancas destacadas de um escudo.
Não fosforescia nem cheirava nem eram alvas.
Eram brancas no ramo, brancas de leite grosso.
No quarto escuro a única visível coisa, o próprio ato de ver.
Como se sente o gosto da comida eu senti o que falavam:
«A ressurreição já esta sendo urdida, os tubérculos
da alegria estão úmidos vão brotar sinos».
Doía como um prazer.
Vendo que não mentia ele falou:
as mulheres são complicadas. Homem é tão singelo.
Eu sou singelo. Fica singela também
Respondi que queria ser singela e na mesma hora,
singela, singela, comecei repetir singela.
A palavra destacava-se novíssima
como as buganvílias do sonho. Me atropelou
— O que foi? — ele disse:
— As buganvílias…
Como nenhum de nós podia ir mais além,
solucei alto e fui chorando, chorando,
até ficar singela a dormir de novo.

Adélia Prado, Bagagem

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Documentário Adélia Prado: uma mulher desdobrável


Adélia Prado - a vida é mais tempo alegre do que triste



Adélia Prado, a simplicidade de um estilo


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Salve Adélia Prado

3 comentários:

  1. UJM
    Penso que se enquadra na sua prosa estas duas celebridades: no cinema, Anthony Quinn. Outra, na luta de uma vida pela liberdade como politico e compositor de grandes musicas intemporais, Mikis Theodorakis.

    https://www.youtube.com/watch?v=uIxB89b_nfs.

    E depois, para lanche… Um imperdível "Cozinheiro" que, de cozinha, sabe tanto quanto eu, mas que nos delicia com a linda paisagem e a saudável ruralidade de um Povo Santomense tão bem mostrada por João Carlos Silva, que me deleitou quando estes episódios passavam na RTP2 já lá vão anos.

    https://www.youtube.com/watch?v=q1_3KdhprZQ.

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  2. Afinal em que ficamos? Prémio Pessoa ou Camões?

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  3. Caro Anónimo

    Tem razão. Que 'dislexia' mental a minha. Já devia estar meio a dormir... Já corrigi. Obrigada!

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