domingo, outubro 29, 2023

Desbastar árvores.
Tentar controlar exacerbados medos (alheios)

 

Estava ainda na cama, comecei a ouvir um barulho. Claro que a essa hora o meu marido já estava levantado há não sei quanto tempo, já tinha regressado do seu passeio matinal com o urso felpudo. 

Apurei o ouvido. Percebi que estava a trazer qualquer coisa da cave.

Depois ouvi abrir a porta da frente. E um ruído metálico. Depois ele a dizer à fera que se desviasse.

Estremunhada, um sino tocou na minha cabeça. Ia desbastar as árvores do jardim junto à entrada.

Num salto, apeei-me da cama e, à trouxe-mouxe, enfiei uma roupa qualquer. Num ápice, estava fora de casa

Já ele tinha desdobrado a escada, já estava encavalitado, lá em cima, em acção, com serrote e podão de cabo extensível.

Concordei que fosse podar aquela profusão de ramos pois as duas árvores estão gigantes, compactas, não deixando passar o sol e impedindo o desenvolvimento da relva por baixo. E provavelmente a falta de sol ia atrofiar a magnólia. Mas não quero é que ele faça isso sozinho. Primeiro, receio que a escada resvale ou que ele resvale e que eu não esteja para acudir. Depois, receio que corte o que não deve pois, estando lá em cima, no meio dos ramos, perde a perspectiva e pode cortar a eito. Acresce que há uma trepadeira que dá flores muito bonitas que se suporta nos ramos da árvore. Por isso, não se pode cortar nenhum ramo em que ela esteja presa, senão é para a desgraça.

Portanto, andei a ajudá-lo, não só apontando para os ramos que podiam vir abaixo como, depois deles cortados, puxando-os e arrastando-os para um monte.

Foi mais de uma hora, talvez mais de duas, não sei, de volta daquela árvore. Ainda podia tirar-se mais uns quantos mas já não são alcançáveis com a escada.

Talvez este domingo se trate da outra árvore.

Este é o tipo de coisa que gostamos os dois de fazer: desbastar árvores. 

Sempre gostei embora na base da cabeleireira. Aparar, cortar umas pontas, com um gentil podãozinho. Batia-me por elas quando o meu marido queria reduzi-las a metade do volume, de serrote e podãozão em punho. Mas agora já percebi que, se não tentamos conter a natureza, ela acaba por nos devorar. E, com sensibilidade e bom senso, as coisas podem parecer em estado natural e, ainda assim, estarem sob controlo.

Claro que este foi o momento levezinho pois houve também o momento denso com a minha mãe. Nada de diferente dos outros dias. Mas uma pessoa chega a um dia em que parece que atinge o limite das suas capacidades.

Não consigo perceber se ela sempre foi como é agora, embora tivesse mão em si própria (e, portanto, fazendo com que não nos apercebêssemos), ou se está mudada. Não consigo perceber. Os meus filhos acham que está mudada, dizem que a avó não era assim. Eu não estou certa disso. O que sei, e disso tenho a certeza, é que o medo que tem de estar doente e o medo de não estar cabalmente diagnosticada, associado ao medo de fazer os exames como deve ser e, sobretudo, tudo potenciado pelo medo de tomar medicamentos, dão-lhe cabo da cabeça a ela e a mim. Por mais exames que faça, acha sempre que ainda não foi devidamente avaliada. Ou acha que os médicos não prestam. E, sempre que lhe receitam alguma coisa, faz de tudo para não tomar os novos medicamentos. E faz de tudo, mas tudo, para convencer toda a gente, nomeadamente os mil médicos a que já foi, que os medicamentos que está a tomar a deixam mais doente do que se não se tratasse. Isto apesar dos exames todos demonstrarem que não tem nada a não ser a doença para a qual está a ser tratada.

Como também tem medo de tomar ansiolíticos, fica muito difícil de lidar com a situação (difícil, muito difícil, para ela e para quem lida com ela, nomeadamente, eu).

Tantas vezes, tantas, tantas, parece estar muito mal, convence-se que está muito mal, transmite-me e mostra-me que está nas 'últimas' e tantas, tantas, tantas vezes não é nada -- e, mal se distrai ou abstrai, fica como se nada fosse --, que fico sempre a achar que é mais uma das suas crises exacerbadas. Mas receio que um dia seja a sério e que eu erradamente desvalorize. Mas, quando estou nesta preocupação, passado um bocado já ela está noutra. Noutra... pois, logo de seguida, já está outra vez muito, muito mal, mas com um outro sintoma.

Hoje disse-me que os meus tios é que têm sorte de ter uma filha médica pois assim a minha prima sabe sempre avaliar o estado de saúde dos pais. Pois. Infelizmente não posso fazer nada para resolver essa pouca sorte dela. Não apenas não tenho conhecimentos médicos como, além disso, ela não liga patavina ao que eu digo. Por vontade dela, para ultrapassar as minhas limitadas competências, todos os dias eu pegava nela e levava-a para as urgências. 

Muito complicado. 

De facto, nunca pensei que se transformasse desta maneira. Não quer fazer tricot ou crochet, diz que não tem paciência, diz que nada na televisão lhe interessa, não pega num livro, não conversa de outra coisa que não das suas doenças. Em cima disso, sabe de cor as bulas dos medicamentos, pesquisa no google tudo sobre doenças ou tratamentos e... fica com todos os sintomas que lê. 

Desperdiça estupidamente estes seus anos. E, por mais que a tentemos convencer a tratar-se da ansiedade, não quer, irrita-se comigo, fica furiosa: acha que está tão mal, fisicamente tão, tão mal, e eu, insensivelmente, a desvalorizar. Isto apesar de todos os médicos lhe dizerem o mesmo. Mas depois acha que eu é que influencio os médicos. Por mais que lhe diga que não falei nisso aos médicos, não acredita.

(Enfim, é o que é. Escuso de para aqui estar nesta lamúria porque é o que é. Além disso, acho que só que quem passou por isto é que consegue perceber como é.)

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A conversa hoje está pouco animada, não está...?. E eu não gosto de vir para aqui chatear os outros com as minhas minudências. Por isso, pedindo-vos desculpa pela conversa, bora mas é lá dançar.

Play by Alexander Ekman


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Desejo-vos um bom dia de domingo

Saúde. Ânimo. Paz.

4 comentários:

  1. Querida Um Jeito Manso,

    Não é facil lidar com o medo que se instala na cabeça dos nossos idosos. Não sei como serei quando chegar a esse estado mas a vivencia que tenho leva-me a supor que serei diferente.

    Talvez não devesse contar-lhe a minha experiencia mas aconteceu, e o seu caso é diferente.

    O meu sogro pessoa ativa, empática, bom vivant e esclarecido politicamente, desempenhou funções de chefia durante várias decadas numa grande empresa. Depois do 25 de Abril, perdeu a paciencia com PREC, sindicatos, comissões de trabalhadores e reformou-se.

    A mudança de vida foi radical. Para alem do apoio que dava na secção do partido que abraçou, pouco mais fazia. Passou a querer filhos e netos sempre por perto alegando doenças e o pouco tempo que lhe restaria.

    Morando perto do HSFX passava o tempo em consultas e exames, nunca se chegando à conclusão de algo mais grave alem das normais para a idade. O feitio ficou dificil, esquesito com a comida que sempre comera. O facto é que fazia febres. Aconselhado a mudar de ares, recusava-se afastar-se do hospital. Mas quando os netos o convenciam passava os dias bem e até se divertia. De tempos a tempos ficava internado. Os médicos interessavam-se e queriam descobrir o que passava. Chegou a estar internado dois meses sem diagnostico.

    Quando lhe disseram que passaria uns tempos numa casa de repouso com assistencia medica permanente, faleceu no dia em que seria transferido.

    Do resultado da autopsia nunca soubemos, pois entretanto houve mudança de medicos e serviços. Tudo isto se passou há cerca de 15 anos.

    Como diz é complicado e soluções creio que não passariam por tê-la convosco, se aceitasse. Tambem experimentamos e condicionou a vida de todos.

    Não a devo ter ajudado mas saiba que a compreendo. Há que ter paciencia.

    Um beijinho. Bom domingo com paz e saude





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  2. Olá Querida Pôr do Sol

    Ao ler o que escreveu, sinto uma grande proximidade em relação à situação que atravesso.

    Ainda ontem eu dizia à minha mãe que já tinha ido a tantos médicos, já tinha feito tantos exames e análises que já não havia mais nada a investigar, que não se tinha descoberto nada, que descansasse, que esquecesse doenças e sintomas. Por ironia, acrescentei que, mais que isso, só se ela quisesse internar-se num hospital para a inspeccionarem de alto a baixo, literalmente da cabeça aos pés. Pois respondeu que, se calhar, era isso mesmo que deveria ser feito... E não estava a brincar. Muito longe disso, estava mesmo a sério.

    Na última vez que esteve internada, poderia ter ficado em internamento domiciliário pois o que tinha facilmente se tratava em casa, poderia fazer a vida normal, e ia uma enfermeira ou um médico lá a casa para avaliar a evolução. E nós achávamos que seria o ideal. Pois quis ficar no hospital e ninguém a conseguiu demover. Uma médica até me disse que eu tinha que aceitar isso pois ela estava lúcida e, se queria ficar internada, tínhamos que respeitar a vontade dela. E isto, cremos nós, sobretudo para poder fazer mais exames, ser avaliada por enfermeiros e médicos a toda a hora. E estava sempre a dizer-me para eu não pedir para lhe darem alta mais cedo pois queria sair só quando estivesse completamente bem.

    Pois, quando finalmente teve alta, fresca, tudo bem, no dia seguinte de manhã estava aqui em casa toda chorosa pois sentia uma coisa num pé. Perguntei-lhe porque tinha esperado para ter alta para se queixar, porque não se tinha queixado lá no hospital. Disse que não tinha dito nada porque estava internada por outro motivo. Segundo percebi, não quis que o tema do pé perturbasse o tratamento da causa do internamento. Como se os médicos, por ela sentir qualquer coisa no pé fossem deixar de tratá-la convenientemente à doença que tinha (doença essa, normal para a idade, que, se convenientemente tratada, não dará chatice nenhuma -- só que não estava a tomar os medicamentos que devia).

    E, portanto, no dia seguinte a ter alta, entrámos no capítulo do pé. E, de lá para cá, tem sido uma sucessão de episódios, de crises, de idas a médicos, a urgências, a exames (desde o pé ao ouvido, a isto, àquilo, àqueloutro -- tudo). Já lhe explique mil vezes que os exames médicos têm validade de 6 a 12 meses, que não vale a pena estar sempre a fazer mil exames, que os anteriores estão válidos. Mas, por ela, todas as semanas fazia análises, eco qualquer coisa disto e daquilo, rx, etc. E sempre numa desestabilização total, sempre aflita, cheia de medo, numa ansiedade tremenda.

    Mas, felizmente, hoje esteve mais tranquila. Talvez estivesse na ressaca da grande crise de sábado. Quando ela está assim, eu respiro de alívio, parece que estou no céu.

    Só espero (se chegar à idade dela...) não deixar de ser como sou e nunca dar preocupações destas aos meus filhos. Já lhes disse que, se alguma vez, me passar e não tiver consciência, que me ponham, nem que seja à força, numa residência assistida (casa de repouso, lar, o que for) pois aterra-me a possibilidade de vir a dar-lhes trabalhos e preocupações.

    Mas, enfim, há que tentar encarar isto com alguma leveza, com alguma serenidade, com muita paciência...

    E não podemos esquecer-nos que, em boa verdade, nunca sabemos como será connosco...

    E ajudou-me, ajudou-me. Nestas coisas a gente sente-me melhor quando sabe que já outros passaram por situações parecidas...

    Muito obrigada.

    Um grande abraço, querida Sol Nascente.

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  3. Olá UJM, eu também já passei por uma crise aguda de ansiedade e a minha sogra já passou por por uma fase muito parecida com a da sua mãe. Posso lhe dizer que não houve droga que me curasse. O que me curou foi perceber aos poucos que a vida continua, contactar com pessoas com problemas idênticos e ocupar a cabeça com tarefas objetivas. Claro que para passar por esse processo mental precisei de me acalmar primeiro e fiz isso saindo de casa por umas semanas para um sítio onde me sentia segura. Agora a gente chama-lhe ansiedade mas devíamos chamar-lhe apenas de medo. A sua mãe, depois de anos a cuidar do seu pai e em que estava entretida a fazê-lo, agora está sem nada para fazer e com medo porque vai morrer e está sozinha. Como diz, é o que é. Nem toda a gente consegue encarar o touro de mãos na cintura e ombros levantados! A minha sogra tem vindo a acalmar-se, convenci-a que ela não morre tão cedo porque até agora tem errado em todas as estimativas que tem feito de morrer no dia seguinte, e tem-se entretido mais com a jardinagem (fizemos-lhe uma bancada para ela não se abaixar!). Sei que a UJM já saberá disto tudo, assim como no fundo a sua mãe também o sabe. É preciso é cortar com o ciclo e depois arranjar o que fazer. E se nada funcionar, tem a UJM de arranjar uma carapaça e começar a proteger-se a si mesma, porque infelizmente na vida, embora haja coisas que têm solução, há outras que não a têm. Peço desculpa por algum tom menos apropriado do comentário e boa sorte.

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  4. Muito obrigada pelo seu testemunho. É muito importante para mim.

    Temos tentado de tudo para a minha mãe se interessar por coisas que a distraiam mas perdeu a paciência com tudo. O tempo não lhe chega para ver andar a medir a tensão, para ler bulas, para ler os seus muitos livros de medicina, para consultar artigos médicos via google e para ficar a empreender em sintomas, doenças e tratamentos. Nem se interessa já muito pelos netos e bisnetos pois por mais que eu tente entusiasmá-la contando-lhe proezas deles, vejo que não está nem aí, muda de assunto e vira o disco e toca o mesmo, e, embora não o assuma pois tem sempre argumentos, parece-me que faz de tudo para não se encontrar com eles com receio que a contagiem com alguma virose ou coisa do género. Tem um medo terrível de se constipar mas isso até percebo. Não se interessa pelo jardim, pelo tricot, por nada com que antes se entretinha.

    Duas amigas minhas que são médica, dizem que ela deve ser daquelas pessoas que somatizam excessivamente, transformando os medos em sintomas e em doenças e que isso é uma coisa complexa pois pode confundir os médicos. Imagine a mim que não sou médica.

    Do que me lembro da minha mãe, ela sempre foi um bocado hipocondríaca mas trabalhava, dava aulas, estava bastante ocupada, acabava por se distrair e esquecer e, na maior parte do tempo, porque era mais nova e saudável, andava bem.

    E tem razão na sua análise. Agora, porque desapareceu o cuidado permanente pelo meu pai e, ao mesmo tempo, porque não se tratou como devia e acabou por ficar com uma doença típica da idade que também não tratou (porque tem medo de tomar medicamentos) e acabou, forçosamente, por ter a sua condição agravada e a que se tratar, tudo isto lhe deu volta à cabeça.

    Até aqui, se ela não tomava medicamentos (não dizendo que não os tomava), ninguém sabia e ela não tinha que prestar contas a ninguém. A partir do momento em que ficou internada já por duas vezes tendo-se descoberto que não estava a tomar a medicação indicada, comecei a andar em cima. E ela detesta ser controlada. Mas ela própria acho que interiorizou que tem que tomar os medicamentos. E isto tudo consome-a. Não consegue controlar o medo que sente ao tomá-los, acha que tem todos os infinitos sintomas que constam das bulas, e ao mesmo tempo sabe que, se deixar de os tomar, isso pode ter consequências graves para ela e não vai ter como esconder de mim. Penso que seja isto que está a consumi-la.

    Está em loop. Não sei se é só medo ou se, às tantas, já não arranjou uma depressão. Temo bastante isso... Só que não o admite e não quer, de maneira nenhuma, que eu fale nisso. Aliás, ela quer que os seus 'sintomas' sejam bem visíveis, empola-os até mais não poder para ver se nos sensibiliza, para ver se nos compadecemos, se calhar para nos convencer a deixá-la ficar internada.

    Vamos ver se arranjamos alguma solução pois isto assim é terrível, para ela e para os que convivem diariamente com ela. Custa-me imenso ver como tem desperdiçado estes seus anos. Podia ter uma vida óptima, tem todas as condições para isso. Esteve tantos anos a assistir ao declínio do meu pai que poderia usufruir de uma vida agora mais tranquila. Mas não. É o oposto. Nunca andou tão descontroladamente atormentada como agora. E é um tormento que transborda para quem está junto dela.

    Pediu desculpa no fim e não sei porque o fez. Tenho é a agradecer-lhe. Ler palavras de quem passou por situações assim, de medo difícil de gerir, e conseguiu superá-lo (ou a conviver com ele) conforta-me. Muito obrigada.

    Um grande abraço.


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