quinta-feira, abril 20, 2023

Eu, analógica, num mundo cada vez mais digital

 

De manhã fui com a minha mãe a uma clínica para ela fazer um exame sofisticado que só se faz ali, pelo menos que a gente tivesse descoberto. Não fui só eu, foi também o meu marido e, claro, o nosso companheiro de guarda.

Tirando a minha mãe que fica sempre meio baralhada no meio do trânsito, em especial quando anda nas vias mais frequentadas, dos outros só o urso não conhece a cidade. Contudo, o nosso conhecimento não nos salva. Quando não se conhece bem o pedaço para onde se vai, se não levamos um bom gps é certo e sabido que vamos andar às voltas sem atinar com a estrada onde virar. Portanto, salva-nos o Waze. E ainda assim, está bem, está... Por vezes é preciso tomar decisões na hora e, no meio de várias faixas preenchidas em contínuo, se a gente pensa que é para virar lá mais à frente e, afinal, é antes, quantas vezes já não conseguimos virar para lá...

Quando chegámos à clínica, tudo muito automatizado, desde a inscrição até à entrada para os gabinetes, pensei que a minha mãe sozinha não conseguiria orientar-se. Habituada a ser autónoma, está contudo muito virada para o mundo analógico. Ali, ou as pessoas já estão programadas para encarreirarem naquela lógica ou, então, vão sentir-se perdidas.

Mas as coisas começam logo antes. Ao entrarmos para o parque, o meu marido não viu o botão da via verde. Mas, às tantas estava à espera de um botão, e aquilo já está uns passos mais à frente e já não funciona com botão. Tirou um bilhete.

O pior foi para sair. Há que pagar antes de sair, como é óbvio. E, também como é óbvio, não se vê vivalma. Portanto, a primeira dificuldade foi descobrir a máquina. A segunda foi atinar com a dita. O meu marido foi tratar do assunto. Passado um bocado voltou ao carro, que eu fosse lá para ver se descobria onde enfiar o bilhete. Lá fui. Os dois a olharmos para a máquina, hermética, sem descobrirmos uma única ranhura viável. E digo viável pois vimos uma mas púnhamos lá o bilhete e não acontecia nada. Claro que o tempo a contar.

Lá vi, na big e prá frentex caixa negra, discreto, quase invisível, o símbolo de um telefone. Carreguei. Ao fim de um bocado, uma voz saiu da máquina. Perguntei onde é que enfiava o bilhete. A voz disse-me que se encostava ao sítio onde estava uma luz âmbar. O meu marido encostou e no visou apareceu uma verba. Lá conseguimos pagar e, com o bilhete pago, lá nos dirigimos para a saída.

Posso ainda contar um outro episódio.

Em mim, a mania de escrever já vem lá de trás. Nos idos do outro século escrevi umas coisas. Usava-se disquettes e eu, numa de querer preservar as coisas, temendo que os computadores se estragassem ou fossem substituídos, guardei essas obras em disquettes. E nunca mais me lembrei de tal coisa. Tal como me esqueci de converter os ficheiros de DW4 ou 5 em Word. Agora que ando numa de tentar recuperar coisas, tenho para ali tralha a que não consigo aceder nem por mais uma. Então tive a ideia de ver se há algum zingarelho que leia disquettes e permita passar os ficheiros idosos para dentro de computadores actuais. Pareceu-me que sim. Alegrei-me. Então passei pela Fnac e perguntei se tinha tal coisa. O rapaz ficou estupefacto, que já não há disquettes desde o tempo em que as galinhas viviam debaixo de água (não usou estas palavras mas vi que era em coisa assim que estava a pensar). Completou dizendo-me que tentasse online pois nas lojas físicas já não há disso. 

E eu pensei também que dito desta forma também dá que pensar: este mundo ainda é o mundo da minha mãe mas como poderá ele orientar-se se lhe faltarem as lojas físicas? 

E eu? Quanto tempo levarei até sentir-me obsoleta, incapaz de me encaixar no mundo virtual em que os humanos já só se manifestam a partir de máquinas e em que as lojas tendem a não ser físicas.

E hoje, ao ler A torneira, pensei que também já me aconteceu ver uma bela torneira, sem dúvida uma interessante peça de design, mas não fazer ideia de como manejá-la. No meu caso só me ocorria que devia haver um botão ou comando algures, mas, por razões estéticas, completamente oculto. A sensação de impotência e desadaptação bem vincadas...

Isso ou uma vez que estava num daqueles encontros em que há actividades em permanência não nos dando um minuto para desfrutar a excelência das instalações em que, à pressa para não chegar atrasada, entrei no elevador e não lhe vi um único botão. Sozinha numa caixa de vidro, totalmente transparente, a ignorância totalmente exposta, e incapaz de marcar o piso para onde queria ir. Tive que fazer o papel de saloia e ir à recepção pedir explicações. Claro que agora isso já se banalizou mas, há uns anos, era, para mim, absoluta novidade.

Outro exemplo: no outro dia, ao querer fazer uma qualquer coisa, um jovem disse-me que só dava via app. E estava admirado por eu ainda não ter a app.

Todo o mundo caminha aceleradamente para a digitalização, para a desmaterialização, para a sofisticação cada vez mais abstracta e vai deixando para trás os que não conseguem acompanhar o passo. 

Isso ou o que me aconteceu no outro dia. Deitei-me com o telemóvel carregado. De manhã estive a ver as mensagens e as notícias. Tranquilo. Nos noventa e tal por cento de bateria. E, de repente, desligou-se. Tentei ligá-lo e nada. Até que, na fracção de segundo entre tentar ligá-lo e ele desligar-se instantaneamente consegui ver que estava com 0% de bateria. Não encontro explicação. Só que, depois, não consegui carregá-lo pois o que tinha comigo era para carregá-lo via PC e o PC também se tinha avariado. Portanto, fiquei totalmente incomunicável e incapaz de interagir com imensas coisas. 

Numa situação destas, que pode acontecer a qualquer um, como é que um cidadão sobrevive neste mundo como o nosso?

E se esta conversa tem a ver com coisas comezinhas, imagine-se com a inteligência artificial. Como conseguiremos acompanhar o passo sem sermos cilindrados? Já não vai ser possível travar a força do mar com as mãos. Só vejo uma hipótese: hibernar. 

How to stop AI going rogue

Artificial intelligence is improving so fast that no one knows what it might be capable of. It brings huge opportunities, but also huge risks. Arjun Ramani, The Economist's global business and economics correspondent, explains what could go wrong.


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Um dia bom
Saúde. Paciência. Paz.

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